Os cientistas que criam novos coronavírus infecciosos para salvar vidas
Várias equipes aperfeiçoam a técnica para criar SARS-CoV-2 artificiais, com os quais entender melhor o agente patogênico e desenvolver uma versão inócua que possa servir de vacina
Em abril deste ano, uma equipe de pesquisadores dos EUA colheu uma amostra de coronavírus extraída de uma pessoa que tinha viajado ao epicentro da pandemia: Wuhan (China). Precisavam aprender tudo sobre o novo agente patogênico, o SARS-CoV-2, e para isso pensaram que o melhor seria recriá-lo.
“A forma de entender um vírus é aprender a criá-lo”, conta Luis Martínez-Sobrido, microbiólogo espanhol que trabalha no Instituto de Pesquisa Biomédica do Texas (EUA). O centro tem uma grande plataforma de pesquisa básica sobre os vírus mais perigosos para a humanidade e laboratórios para testar tratamentos e vacinas em quase todos os modelos animais, de ratos a macacos. Há 15 anos, Martínez-Sobrido colaborou na recriação da gripe de 1918, que matou 50 milhões de pessoas em todo o mundo. “Era a única forma de entender por que ela foi tão letal”, explica.
O SARS-CoV-2 é um monstro viral. Seu genoma é um dos maiores de sua classe, com 29.903 letras de RNA que contêm toda a informação necessária para o vírus entrar nas vias respiratórias, sequestrar as células humanas e obrigá-las a fazer dezenas de milhares de cópias de si mesmo. Em parte, essas são as instruções para provocar a pior pandemia deste século.
O problema é que os cientistas não entendem o que significa toda essa sequência de letras. Por enquanto, o SARS-CoV-2 é inquietantemente semelhante a outros de sua classe, como os vírus da SARS e MERS. Há poucos indícios de genes que expliquem sua maior virulência, e foram detectadas apenas algumas poucas regiões que poderiam explicá-la. Muitos segredos do sucesso do novo coronavírus podem continuar escondidos nessas 30.000 letras.
Para decifrar as mensagens ocultas no genoma do novo coronavírus (SARS-CoV-2), a equipe de Martínez-Sobrido teve que reverter a linguagem da vida na Terra. Geralmente as instruções biológicas estão escritas no DNA, uma molécula formada por bilhões de repetições de quatro letras (A, C, G, T, pelas iniciais das suas respectivas bases hidrogenadas). Outra molécula complementar, o RNA, feito das mesmas letras, com uma exceção – U em vez de T – lê o DNA e traduz sua informação em proteínas, as moléculas que realizam a imensa maioria das funções vitais.
Manipular e reescrever sequências grandes de RNA no laboratório é muito complicado, então, para recriar todo o SARS-CoV-2, a equipe recorreu à “genética reversa”: traduz todo o seu genoma do RNA para DNA e o injeta em um pacote bacteriano capaz de se intrometer numa célula humana. A célula lê o DNA e o transcreve para RNA, dando lugar a vírus SARS-CoV-2 completos, aparentemente idênticos à versão selvagem. Usando esta técnica, a equipe conseguiu recriar o agente patogênico em três meses.
Outras equipes na Suíça e EUA criam vírus SARS-CoV-2 artificiais em seus laboratórios com técnicas diferentes. Na Universidade de Berna (Suíça) já foram 100 clones diferentes do SARS-CoV-2 usando fermentos como biorreator. A geração desses clones leva apenas duas semanas, e eles servem para buscar pontos fracos do coronavírus que poderiam ser atacados por medicamentos e contribuir para o desenvolvimento de vacinas, explica a microbióloga Silvia Crespo-Pomar, pesquisadora do centro suíço.
Martínez-Sobrido explica que, por enquanto, sua equipe é a única que demonstrou que seu “clone” é capaz de infectar células humanas e causar a doença em hamsters, cujas células respiratórias compartilham com os humanos a vulnerabilidade perante o coronavírus, conforme descreve um estudo publicado há alguns dias pela Sociedade de Microbiologia dos EUA.
A diferença entre esses clones e o vírus selvagem é uma “matrícula” introduzida de propósito no seu RNA, duas mudanças de uma letra por outra que delatam de forma conclusiva que foi criado em laboratório, explica o pesquisador. Para manipular estes vírus é necessário um laboratório de alta segurança tipo BSL-3, o mesmo nível exigido para trabalhar com o SARS-CoV-2 original.
