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DOI-CODI, as memórias do QG da tortura da ditadura precisam seguir vivas

Quando o Brasil vive sob um Governo que tenta apagar os escombros do regime militar, uma batalha avança em São Paulo para fazer do antigo endereço da tortura um espaço de dignidade para as vítimas

Agentes do DOI, no pátio interno do órgão, recebem a medalha do Pacificador.
Agentes do DOI, no pátio interno do órgão, recebem a medalha do Pacificador.Marcelo Godoy/Arquivo pessoal (DIV)

É uma memória quase perdida. Hoje funciona ali o 36º Departamento de Polícia de São Paulo e um laboratório de impressões digitais da polícia, que esconde um conjunto de edifícios baixos de cor acinzentada, hoje vazios. Era para lá que seguiam os presos políticos durante a ditadura. Apelidado de “açougue” entre os agentes que lá trabalhavam, o DOI-CODI deixou de existir em 1990. Não há sequer uma placa ou uma pintura em algum muro informando que aquele conjunto de edifícios é tombado pelo Patrimônio Histórico desde 2014.

Num momento em que o Brasil vive sob um Governo que atua para apagar os escombros que o regime militar deixou no país, uma batalha ganha espaço em São Paulo para tornar o antigo endereço do QG da tortura um espaço de dignidade para as vítimas que morreram ali e para o conhecimento das próximas gerações. Uma ação civil pública do Ministério Público de São Paulo, ajuizada em junho, solicita que a área ocupada por quatro prédios que faziam parte do DOI-CODI —exceto a delegacia— seja transferida da Secretaria de Segurança Pública para a Secretaria de Cultura do Estado. Esta deverá preservar os prédios tombados e elaborar um plano para instalar um centro de memória no antigo QG da repressão.

A demanda por um memorial já tem 11 anos. Em 2010, Ivan Seixas, que foi torturado ao lado do pai aos 16 anos, pediu o tombamento do antigo DOI-CODI e a criação do memorial quando ocupava a presidência do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana). Em novembro de 2013, integrantes das comissões Nacional, Estadual e Municipal da verdade estiveram com seis ex-presos políticos no DOI-CODI. Na ocasião, os ex-presos reiteraram o pedido de tombamento do antigo centro de torturas e sua transformação em um memorial.

Era no DOI-CODI do II Exército que despachava e onde morou com a família por um tempo um dos heróis às avessas do presidente Jair Bolsonaro: o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou a “repartição” entre 1970 e 1974, e morreu de câncer em 2015, num hospital de Brasília, sem ter sido condenado em nenhum dos sete processos que o Ministério Público Federal tentou abrir contra ele.

A casa dos horrores torturou até a morte jovens opositores do regime militar. Outros viveram a perversidade de serem torturados na frente de filhos crianças, como Amélia e Cesar Teles. O casal, de pouco mais de 20 anos, foi preso em dezembro de 1972, e apanhou seguidamente. Amelinha, como é conhecida, chegou a ser colocada nua numa cadeira para tomar choques elétricos. Quando as descargas pararam, recebeu a visita dos dois filhos, então com 5 e 4 anos. Tudo sob a supervisão do comandante Ustra.

Parentes e amigos de vítimas da ditadura participam do sexto Ato Unificado Ditadura Nunca Mais, em 2019, no pátio da 36ª DP, onde funcionou o DOI-CODI, em São Paulo.
Parentes e amigos de vítimas da ditadura participam do sexto Ato Unificado Ditadura Nunca Mais, em 2019, no pátio da 36ª DP, onde funcionou o DOI-CODI, em São Paulo.Mauricio Pisani

Para debaixo do tapete

O Brasil joga para baixo do tapete as evidências dos crimes daquela época. A única sentença criminal de primeiro grau contra um agente da repressão da ditadura foi anunciada no mês de junho deste ano: o ex-investigador Carlos Alberto Augusto, o Carlinhos Metralha, foi condenado a 2 anos e 11 meses de prisão pelo sequestro de Edgar de Aquino Duarte, em 1971, processo no qual Ustra foi réu até morrer, sendo excluído da ação. Foi a memória de Ustra que Bolsonaro escolheu homenagear ao votar a favor do impeachment de Dilma Rousseff, em abril de 2016, em vídeo que ele usou ostensivamente em sua campanha eleitoral em 2018.

