O AI-5 já se instala na Amazônia (e nas periferias urbanas)
Ações de autoritarismo explícito se multiplicam no país e aceleram a desproteção da floresta, de seus povos e de ambientalistas
O bolsonarismo é competente ao usar a estratégia de controlar o noticiário e manter a sociedade e a imprensa só na reprodução e na reação. Quando o ministro da Economia, Paulo Guedes, evoca o AI-5, e antes dele o zerotrês Eduardo Bolsonaro (PSL), estão latindo num lugar enquanto a matilha já está mordendo em outro. É na Amazônia e nas periferias urbanas que o autoritarismo já se instalou. Como denominar um país em que a polícia do estado do Rio de Janeiro já matou até outubro de 2019 mais do que em qualquer ano das últimas duas décadas? Se fosse enfileirar as 1.546 vítimas da polícia haveria mais de 2 quilômetros de cadáveres. Esta violência que mata os negros e pobres e faz com que as crianças, também elas pobres e negras, temam o som dos helicópteros porque seis delas já tombaram por bala “perdida” somente neste ano no Rio está conectada com a violência que faz vítimas na floresta amazônica. Os amazônicos e os periféricos não se conhecem, mas têm o mesmo rosto de quem morre no Brasil: negros e indígenas. É contra estes povos, estes rostos, que a violência está recrudescendo. As Organizações Não Governamentais (ONGs), foco da ofensiva do bolsonarismo, estão sendo atacadas porque defendem estes povos, estes rostos.
Desde o início de novembro há sinais de que o projeto autoritário está aumentando de velocidade e de intensidade. O mês abriu com a morte de um dos guardiões da floresta, Paulo Paulino Guajajara. E está terminando com criminalização de uma das organizações mais respeitadas, premiadas e amadas da Amazônia, o Saúde e Alegria, que atua na bacia do Tapajós há décadas. Na terça-feira, 26 de novembro, a ONG teve seus documentos e computadores apreendidos pela polícia civil, em Santarém. No mesmo dia, quatro brigadistas voluntários da Brigada de Alter do Chão, criada para combater os focos de incêndio na floresta em parceria com o Corpo de Bombeiros, foram presos pela suspeita de que teriam ateado o fogo que queimou uma área equivalente a 1.600 campos de futebol em setembro, na região de Santarém. Ser preso, mesmo que a prisão se mostre abusiva, já cumpre o objetivo de quem quer desmoralizar os agentes que combatem a destruição da floresta. O estrago já está feito, especialmente sobre uma população assustada e desinformada.
Em Washington, Guedes evoca o AI-5, autoridades e sociedade reagem, redes sociais se enfogueiram. É preciso avisar que, na linha de frente, o AI-5 já está e os mais frágeis estão resistindo quase sozinhos. E perdendo. O principal projeto do bolsonarismo é a abertura da Amazônia. A disputa desigual está sendo travada na floresta e nas cidades que beiram a floresta. Quem vive e atua na Amazônia já entendeu que pode ser preso sem motivo porque o Estado é arbitrário e as provas são forjadas. É isso o que os acontecimentos em Santarém estão mostrando. AS ONGs são alvo porque, em um país precário como o Brasil, onde o Governo decidiu não cumprir a lei e as instituições fraquejam, são elas que estão fazendo uma barreira contra a destruição da floresta e dos corpos dos povos da floresta. Ambientalistas brancos começaram a ser presos. Os mortos continuam tendo o mesmo rosto: negros e indígenas.
Enquanto tenta mudar a Constituição para abrir as áreas protegidas da floresta amazônica, o bolsonarismo executa o projeto na prática ao desproteger as áreas protegidas, enfraquecendo os órgãos de fiscalização e fortalecendo os destruidores da floresta. Na Amazônia basta deixar de fazer o pouco que se fazia e avisar aos amigos que podem ficar à vontade porque não responderão pelo seus atos. É o que faz o bolsonarismo enquanto a PM de alguns estados está sendo preparada para virar uma milícia que toma suas próprias decisões.
