Justiça social, racial e de gênero na Guerra às Drogas
Em quatro vídeos animados, série revela a falhas de funcionamento do sistema de Justiça brasileiro. Veja o segundo episódio
O atual modelo de proibição de algumas substâncias tornadas ilícitas pelos Estados tem se convertido em uma estratégia eficaz no que diz respeito à violação de um conjunto de direitos civis e sociais. Desde a aprovação da Lei 11.343/2006, conhecida como a lei de drogas, o número de prisões segue aumentando. Segundo dados do Infopen, em 2016, o Brasil se tornou o terceiro país que mais encarcera no mundo, ultrapassando a marca de 700.000 pessoas presas, das quais 64% se declararam negras. Desse total de presos, 40% não receberam sentença, ou seja, quase metade desses presos poderia não estar privada de liberdade caso tivesse sido julgada.
Além disso, o aumento das penas por delitos relacionados a drogas foi justificado na intenção de diminuir o poder de organizações criminosas que também existem nas cadeias. Nesse sentido, a lei também não atinge seu objetivo, pois além de aumentar a carga do Sistema de Justiça e o gasto público com a manutenção de presídios, contribui indiretamente com o fortalecimento dessas organizações ao levar mais pessoas para as cadeias. Soma-se a isso o fato de que milhares de pessoas têm seus laços afetivos rompidos de maneira brusca, especialmente mulheres que, na imensa maioria dos casos, são as únicas responsáveis pelos seus filhos. Diante desse cenário, como é possível mensurar o custo social das mais de 60 mil vidas de brasileiros que morrem ao ano e os impactos desastrosos na vida das famílias e pessoas afetadas?
Por outro lado, é possível observar os custos econômicos desse processo de guerra. Segundo dados publicados pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, os custos econômicos da “criminalidade” passaram, entre 1996 e 2015, de cerca de 113 bilhões de reais para 285 bilhões de reais, um incremento real médio de cerca de 4,5% ao ano. Em estudo realizado em parceria com o Instituto Igarapé, concluiu-se os seguintes componentes desse dado, em ordem de relevância: segurança pública (1,35% do PIB); segurança privada (0,94% do PIB); seguros e perdas materiais (0,8% do PIB); custos judiciais (0,58% do PIB); perda de capacidade produtiva (0,40% do PIB); encarceramento (0,26% do PIB); e custos dos serviços médicos e terapêuticos (0,05% do PIB), alcançando um total de 4,38% da renda nacional. Além do alto gasto público, essa política também adoece os servidores públicos; o índice de suicídios entre policiais é maior do que a média de outros profissionais, além das mortes, lesões graves e dos afastamentos por doenças. Segundo pesquisa do Grupo de Estudo e Pesquisa em Suicídio e Prevenção (GEPeSP), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), coordenado pela cientista política Dayse Miranda, em parceria com a Polícia Militar fluminense, de 224 policiais militares entrevistados, 10% disseram ter tentado suicídio e 22% afirmaram ter pensado em suicídio em algum momento.
Os homicídios no Brasil nos últimos quinze anos registraram número maior do que o mesmo crime em oito países sul-americanos somados, ou ainda, todos os assassinatos registrados no mesmo período nos 28 países da União Europeia. Cerca de 56% do total dos assassinatos envolvem pessoas jovens com até 29 anos, e dessas, 71% são negras. A este quadro, soma-se a inexistência de um sistema de produção de dados seguros sobre as circunstâncias dessas mortes, condições de aferir ocultamento de mortes por homicídio e quantas ocorrem por ação direta ou indireta da polícia.
Com a justificativa de construir um bem à saúde da população, os aparatos proibicionistas da Guerra às Drogas têm produzido mais mortes do que qualquer uso de substâncias psicoativas, fazendo com que diversos países em nosso continente passem a questionar esse modelo de construção de políticas públicas pautadas na perseguição, criminalização e retirada de direitos de pessoas negras, indígenas, pobres e latinas. A Guerra às Drogas tem afetado as políticas públicas, criando um sistema de controle, punição, violação de direitos e promovendo a violência institucional contra populações que deveriam ser protegidas, em pleno contexto do Estado Democrático de Direito.
Questionamos uma democracia que tem produzido uma máquina de morte e tortura em comunidades empobrecidas, a partir da execução e investimento em políticas de Estado que militarizam territórios, fazendo com que a ação violenta e violadora de direitos ocupe esses territórios no lugar de políticas de saúde, assistência e direitos humanos. Atualmente a política de drogas tem tido como resultado direto o fortalecimento de uma hierarquia racial, na qual as pessoas brancas são protegidas e cuidadas, e as pessoas negras, indígenas e pobres são criminalizadas sofrendo desproporcionalmente o peso desta guerra. Entendemos que a criminalização é uma estratégia ineficaz na construção do cuidado à saúde de pessoas que usam drogas, tendo em vista que o estigma e a discriminação sofridas pela entrada em um processo criminal interferem na sua busca por ajuda e cuidados em saúde.