Frequentadores da região do antigo DOI-CODI, que passam com seus cachorros ou param seus carros para buscar os filhos em uma das duas escolas infantis que ficam a menos de 100 metros do antigo QG da morte, desconhecem esse passado sombrio. No dia em que a reportagem esteve nos arredores, dois terços dos entrevistados (inclusive moradores) não sabiam do passado daquele quarteirão.

A aposentada Josefa Martins da Silva, de 89 anos, que mora num prédio na esquina das ruas Tumiaru e Tutoia, faz parte do grupo que não esqueceu. “Dava para escutar os gritos”, conta. Segundo ela, “ninguém podia ficar olhando o movimento” no local das janelas de seus apartamentos, pois eram advertidos pelos policiais e militares que tomavam conta do local. O taxista Sergio Naltchadjian, 64, não frequentava o bairro do Paraíso na época da ditadura, mas há anos tem um ponto de táxi na rua Tutoia e conta que moradores mais antigos já lhe disseram que era possível ouvir os gritos. “E, se alguém colocasse a cara na janela, já perguntavam o que estava olhando”, recorda.

Quem sobreviveu à tortura também não esquece. Ex-integrante do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), o ex-preso político Ivan Seixas, 66, preso aos 16 anos no DOI-CODI com o pai, o operário Joaquim Alencar de Seixas (assassinado em abril de 1971), sabe apontar exatamente o local onde foi torturado ao longo dos 50 dias em que esteve preso. “Foi naquele prédio nos fundos do 36º DP, no último andar. Eram duas salinhas e todo mundo via o que acontecia lá. Eu costumo dizer que nunca houve porões da ditadura, pois tudo era aberto. Era terrorismo de Estado”, conta. O MRT era adepto da luta armada, e seu pai teria integrado o grupo que matou Albert Hening Boilisen, empresário dinamarquês radicado no Brasil, acusado de financiar o regime militar. O documentário Cidadão Boilisen, que conta a sua história, relata que o empresário acompanhava pessoalmente as sessões de tortura de presos políticos.

Foi também no DOI-CODI que, num intervalo de três meses, foram mortos sob tortura o jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e o operário Manoel Fiel Filho, em 1976. Em ambos os casos, o Exército anunciou falsamente que se tratavam de suicídios. Herzog era diretor da TV Cultura, e foi convocado a se apresentar às autoridades depois de uma reportagem que falava do regime militar. Era um tempo em que jornalistas estavam na mira da ditadura, como contou seu filho, Ivo Herzog, a este jornal, em maio de 2018. Fiel Filho era um operário metalúrgico e foi preso por ter em casa panfletos contra a ditadura.

A ex-presidenta Dilma Rousseff, segundo relatou, em 2001, ao Conselho Estadual de Direitos Humanos (Conedh) de Minas Gerais, foi torturada por policiais mineiros e da Oban (Operação Bandeirante, que antecedeu o DOI-CODI) por 22 dias seguidos no início de 1970. Um de seus torturadores foi o capitão Benoni de Arruda Albernaz, que atuou no DOI, e lhe arrancou um dente com um soco.

Parentes e amigos de vítimas da ditadura participam do sexto Ato Unificado Ditadura Nunca Mais, em 2019, no pátio da 36ª DP, onde funcionou o DOI-CODI, em São Paulo.
Parentes e amigos de vítimas da ditadura participam do sexto Ato Unificado Ditadura Nunca Mais, em 2019, no pátio da 36ª DP, onde funcionou o DOI-CODI, em São Paulo.Mauricio Pisani

Em 10 de maio de 2013, o então vereador paulistano Gilberto Natalini contou à CNV que foi torturado pessoalmente em 1972 por Ustra. Ali, ele encarou o coronel, que prestou depoimento no mesmo dia. Natalini foi preso por ter cópias de publicações da Molipo (Movimento de Libertação Popular) quando militava no movimento estudantil e cursava medicina em São Paulo. “Fiquei três dias sendo interrogado, de dia e de noite, de noite e de dia, inclusive pelo coronel Ustra, que entrou várias vezes na sala”, contou Natalini, que revelou ter sido torturado por 60 dias, inclusive pelo comandante do DOI. “Tive a vivência de ter o coronel Ustra sempre presente nas salas de tortura, presenciando, participando, orientando (...) Eu apanhei dele pessoalmente, o coronel Ustra me bateu (...). Ele me despiu, me colocou em pé numa poça d´água, ligou fios no meu corpo e chamou a tropa para fazer uma sessão de declamação de poesias que eu escrevia contra o regime e ficou com um cipó, ele mesmo, me batendo durante horas”, contou Natalini à CNV.