O resultado é tanto a explosão do desmatamento, que aumentou 30% entre agosto de 2018 e julho de 2019, quanto a ameaça e/ou assassinato dos pequenos agricultores familiares e defensores da floresta: indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Quem vive na Amazônia percebe claramente que a ofensiva aumentou desde novembro. As ONGs estão entre os principais alvos a serem eliminados. Em várias regiões do Pará, quem está clamando pela “CPI das ONGs” são justamente notórios grileiros e madeireiros e seus representantes. Enrolam-se em bandeiras do Brasil e evocam o nacionalismo, mas o que querem é fincar um papel com o seu nome ― ou no nome de um de seus laranjas ― num pedaço da floresta amazônica roubada da União ou dos estados.
No Pará, estado que lidera o desmatamento no Brasil, vale a pena observar uma sequência de acontecimentos ocorridos no espaço de uma semana. De 17 a 19 de novembro, os movimentos sociais da região do Médio Xingu organizaram em Altamira um encontro chamado Amazônia Centro do Mundo. A cena da mesa de abertura do encontro, na Universidade Federal do Pará, é uma alegoria do que acontece no cotidiano da floresta. Um grupo de grileiros e fazendeiros se posicionou propositalmente no lado direito da plateia ― “sentamos à direita, como nos convém”. Há dias eles vinham sendo incitados por um homem que se apresenta como antropólogo e trabalha para a banda podre do agronegócio. Desde o início, o grupo gritava a cada vez que um dos convidados a compor a mesa falava, na tentativa de impedir que o evento se realizasse. Era uma provocação. Se alguém reagisse, o articulador manipularia os acontecimentos e diria que ele tinha sigo o agredido. Ele já usou esse truque em outros momentos na região amazônica. O maior alvo deste grupo era Raoni, o Kayapó que se tornou a principal liderança indígena do Brasil, com grande repercussão no exterior, indicado para o Nobel da Paz.
Os guerreiros Kayapó que acompanhavam Raoni entraram em sua bela formação ritual, como costumam fazer. Os Kayapó são orgulhosos e impressionantes em suas aparições públicas. Criaram uma barreira humana para permitir que os organizadores do encontro pudessem falar. E então foi possível ouvir as vozes dos intelectuais da floresta, dos intelectuais da academia, das lideranças dos movimentos sociais. Durante a maior parte da manhã, o pequeno grupo de fazendeiros e grileiros (há que se diferenciar uns dos outros) tentou impedir a voz dos povos da floresta e dos movimentos sociais. Sempre provocando, tentando abafar a voz dos convidados da mesa de abertura. Um pequeno mas revelador sinal de que limites estão sendo superados se revelou justamente no fato de que nem o bispo do Xingu, Dom João Muniz, conseguiu falar sem ser interrompido por provocações. Os organizadores já tinham registrado as tentativas de intimidação ao longo dos dias anteriores, feitas por redes sociais e por email. Presenças internacionais importantes, como a princesa da Bélgica Maria Esmeralda, ativista e embaixadora da WWF, deixaram de comparecer ao evento por temer a violência.
Submerso no noticiário produzido por Brasília, este que gravita em torno das declarações de Bolsonaro e de Lula, parte do Brasil não percebeu a grandeza do que ocorreu em Altamira neste encontro. “Amazônia Centro do Mundo” reuniu lideranças da floresta, pensadores e cientistas da academia, representantes de movimentos sociais e jovens ativistas climáticos do Brasil e da Europa, dos movimentos Engajamundo, Extinction Rebellion e Fridays For Future, este último inspirado pela adolescente sueca Greta Thunberg.
Uma parcela dos participantes vinha de outra jornada, com o mesmo nome, ocorrida uma semana antes na Terra do Meio, do qual fui uma das organizadoras. Do encontro no coração da floresta haviam participado o grande xamã yanomami, Davi Kopenawa, que hoje testemunha o território do seu povo ser mais uma vez tomado por garimpeiros, e a ativista russa Nadya Tolokonnikova, do movimento Pussy Riot, que ficou presa na Sibéria por quase dois anos depois de enfrentar o déspota Vladimir Putin. Estavam ali para se conhecerem e criarem uma aliança pela floresta. Era uma reunião de gente que não quer roubar terra pública para especular ou tirar minério. Só quer que a floresta fique em pé para que ela siga transpirando e salvando o planeta.