A Lei de Drogas brasileira é a que tem proporcionado o aumento do encarceramento da população, com destaque ao encarceramento feminino, fazendo com que muitas mulheres tenham que “cuidar” dos seus usos problemáticos de drogas no contexto prisional. Importante destacar que a inserção no mercado ilícito de drogas tem sido uma opção no Brasil e em diversos outros países da América Latina e Caribe ao fenômeno da feminização da pobreza. O crescimento dos mercados de drogas ilícitas, com destaque ao mercado de cocaína nas Américas, é um importante fator econômico que inclui mulheres pobres e de famílias monoparentais na engrenagem das teias da ilicitude do varejo de drogas, de modo que a entrada nesta rede seja uma opção acessível e rápida de inserção laboral para o sustento de suas famílias. Quando encarceradas, toda a comunidade familiar que depende desta renda é afetada, sem que o Estado apresenta outras opções que não a punição.
O direito à maternidade também tem sido impactado pelo contexto de Guerra às Drogas, produzindo cenários de injustiça racial e de gênero. Embora a aprovação do marco da primeira infância tenha garantido prisão domiciliar a mulheres mães com filhos de até 12 anos, na prática o sistema judiciário tem ignorado esta recomendação, ferindo também as Regras de Bankok, no que diz respeito às regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (2016). Essas regras, que foram recomendadas pelo Conselho Nacional de Justiça, propõem um olhar diferenciado para as especificidades de gênero no encarceramento feminino, tanto no campo da execução penal como também na priorização de medidas não privativas de liberdade, ou seja, que evitem a entradas das mulheres no sistema carcerário.
A atual opção política pela Guerra às Drogas tem afetado os direitos civis de pessoas negras e pobres em nosso país, sobretudo os direitos à saúde, à justiça e à assistência social. No contexto da pandemia de Covid-19, o Conselho Nacional de Justiça emite a Recomendação 62, que versa sobre a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo Covid-19 no âmbito dos estabelecimentos do sistema prisional e do sistema socioeducativo. Essa recomendação tem sido ignorada pelo sistema de justiça em todo o território nacional, ocasionando inclusive mortes de jovens por contaminação ao Covid, presos provisoriamente. Somam-se a esse fator a retirada do direito à visita de familiares e a ausência de disponibilização de informação sobre as pessoas presas, que têm marcado o contexto prisional brasileiro na pandemia.
Neste sentido, defendemos uma política de drogas pautada na justiça social, racial e de gênero que, no lugar de produzir um fortalecimento de estruturas de opressão, possam oportunizar caminhos de vida, cuidado, bem-viver e reparação. É urgente e necessário dialogar com toda a sociedade sobre o conjunto de danos causados diretamente pela necropolítica de guerra. Temos a responsabilidade de reconstruir as políticas sobre drogas, a partir da visibilização dos cenários de violação de direitos, mas também a partir da proposição de uma agenda política pautada na justiça e reparação das comunidades diretamente afetadas.
Nesta websérie de quatro episódios, a Iniciativa Negra, a Plataforma Justa, a Ponte e a Plataforma Brasileira de Política de Drogas põem a justiça na berlinda, buscando traduzir, a partir de uma construção artística, uma trama de mecanismos que precisa ser compreendida pela população em geral a fim de fomentar o debate qualificado no seio da sociedade civil, ampliar o acesso à informação e para a construção de caminhos de esperança e luta para uma nova política sobre drogas.
Quem assina?
Dudu Ribeiro e Nathália Oliveira, co fundadores e coordenadores da Iniciativa Negra por Uma Nova Política Sobre Drogas
Conheça a série
A série foi criada por iniciativa do JUSTA, plataforma que pesquisa o funcionamento do sistema de Justiça, da rede Plataforma Brasileira de Política de Drogas e da ONG Iniciativa negra por uma nova política sobre drogas. O roteiro e a produção dos vídeos foram realizados pela Ponte Jornalismo, veículo de comunicação especializado em direitos humanos, em parceria com a produtora Iracema Rosa.
Os quatro vídeos, com duração entre 6 e 10 minutos, usam a animação como um recurso para divulgar, de um jeito atraente e acessível, um panorama sobre como se dá a aplicação da lei de drogas no Brasil e como magistrados e promotores se associaram aos Governos para blindar a violência policial e produzir o encarceramento em massa da população negra.
A animação será exibida toda terça-feira, a partir de 28 de setembro, na Ponte Jornalismo, sendo replicada no EL PAÍS, no Yahoo! Notícias, na Rede TVT e nos canais do YouTube das organizações responsáveis pelo projeto.
Luana Malheiros, antropóloga, é coordenadora de articulação da Plataforma Brasileira de Política de Drogas; Tatiana Diniz, jornalista, é coordenadora de comunicação da PBPD
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