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1. Há aliens embaixo da sola dos meus sapatos?

O que significa partir da maior floresta tropical do planeta rumo à Antártida? É o que Eliane Brum conta em um diário a bordo de um navio do Greenpeace que zarpou neste sábado

Baleia-jubarte em águas da Antárdita próximo à Ilha do Elefante, em 15 de janeiro. A bordo do navio, Arctic Sunrise, do Greenpeace.
Baleia-jubarte em águas da Antárdita próximo à Ilha do Elefante, em 15 de janeiro. A bordo do navio, Arctic Sunrise, do Greenpeace.Abbie Trayler-Smith

O que significa partir da maior floresta tropical do planeta para àquela que foi considerada a última fronteira? Da Amazônia à Antártida, esta é a viagem que conto neste diário a bordo do navio Arctic Sunrise, do Greenpeace. Organizada para pesquisar o impacto do colapso climático sobre o continente gelado, em especial sobre as colônias de pinguins, a expedição reúne nove cientistas, alguns com 25 anos de experiência na Antártida. No início do século 20, a corrida para o polo sul marcava o olhar do conquistador que precisava fincar sua bandeira sobre a terra que desbravava. Hoje, no século 21, nosso desafio é dimensionar o impacto da ação humana que alterou o clima do planeta e buscar caminhos para reduzi-lo. Deixo uma floresta em convulsão, cada vez mais perto do ponto de não retorno, para me embrenhar num universo que literalmente derrete.

Há aliens embaixo da sola dos meus sapatos?

Em algumas horas estarei a bordo do Arctic Sunrise, um navio mítico da organização ambiental Greenpeace, usado para pesquisas científicas e ações de denúncia pelo mundo. Numa delas, na Rússia, em 2013, os 28 ativistas e dois jornalistas que os acompanhavam foram abordados, detidos e levados à prisão onde permaneceram por dois meses. Eles faziam um protesto pacífico contra a exploração de petróleo no Ártico. A abordagem policial foi cinematográfica, o vídeo na Internet viralizou. Nesta sexta-feira, 17 de janeiro, descobriu-se que a polícia britânica incluiu o Greenpeace na lista de “alerta antiextremismo”, um guia de 24 páginas da unidade de contraterrorismo para “identificar possíveis autores de atos terroristas e prevenir situações limite”. Será que o Governo de Boris Johnson nos consideraria “piratas”? Nos tornaríamos “suspeitos de terrorismo” por investigar o que está acontecendo com pinguins e baleias devido à crise climática?

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É num planeta governado por criaturas como Johnson, Vladimir Putin, Donald Trump e, claro, Jair Bolsonaro que nossa espécie enfrenta o maior desafio de sua trajetória na Terra: o superaquecimento global provocado por ação humana. Dito de outro modo, os humanos se tornaram uma força de destruição capaz de alterar o clima do planeta. Felizmente, e essa é parte da minha profunda emoção por acompanhar essa expedição do Arctic Sunrise, a Antártida não tem dono. Diversos países mantêm bases de pesquisa científica naquele que é chamado de “continente gelado”, mas nenhum deles têm direito de propriedade. É fascinante estar num lugar do planeta em que nenhum dos déspotas eleitos que hoje circulam livremente por aí possam reivindicar a posse da natureza.

Quando começa uma viagem? Possivelmente na hora em que decidimos realizá-la. Eu estava na minha casa, em Altamira, uma cidade que é epicentro da destruição da Amazônia. Era ainda dezembro e meu primeiro reflexo foi negar: por mais fascinante que a viagem pudesse ser, seria impossível deixar a Amazônia naquele momento. Desde que Bolsonaro anunciou a medida provisória que permite que grileiros (ladrões de terras públicas) possam legalizar pedaços da floresta roubados até dezembro de 2018, as ameaças contra agricultores familiares que disputam a área para reforma agrária e contra os povos da floresta que nela vivem se multiplicaram. Alguns foram mortos. Neste Natal e Ano Novo, várias lideranças tiveram que abandonar suas famílias e se esconder. “Envenenaram minhas galinhas, quebraram as pernas dos meus bezerros, esfaquearam meus cachorros”, avisou uma delas, na forma de pedido de socorro, quando voltou para casa dias atrás. É assim que se vive na Amazônia desde que Bolsonaro assumiu o poder.