Em Altamira, o encontro foi organizado por dezenas de movimentos da cidade e da floresta. Depois de rachar na construção de Belo Monte, as organizações sociais se uniram novamente para lutar contra a destruição da Amazônia. Desta vez, mais preparados para identificar os truques daqueles que buscam desuni-los para poder consolidar seus projetos de destruição. Belo Monte e seu conjunto de violações foram uma pós-graduação completa sobre como agem os “gerenciadores de crise” para neutralizar a resistência, manipular as informações e infiltrar a discórdia. Este ainda é um aprendizado em curso, já que há sempre os que demoram mais a aprender. E há também os que nunca aprendem.
O encontro mostrou algo que parecia muito difícil, senão impossível, no Brasil atual: a organização de uma resistência ao autoritarismo em curso. Não apenas como uma reação aos ataques, mas como criação de futuro, como proposta de uma relação diferente com a floresta e com o próprio modo de viver para muito além da floresta. Movimentos sociais urbanos, agricultores familiares e cientistas ficaram lado a lado com indígenas, ribeirinhos e quilombolas, uma aliança que seria difícil no passado recente pela própria história de cada um destes povos. O espaço não poderia ser mais adequado, já que a universidade pública tem sido um dos principais alvos do bolsonarismo. A aliança entre os saberes da academia e da floresta foi consumada também na concretude do local escolhido.
Um dos momentos mais emocionantes aconteceu quando um agricultor da Volta Grande do Xingu, ecossistema que está sendo secado e destruído pela usina de Belo Monte e ameaçado também pela instalação da mineradora canadense Belo Sun, pediu, aos prantos, perdão aos indígenas por um dia ter ocupado terras que lhes pertenciam. Ao terminar seu discurso, um Kayapó colocou sua mão sobre a dele e, imediatamente, várias pessoas foram somando mãos. A cena tornou-se uma performance artística, não planejada, da aliança que ali estava sendo consumada.
Antes de os fazendeiros e grileiros se retirarem, vencidos em sua tentativa de criar tumulto e silenciar as vozes, ocorreu o momento mais tenso do encontro. Surgiu também ali uma liderança que a sociedade brasileira ― a que defende a vida, a democracia e a justiça ― precisa se organizar para amparar. Seu nome, para recordar e proteger: Juma Xipaya.
Estudante de medicina da Universidade Federal do Pará, em Altamira, Juma pertence a um povo que chegou a ser considerado extinto e precisou provar que tinha sobrevivido à tentativa de extermínio. Ela fez um discurso contundente contra os que tentavam impedir a realização do evento. Um dos notórios grileiros presentes se descontrolou e colocou o dedo no seu peito. Perto dele, duas missionárias que foram companheiras de Dorothy Stang, assassinada em 2005 por um grupo que ficou conhecido como “consórcio da morte”, rezavam. A jovem indígena não se intimidou:
“Meu nome é Juma Xipaya. Eu fico pensando o que vocês pensam quando muitas vezes se contrapõem aos nossos discursos, às nossas lutas. Parece que somos inimigos de vocês. Só quero lembrar vocês que, em momento algum, nós falamos que vocês são nossos inimigos ou que nós somos inimigos de vocês. Nós defendemos a vida, nós defendemos a floresta. E se vocês dizem que a Amazônia é do Brasil, por que vocês não estão lutando para defender a Amazônia?
Toda essa produção e esse desenvolvimento que vocês pensam são para os brasileiros ou é para o estrangeiro? Então que discurso é este que vocês pregam que a Amazônia é do Brasil, sendo que vocês não sabem a importância do que a Amazônia significa pra nós, vocês não sabem o valor da Amazônia? Vocês não são dignos para dizer isso. Sabem por quê? Vocês não sabem o que é perder um filho, vocês não sabem o que é ter as casas invadidas, vocês não sabem o que é ser expulso de terras. Respeite, respeite, respeite. Respeite a minha fala.
Vocês devem nos ouvir. Vocês invadem as nossas terras, vocês entregam o nosso minério, vocês acabam com a nossa vida, e não querem ouvir a nossa voz. Respeitem. Respeitem a Amazônia, respeitem os nosso povos que morrem todos os dias, que têm mulheres todos os dias violentadas, que têm indígenas com mãos decepadas por defenderem as suas terras. Nós defendemos o Brasil. Nós defendemos a Amazônia com nossa própria vida há séculos!