Preservar o passado para não se repetir

No último dia 9 de setembro, às 14h, numa audiência histórica e carregada de simbolismo, o judiciário paulista reuniu integrantes do Ministério Público e representantes do Governo de São Paulo para decidirem se estas memórias continuarão pertencendo a poucos ou pertencerão a todos. Não houve acordo sobre a cessão de prédios para a Secretaria de Cultura, mas a conversa ficou em aberto. A ideia de preservar a memória para que não se repitam horrores é uma demanda urgente. A tortura desse período contamina até hoje as práticas policiais no país. O tombamento de locais onde ocorreram graves violações de direitos humanos e sua transformação em memoriais é recomendação expressa do relatório da Comissão Nacional da Verdade, “para a preservação da memória das graves violações de direitos humanos”.

O conjunto foi tombado em maio de 2014 pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico). Ao determinar a audiência do último dia 9 no DOI-CODI, o juiz José Eduardo Cordeiro Rocha, da 14ª Vara da Fazenda Pública, concedeu uma liminar obrigando o Estado de São Paulo a preservar todos os elementos estruturais e arquitetônicos dos prédios localizados no terreno do antigo DOI-CODI. Dos quatro prédios de que o MP pede a cessão para a Secretaria de Cultura, a SSP usa apenas duas salas no prédio da rua Tomás Carvalhal. Uma é ocupada pelo laboratório de datiloscopia (impressões digitais) da Polícia Civil, outra é o depósito de pneus de tratores e ônibus da polícia. No pátio ficam carros examinados pelo laboratório.

Os prédios em jogo incluem o edifício de três pavimentos nos fundos da delegacia que eram usados para interrogatórios e tortura; a casa do comandante, de dois pavimentos; um prédio de três andares com entrada pela rua Tomás Carvalhal, que era o alojamento dos policiais e militares; a garagem e o pátio do antigo DOI e o muro externo da rua Tomás Carvalhal, onde ficava a entrada do centro de tortura e onde até hoje se veem duas guaritas. O prédio e a garagem, pelo menos por fora, parecem estar em boas condições. O mesmo não se pode dizer dos dois prédios localizados atrás do 36º DP. As paredes externas de ambos os edifícios têm infiltrações.

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A delegacia, inaugurada em 1960, é coadjuvante da ação. Por hora, o MP pede apenas que o Estado, caso condenado, apresente um “estudo para posterior desocupação das dependências da 36ª Delegacia de Polícia da Capital, integrando o prédio localizado na Rua Tutóia ao complexo do [futuro] Centro de Memória”.

A historiadora Deborah Neves, doutora em História pela Unicamp, e que atuou no processo de tombamento do DOI, coordena o grupo de trabalho criado pelo MP em 2016, quando foi aberto o inquérito civil público que resultou na ação. Para ela, mesmo antes do desfecho das negociações, é necessário dar andamento a pesquisas arqueológica e estratigráfica (que descasca uma parede, por exemplo, para saber quantas camadas de tinta ela tem). Há um projeto de pesquisadores para, inclusive, procurar restos humanos ali. Não há notícia de que corpos de desaparecidos políticos tenham sido enterrados no DOI-CODI, mas a ideia é procurar vestígios de sangue e dentes no local, antes da adaptação da área para um memorial.

O convênio para a realização das pesquisas já está nas mãos do secretário de Cultura, mas a ausência de cessão da área atrasa o projeto. Em 22 de maio deste ano, foi iniciada uma parceria entre a Secretaria de Cultura e o Memorial da Resistência para a preservação da memória oral do período. O primeiro depoimento colhido foi o de Ivan Seixas. A ideia é ouvir ao menos 100 pessoas presas e torturadas no local. “Já perdemos o [jornalista] Alípio Freire, o [sindicalista] Raphael Martinelli e o [operário e fundador do PT] Clóves de Castro e, por isso, iniciamos essa coleta de testemunhos. Fomos procurados por pessoas que não falaram nem para a CNV, nem para o Memorial da Resistência”, revela Neves, indicando que, passados tantos anos, ainda há muito a se revelar.

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