Poder criar um coronavírus em laboratório significa começar a controlar seu destino evolutivo. “Pensamos que este vírus tem 12 genes, mas cada um deles pode codificar mais de uma proteína. Um dos nossos objetivos é ir retirando cada gene, um por um, e depois provar combinações de vários até averiguar para que serve cada um”, detalha. É um passo prévio à criação do coronavírus artificial que realmente procura, uma versão igual à selvagem, mas sem garras: nenhum gene de virulência nem de propagação. Isto, por definição, poderia ser uma vacina.
“Todas as vacinas que estão em desenvolvimento se baseiam em enfiar no corpo uma só proteína do vírus; são mais fáceis de fazer e de desenvolver, mas não melhores, pois nossa vacina viva atenuada daria imunidade completa contra todas as proteínas do vírus”, explica Martínez-Sobrido, que colaborou nesse estudo.
“Já criamos algumas destas versões e as começamos a provar em animais com resultados positivos. Mas este tipo de aproximação leva muito tempo, em parte porque é preciso descartar a possibilidade de que o clone criado não mude espontaneamente uma vez liberado e volte a ser virulento. Eu acredito que este vírus veio para ficar. Quando começarmos a dar as primeiras vacinas disponíveis às pessoas, é possível que mude e apareçam variantes novas capazes de infectar. É o mesmo que já acontece com a gripe. É uma possibilidade, não sabemos se vai acontecer. Outra de nossas dúvidas é que até agora o coronavírus andou por aí sozinho, mas neste inverno [do Hemisfério Norte] circulará pela primeira vez junto com a gripe. Um de nossos objetivos é começar a ver em animais como as duplas infecções os afetam”, detalha.
A técnica que Martínez-Sobrido usa foi desenvolvida na década de 2000 no laboratório de Isabel Sola e Luis Enjuanes, do Centro Nacional de Biotecnologia, ligado ao CSIC (agência espanhola de pesquisa científica). Lá já são desenvolvidos replicons, versões artificiais do vírus capazes de se replicarem, mas não de se propagar nem de causar doença. “Estamos tirando do vírus os genes 3, 6, 7a, 7b e 8, dos quais ele não precisa para poder se replicar, mas que desempenham um papel na infecção. Pode ser, por exemplo, que permitam ao vírus se ocultar da resposta imunológica inata [a primeira linha de defesas do organismo]”, explica Sola.
Quando estiver otimizado, este vírus artificial entraria nas células e começaria a produzir cópias de si mesmo, mas estas seriam incapazes de sair para infectar outras células saudáveis, pois seus criadores terão lhe tirado de propósito as instruções genéticas para isso. Desta forma, só existiria um ciclo infeccioso inofensivo: seriam injetados 100.000 replicons – vírus não infecciosos – que chegariam ao mesmo número de células, e estas seriam suficientes para montar uma reação imunológica completa.
É um caminho lento e muito longo, sem garantias de chegar a tempo para controlar a pandemia, mas por outro lado produz um conhecimento básico do SARS-CoV-2 que pode ser essencial se falharem as primeiras vacinas ou se o vírus acabar se assentando e voltando a cada ano, como a gripe.
A equipe de Sola espera começar em novembro as provas testes os primeiros replicons em ratos humanizados. Sendo otimistas, e se tudo sair bem, poderiam começar a testá-los em pessoas no final de 2021. Ao mesmo tempo, este grupo chegou a acordos com a empresa belga Univercells para começar a desenvolver a capacidade produtora. Isto se daria dentro de células modificadas em que o vírus é injetado e que estão programadas para oferecer a proteína que lhe falta e completar sua montagem. Os cientistas as chamam de células empacotadoras.
Aviso aos leitores: o EL PAÍS mantém abertas as informações essenciais sobre o coronavírus durante a crise. Se você quer apoiar nosso jornalismo, clique aqui para assinar.
Siga a cobertura em tempo real da crise da covid-19 e acompanhe a evolução da pandemia no Brasil. Assine nossa newsletter diária para receber as últimas notícias e análises no e-mail.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.