Me mudei de São Paulo, a maior cidade do Brasil, para Altamira, a cidade mais violenta da Amazônia, em agosto de 2017, por compreender que a Amazônia deve ser a grande causa de nossa época, para além das nacionalidades e também das identidades. Sem a maior floresta tropical do mundo, não há como controlar o superaquecimento do planeta. E, desde lá, participo do movimento global Amazônia Centro do Mundo, que reivindica a urgência de reconhecer a centralidade da floresta se quisermos ter um futuro possível. Caso a população mundial não perceba que precisa colocar seu corpo na batalha decisiva deste momento histórico, possivelmente a floresta chegará ao ponto de não retorno nos próximos anos. E o futuro de nossos filhos e netos será um planeta hostil.

Cheia de dúvidas, escrevi para Antonio Nobre. Cientista da Terra, ele lançou em 2014 o relatório O Futuro Climático da Amazônia, disponível em português, inglês e espanhol, que apontava a urgência de transformar a Amazônia numa causa de todos. Esse relatório mudou a minha vida. Foi com ele que aprendi sobre os rios voadores lançados pela floresta todos os dias: a floresta sua, transpira, e coloca cerca de 20 trilhões de litros de água na atmosfera a cada 24 horas. Esse volume de água é mais do que o Amazonas, um dos maiores rios do mundo, leva ao Oceano Atlântico. Como já escrevi inúmeras vezes, essa apoteose da natureza, hoje ameaçada, é mais extraordinária do que um poema de Fernando Pessoa, uma pintura de Picasso ou um concerto de Villa-Lobos.

Antonio Nobre me respondeu que seria importante estabelecer as conexões entre a Amazônia e a Antártida ―ou como o desmatamento da floresta poderia impactar o continente gelado. E esse foi também meu primeiro aprendizado ao chegar ao Chile. Desde Santiago, onde participei de um evento anual chamado Congresso do Futuro, que reúne pessoas de todas as áreas e de diversos países, pude comprovar, mais uma vez, o quanto cada gesto impacta todo o planeta. Sobre a cordilheira andina que escolta a cidade, um observador atento poderia avistar um contorno mais escuro. Era a fumaça dos incêndios da Austrália que chegava até ali.

Ao desembarcar em Punta Arenas, na Patagônia, a notícia é de que a fumaça da Austrália comprovadamente já alcançou a Antártida. “A Antártida sempre foi chamada de ‘o continente isolado”, nos contava ontem Marcelo Leppe, diretor do Instituto Antártico Chileno. “É um mito. A Antártida não está isolada. Tudo está conectado.” Ficará fácil para os cientistas saber qual é a marca da neve de 2020: uma linha preta. Marcelo Leppe segue: “há microplásticos por toda a Antártida”.

Da Amazônia à Antártida, da Antártida à Austrália, da Austrália à Sibéria, da Sibéria à Califórnia, sabemos que 2020 não começa bem. Este será um ano decisivo. O meu começou com as ameaças a lideranças em toda a região amazônica por parte de grileiros e segue agora nesta expedição Antártida em que acompanharemos uma equipe de nove cientistas em sua investigação sobre o impacto da crise climática sobre as colônias de pinguins. Também baleias, esses animais fabulosos que fertilizam os oceanos, estão no horizonte antártico de nossa expedição.

Antes de embarcar, porém, minha preocupação é com criaturas vivas infinitamente menores. A Antártida tem sido alterada por humanos que carregam nas roupas, na sola dos sapatos e nos objetos seres alienígenas como sementes, esporos e vírus que podem corromper um ecossistema tão delicado. Preciso escovar a sola de todos os sapatos, usar roupas que não soltam fibras. Sei que quanto menos gente na Antártida, melhor. A pesquisa mais responsável hoje é, sempre que possível, que os estudos sejam feitos com amostras retiradas da Antártida, mas fora dela. Pergunto a Leppe se devemos entrar neste majestoso mundo branco, hoje cada vez mais verde por conta do superaquecimento global. Ele diz que é importante que possamos contar ao mundo o que está acontecendo. Mas que a delicadeza de pisar na Antártida nos dá uma enorme responsabilidade de fazer ainda melhor o nosso trabalho.

Todos os meus sentidos estão entregues à tarefa de contar a vocês o que tenho o privilégio de testemunhar nesta expedição que se inicia em algumas horas. Mas o meu contar só se completa na leitura de cada um. E no gesto que cada um possa fazer a partir da leitura deste diário de bordo.

Volto o mais breve que conseguir ― e que o quase certo enjoo provocado por ondas com vários metros de altura permitir.


Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum

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