O dever de defender a Amazônia não é só porque nós, indígenas, moramos nas nossas terras. O mundo tem o dever, tem a obrigação de defender a Amazônia, porque é daqui que tiram todas as nossas riquezas e deixam somente as mazelas, as doenças, as tristezas, os conflitos.
Qual é o filho que luta para desmatar e para matar a sua mãe?
Desrespeito é vocês virem aqui gritar, interromper a nossa fala. Se estão aqui para dialogar, então respeitem cada um. Não agridam, não cometam violência, porque eu não estou aqui agredindo vocês. Eu estou defendendo nossos direitos, o direito de existência, o direito de indígenas. Nós também somos donos, até muito mais do que vocês. O Xingu, a Amazônia, todos os seres que vocês não conseguem ver nem respeitar, sabem por quê? Porque vocês não são ligados à terra, vocês não sabem como é a conexão com a mãe natureza. Porque qual é o filho que luta para desmatar e para matar a sua mãe?
Que filhos são vocês? Que brasileiros são vocês? Eu tenho dó. Não de vocês. Eu tenho dó das futuras gerações. Dos filhos e netos de vocês. Vocês não têm o direito de acabar com a nossa futura geração. A Amazônia e o Brasil não são só de vocês. São também nossos. No mínimo, vocês têm que ter respeito e aprender a conviver”.
Raoni pediria mais tarde a todos aqueles que defendem a Amazônia que ajudassem a proteger Juma Xipaya. O pedido precisa ser ouvido para muito além da floresta. Com um AI-5 não oficial já se instalando na região, a sociedade civil precisa se organizar para criar uma rede de proteção aos defensores da floresta e impedir o processo de criminalização das ONGs que protegem estes defensores ― seja cuidando do seu bem-estar, como faz o Saúde e Alegria há mais de 30 anos, seja ajudando a implementar a economia da floresta, aquela que produz renda sem desmatar, como faz o Instituto Socioambiental nas reservas extrativistas da Terra do Meio, seja combatendo diretamente o desmatamento, como fazem outras organizações. A disputa do futuro está sendo travada exatamente agora.
Apesar das ilusões que todo povo alimenta sobre as grandezas do seu país, o Brasil tem hoje importância no cenário global principalmente por causa da Amazônia. É a maior floresta tropical do mundo que empresta relevância estratégica ao Brasil. É abrigar 60% de um bioma estratégico para o controle do superaquecimento global que faz o Brasil um país necessário. O problema é que o bolsonarismo, assim como uma parcela da elite econômica e uma parcela dos militares, continua acreditando que a riqueza da Amazônia é o minério embaixo da terra e a quantidade de terra para especulação. Parte acredita nisso porque é burra e desinformada, parte porque só se interessa por lucros privados e imediatos, colocando seus interesses acima inclusive do futuro dos próprios filhos.
A riqueza da Amazônia é a sua imensa biodiversidade e a capacidade da floresta de, como um gigantesco coração, bombear água para a atmosfera. Sem essas duas riquezas articuladas, a espécie humana, além de muitas outras, estará condenada nos próximos anos e décadas a uma existência hostil num planeta superaquecido. Como lembra o cientista da Terra Antonio Nobre, a floresta inteira lança 20 trilhões de litros de água na atmosfera a cada 24 horas. É o que se chama de rios voadores. Neste caso, um volume maior do que o Amazonas ao desaguar no Atlântico é lançado sobre nossas cabeças todos os dias. Cada árvore grande da floresta lança mil litros de água por dia na atmosfera, pela transpiração. É essa sinapse que cada um precisa completar na sua cabeça.
A qualquer hora que qualquer pessoa pegar o carro e entrar na Transamazônica, especialmente à noite, mas também de dia, vai encontrar caminhões cheios de toras na carroceria. Na região de Altamira, a maioria delas foi arrancada da terra indígena Cachoeira Seca, uma das mais invadidas e desmatadas do país desde a construção de Belo Monte. Foi isso o que os ativistas do Fridays For Future e do Extinction Rebellion viram ao viajar à Terra do Meio. Os caminhões de toras passavam ao lado do microônibus dos participantes em pleno dia. Para os habitantes locais, é uma cena corriqueira. Para os ativistas europeus, foi um choque.
