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Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

O chanceler brasileiro e o mercado de carbono

A solução para a emergência climática a já foi demonstrada pela ciência: abandono dos combustíveis fósseis, fim do desmatamento e dieta baseada em produtos de origem vegetal

Queimada Amazônia
CARL DE SOUZA (AFP)

Em seu último artigo publicado num veículo de imprensa nacional, o chanceler brasileiro Carlos Alberto França diz que “o Brasil é ator incontornável no debate sobre temas ambientais desde 1992″ e que o país vai a Glasgow empenhado no sucesso da COP 26.

Isso é um recado a países da União Europeia que pretendem isolar o Brasil na Cúpula, que se tornou um pária internacional por conta do desmatamento da Amazônia e do Cerrado, ataque aos direitos constitucionais dos povos indígenas e outras comunidades tradicionais e o absurdo negacionismo demonstrado no combate à pandemia da covid-19 que ceifou até agora a vida de mais de 600 mil brasileiros e brasileiras.

O ministro insiste no mantra de que países em desenvolvimento têm “responsabilidades comuns’', porém “diferenciadas” e alega que o Brasil é “um dos países mais engajados no enfrentamento do problema climático.”

Esse mantra —tradicionalmente usado para justificar a necessidade de continuar a “poluir para se desenvolver”— acaba de ser desmontado, nos casos do Brasil e Indonésia, pelo think-tank Carbon Brief em seu mais recente estudo sobre o histórico planetário de emissões de gás carbônico. O estudo, que leva em consideração pela primeira vez as emissões por desmatamento e uso do solo ao contabilizar o CO2 lançado na atmosfera desde 1850, põe o Brasil num desonroso quarto lugar e a Indonésia em quinto na lista dos 20 maiores poluidores do mundo.

Na linha do “show the money first” [me mostre o dinheiro antes, em tradução livre] que vem sendo defendido pelo governo Bolsonaro, Carlos França diz que a prioridade do país na COP 26 é aumentar os canais de financiamento para o mundo em desenvolvimento. “Não podemos aceitar o descumprimento, pelos países desenvolvidos, da meta com a qual se comprometeram: mobilizar 100 bilhões de dólares anuais para a contenção dos efeitos da mudança do clima”. E acrescenta: “Precisamos obter em Glasgow uma nova meta de financiamento pós-2025.”

Embora o aumento da contribuição financeira dos países ricos seja fundamental para a mitigação e adaptação à crise climática pelos países mais pobres, o Brasil atual está longe de ser o campeão dessa causa justa. Bolsonaro jogou no lixo a credibilidade e a liderança brasileiras construídas por uma diplomacia independente e não alinhada aos interesses das grandes potências para abraçar Trump, o campeão do negacionismo climático que deu uma banana para o Acordo de Paris. Para o negacionista Bolsonaro, o alarme mundial causado pelo desmatamento da Amazônia é invenção dos países concorrentes do agronegócio brasileiro e de comunistas infiltrados em todas as partes —nas ONGs, nos povos indígenas, na mídia e por aí vai.

O ministro das Relações Exteriores defende, em seu artigo, o engajamento de governos e iniciativa privada para enfrentar as mudanças climáticas por meio de instrumentos de mercado. Ele fala em “regras claras e críveis para todos os países” e em estrutura de governança transparente para o Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável de modo a assegurar a integridade das transações entre esses atores.

Embora não mencione um dos temas prioritários da COP 26, Carlos Franco está se referindo ao polêmico Artigo 6 do Acordo firmado em Paris em 2015 mas ainda não homologado por falta de consenso entre as partes que compõem a Convenção do Clima. O Artigo 6 é interpretado por muitos como a consolidação do mercado de carbono.

Defensores da indústria baseada em petróleo e carvão mineral e líderes do agronegócio em expansão puxado pelo consumo em larga escala de proteína animal (setores que são os maiores responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa) defendem a consolidação do mercado de carbono em Glasgow.

Baseado na troca de créditos entre quem depende largamente de tecnologias que utilizam combustíveis fósseis e aqueles que detêm largos estoques de carbono, esse mercado funciona mais ou menos assim: quem não consegue cumprir seu compromisso de reduzir emissões sem fazer grandes investimentos (uma indústria petrolífera —digamos a Shell— ou uma grande empresa frigorífica como a JBS), compensa parte de suas emissões pagando para quem tem créditos adicionais de carbono (digamos, aquele empresário que usará o dinheiro para reflorestar uma grande área desmatada). Esse mecanismo de compensação é conhecido por offset no jargão climático. No mundo real, a indústria ou o frigorífico está comprando mais tempo para poluir e o empresário reflorestador vai usar sua floresta de eucaliptos —que cresce rapidamente pela agregação de carbono às árvores— para abastecer uma empresa de celulose e papel... Produtos que, pós-consumo, devolverão o carbono à atmosfera.

Os dois ganham algum tempo e bastante dinheiro, mas não levam em conta as recomendações do IPCC, o Painel Intergovernamental de Mudança Climática: a crise climática exige ambição e ação imediata.

O mundo não tem mais tempo a perder com procrastinações. É preciso fazer mudanças dramáticas na economia —e isso precisa ser feito hoje, não amanhã, não daqui um mês, não dentro de um ano, nem daqui a uma década. A isso chamamos “ambição”.

Devemos aprender com a Covid-19: em vez de tratar a febre do clima com analgésicos e falsas soluções, precisamos concentrar esforços globais na adoção de uma vacina poderosa contra a pandemia climática.

A fórmula da vacina já foi demonstrada pela ciência e pelo IPCC. Inclui na receita: abandono dos combustíveis fósseis, fim do desmatamento, dieta baseada em produtos de origem vegetal, redução drástica no consumo de proteína animal e outras ações que incluem o aumento da ambição dos líderes globais e recursos financeiros adequados para permitir que os países mais pobres —as principais vítimas do aquecimento global— sejam capazes de adaptar suas economias e mitigar os efeitos da anunciada tragédia climática.

Em nenhum lugar do Acordo de Paris, nem no Artigo 6, menciona-se mercado de carbono associado a offsets. O Artigo 6 é sobre cooperação internacional e “abordagens cooperativas”, ou seja, como os países podem trabalhar juntos e cooperar por meio de uma série de medidas para proteger a vida na Terra e apoiar a mitigação e adaptação às mudanças climáticas —que incluem a provisão de financiamento, transferência de tecnologia e capacitação. Viver vale a pena.

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