Justiça e guerra às drogas: descriminalizar, desfinanciar, desencarcerar
Não se trata mais de cogitar se essa mudança vai acontecer, mas quando e como.
Já é possível saber hoje que a guerra às drogas será substituída por outro paradigma regulatório. Não se trata mais de cogitar se essa mudança vai acontecer, mas quando e como.
O escritório da ONU para Drogas e Crimes advertiu que os desafios das drogas ilícitas se tornam cada vez mais complexos, e a crise gerada pela pandemia e a desaceleração econômica ameaçam agravar os seus impactos principalmente sobre os pobres, marginalizados e vulneráveis.
Dados da PNAD divulgados em abril de 2021 são alarmantes: 377 brasileiros perderam o emprego por hora em um ano de pandemia. 1,4 mil pessoas eram demitidas a cada hora no pico da crise. O cenário é o mesmo em toda América Latina: 209 milhões foi o total de pessoas consideradas pobres na região no final de 2020, 22 milhões a mais do que em 2019, segundo a CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina.
As instituições do Estado brasileiro naturalizaram o confinamento como resposta estatal prioritária para lidar com os sintomas de nossas principais mazelas sociais, econômicas, raciais e de saúde. Se o encarceramento e a internação em massa de nossas populações mais vulneráveis já não serviam a qualquer projeto efetivamente democrático e minimamente comprometido com o avanço civilizatório ou com a efetiva proteção dos direitos humanos, em tempos de covid-19 e diante da emergência sanitária causada, é ainda mais urgente a necessidade de fortalecer iniciativas em defesa da liberdade.
Hoje, um em cada três presos brasileiros é acusado ou condenado por crimes relacionados a drogas. No caso das mulheres, duas em cada três. Temos a terceira maior população carcerária do planeta e a aplicação da Lei de Drogas é a principal responsável por esta vexatória colocação.
De cada três presos, dois são negros. Em 15 anos, a proporção de negros no sistema carcerário cresceu 14%, enquanto a de brancos diminuiu 19%. A política do encarceramento em massa marca um processo de abolição inconclusa, no qual se perpetua a privação de liberdade de corpos negros. Entre as mulheres encarceradas, 63,55% se declaram negras e 74% delas são mães.
Sabemos que a prisão causa danos à saúde de toda a comunidade. Estudo publicado recentemente na prestigiada revista científica “The Lancet”, analisando dados de 30 anos de encarceramento nos Estados Unidos, mostra que os malefícios da prisão não afetam apenas a saúde das pessoas presas, mas sim toda a saúde pública, além de impactar os indicadores gerais de mortalidade. Uma das conclusões do artigo, apontada como medida de atenção à saúde, é o desinvestimento no sistema carcerário.
Enquanto o Brasil continua a matar e prender em nome da guerra às drogas, o restante do mundo começa a rever suas posições. O acesso à maconha foi regulado na maior parte dos estados norte-americanos, para fins terapêuticos ou uso adulto. O país que inventou a guerra às drogas nos anos 70 está na vanguarda regulatória do admirável mundo novo do século XXI: o Estado do Oregon já descriminalizou a posse e o uso de pequenas quantidades de todas as drogas, incluindo heroína, crack e metanfetamina. E não só. Tanto a Organização Mundial da Saúde como a ONU já reconheceram as propriedades terapêuticas da maconha. A cada dia, há mais países, como Uruguai, Canadá, México e Portugal, avançando em direção a novas abordagens.
Nos EUA, a mudança de paradigma na política de drogas vem acompanhada de propostas para o desencarceramento e reparação dos danos produzidos pela guerra às drogas nas pessoas e comunidades. Assim surge o movimento “Defund the Police” que, juntamente com movimentos como o Black Lives Matter, propõe a reorientação dos investimentos públicos, pautando, dentre outros temas tão urgentes quanto relevantes, a diminuição dos gastos com prisões.
Na mesma linha, de redirecionamento orçamentário e reparação, a cidade de Evanston, em Illinois, recentemente aprovou a criação de um fundo para subsidiar políticas de moradia para a comunidade negra em situação de vulnerabilidade social e econômica, com recursos dos impostos gerados com a venda de cannabis.
No Brasil também não faltam qualificadas reflexões, com movimentos sociais como a Associação de Amigos e Familiares de Presos (Amparar) assumindo o protagonismo de uma racionalidade de vanguarda que pede “nenhuma vaga a mais” e que se somam aos debates econômicos propostos por projetos de pesquisa, como a Plataforma JUSTA, que trata do financiamento e da gestão do sistema de justiça, apontando os resultados danosos das desigualdades orçamentárias, de raça e de gênero observadas na justiça brasileira e o “Drogas: quanto custa proibir”, do CESeC, que busca quantificar, de forma qualificada, os custos das políticas proibicionistas no Brasil.
A disputa pelo controle do orçamento se coloca como um dos principais problemas públicos, em todo o mundo. A cada crise econômica vivenciada, uma nova batalha distributiva se instaura e a decisão sobre como será repartido o produto arrecadado via orçamento significa uma decisão sobre quais áreas e setores serão privilegiados e quais serão sucateados. Diante de uma pandemia, essa decisão significa, de forma ainda mais direta, uma decisão sobre quem vive e quem morre.
A Plataforma JUSTA revelou que em São Paulo, em plena pandemia, o governo estadual cortou R$ 14 milhões da atenção à saúde nas prisões e R$ 31 milhões de ações como a aquisição de produtos de higiene para presos ao mesmo tempo em que distribuiu R$ 788,8 milhões a mais para o sistema de justiça, na forma e créditos adicionais.
Descriminalizar e regular as drogas. Desencarcerar a população. E mais. Precisamos também falar de reparação. Depois de ter passado tantos anos matando e prendendo em nome de uma guerra equivocada, o Estado não pode fingir que não é com ele. Além de regular as drogas, é hora de o Estado oferecer reparação financeira e social a todas as comunidades afetadas pela violência da guerra que provocou. Nesse caminho pela reparação, é preciso garantir que a regulação das drogas não se torne mais um negócio para aumentar a riqueza de quem sempre foi rico e manter a pobreza dos demais. O modelo de produção econômica das drogas reguladas precisa ser inclusivo. O Estado precisa garantir espaço aos pequenos produtores, à agricultura familiar e às vítimas da guerra que provocou.
Conheça este e outros debates e propostas sobre o tema na série Justiça e Guerra às Drogas.
Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.