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Os riscos de uma terceira dose da vacina contra a covid-19 para a saúde global

Introdução generalizada do reforço nos países ricos ocorreria à custa da primeira imunização para metade do planeta. Uma estratégia que, além de imoral, é perigosa

Paciente recebe injeção da vacina Pfizer numa clínica de Orange Farm, perto de Johannesburgo, na África do Sul, em junho deste ano.
Paciente recebe injeção da vacina Pfizer numa clínica de Orange Farm, perto de Johannesburgo, na África do Sul, em junho deste ano.Denis Farrell (AP)
Gonzalo Fanjul

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Repetidamente, considerações particulares dos países ricos vêm cruzando o caminho do interesse geral na resposta à covid-19. Começamos a ver isso já na aplicação das medidas de isolamento. No entanto, o fato se tornou evidente durante as primeiras fases de distribuição da vacina e na mobilização grosseiramente desproporcional dos recursos de recuperação. Passados 18 meses, a pandemia se tornou um poderoso indicador da desigualdade global.

Agora, governos voltam ao tema, ameaçando descarrilar a frágil estratégia internacional de imunização. Enquanto os percentuais de cobertura em alguns dos países mais pobres do mundo se mantêm em cifras de um só dígito, o debate sobre a terceira dose da vacina contra o coronavírus volta a mostrar a miopia preocupante de um dos lados. Os argumentos foram destacados em um estudo publicado nesta semana por três especialistas do Instituto de Saúde Global de Barcelona: Clara Marín, Adelaida Sarukhan e Marta Rodó.

Eis o que a ciência diz até agora: tanto a imunidade natural como a provocada pela vacina contra a covid-19 são sólidas e, em ambos os casos, a memória imunitária durará, provavelmente, por vários anos. Embora os anticorpos no sangue decaiam com o passar do tempo e as vacinas percam parte da sua eficácia na prevenção da infecção e do contágio, a proteção contra suas consequências mais graves é firme e permanente.

Dito de outro modo, a vacina garante à maioria dos imunizados o privilégio de não adoecer e morrer de covid-19. Mas esse privilégio está fora do alcance de mais da metade da população mundial, que não recebeu nem a primeira dose da vacina nem a receberá no curto prazo. Na totalidade do continente africano —com a única exceção do Marrocos— a cobertura está abaixo de 25%, sem chegar nem mesmo a 2% no conjunto das nações de baixa renda. Estamos cada vez mais distantes de alcançar em 2021 a cobertura de 20% em todos os países, meta estabelecida pela iniciativa Covax como o indicador mais básico do sucesso da estratégia global.

Este é o contexto em que deve ter lugar o debate sobre a terceira dose da vacina. As recomendações das autoridades científicas nos Estados Unidos e Europa são claras quanto aos grupos de risco (pacientes imunodeprimidos, idosos, população internada e profissionais sanitários). Mas a distribuição maciça de uma dose de reforço se fundamentaria em um genérico princípio de precaução, sem um valor agregado evidente para a saúde pública.

E é na interpretação desse “princípio de precaução” onde patinamos perigosamente. Apesar de repetirmos a cada 10 minutos que não há soluções particulares em uma pandemia, não parece que isto tenha qualquer consequência prática. Israel e Estados Unidos já tomaram a decisão de oferecer doses de reforço a todos os adultos que solicitarem. As recomendações da Agência Europeia de Medicamentos deixam a porta aberta para que os governos da UE façam algo semelhante, exercício em que fica difícil identificar onde termina a ciência e onde começa a pressão política.

Neste aspecto, só se engana quem quer. A introdução generalizada da dose de reforço ocorrerá à custa da primeira vacinação em metade do planeta. A capacidade de produção, aquisição e distribuição da vacina contra a covid-19 continua sendo limitada. As operações de reexportação de produtos tão perecíveis e difíceis de armazenar têm um valor residual.

A luz no fim do túnel só começará a aparecer quando os países ricos reduzirem a pressão sobre a demanda e apoiarem o financiamento e distribuição das compras de vacina. A alternativa é perpetuar a pandemia e dar chance ao surgimento de novas variantes para as quais nem sequer os mais privilegiados estão preparados.

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