O cálculo que precisa ser feito é que cada uma daquelas toras deixou de colocar mil litros diários de água na atmosfera quando era uma árvore viva, em pé na floresta. Com cada árvore que tomba morrem milhares de outros seres vivos que se conectavam à sua vida e produziam outras vidas no seu entorno. Sem compreender a dimensão do assassinato, é difícil compreender a destruição da floresta. O planeta é orgânico. Cada morte gera uma cadeia de acontecimentos. Alguns visíveis, a maioria invisíveis. Ao final do encontro em Altamira, um estudante comentaria, visivelmente abalado: “Quando falam na floresta os indígenas doem, né? Eles não estão falando de outra coisa, fora deles, mas da mesma coisa. Eles são floresta. Só entendi isso agora”.
Indígenas, quilombolas e ribeirinhos protegem a Amazônia com o próprio corpo, fazendo dele uma barreira entre a floresta e os que querem destruí-la. Diferentemente do que aconteceu no evento, onde depois de provocar confusão, fazendeiros e grileiros foram se retirando porque derrotados no seu objetivo de silenciar as vozes, lideranças da floresta morrem no massacre cotidiano no interior da floresta, lá onde não há câmeras para registrar os crimes. Também são ameaçados e/ou morrem agricultores familiares, como acontece hoje em Anapu, num número muito mais elevado do que no ano do assassinato de Dorothy Stang. A sociedade brasileira precisa decidir de que lado está e proteger quem a protege.
Apenas alguns dias depois do encontro Amazônia Centro do Mundo, em 25 de novembro, a Subcomissão Temporária da Usina de Belo Monte do Senado foi a Altamira para “fiscalizar” a hidrelétrica e realizar uma “reunião técnica”. A imprensa, porém, não pôde acompanhar a “vistoria” pela manhã. À tarde, na reunião aberta ao público, as ONGs viraram alvo. O senador Lucas Barreto (PSD) afirmou explicitamente que recomendaria a inclusão do Instituto Socioambiental, uma das organizações mais atuantes da região na defesa da floresta e de seus povos, na “CPI das ONGs”. O antropólogo da banda podre perguntou então se a CPI estava garantida para o próximo ano. E o senador confirmou. Comemorações.
A ofensiva para eliminar os “entraves” para converter a floresta de todos em fazenda de poucos está desenhada e já foi colocada em curso. A ONG Saúde e Alegria pode ser só a primeira vítima. Parte da imprensa tem colaborado com o método, ao divulgar prisões sem verificar o contexto nem fazer investigação própria. Quando alguém é preso no Brasil, o estigma gruda na pele, a condenação pública precede todo o ritual legal. Os agentes de segurança e da justiça abusam do poder para promover linchamentos. E é exatamente este o objetivo. A suspeição lançada sobre pessoas e organizações pode durar para sempre, como a história já mostrou.
É absolutamente necessário que a sociedade, autoridades e instituições repudiem as evocações do AI-5, como feitas por Paulo Guedes. Mas, junto com isso, é preciso também entender que o autoritarismo está se infiltrando sem papéis e sem documentos com uma velocidade inédita na Amazônia e nas periferias urbanas. Esta é a estratégia deste Governo barulhento que, desde que assumiu, controla o noticiário e leva a comoção pública para onde quer.
No dia 25, atingidos por Belo Monte compareceram ao Centro de Convenções de Altamira. Estas famílias moravam no Bairro Independente I e ainda não foram reassentadas. A maioria é ligada ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que tem importante atuação na região. Antes de os senadores entrarem para a reunião pública, acompanhados de ruralistas e da direção da Norte Energia, dois policiais militares ostensivamente armados atravessaram o salão para também fazer uma vistoria.
A cena que ali se desenrolou é incompatível com a democracia. Eles e suas armas paravam diante de cada pessoa e as obrigavam a mostrar seus cartazes de protesto. É assim que se institui o AI-5 sem nenhum documento, assinatura ou anúncio oficial.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Brasil, Construtor de Ruínas, Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, meus desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum/ Facebook: @brumelianebrum/ Instagram: brumelianebrum
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