Reencontro com 1970, o ano do terror em Porto Alegre
Jornalista Antônio Pinheiro Salles volta pela primeira vez ao Rio Grande do Sul 49 anos depois de ser preso pela ditadura militar em Porto Alegre, e visita a Ilha do Presídio, uma das prisões por onde passou ao longo dos nove anos em que esteve sob custódia do regime
Do banco do veleiro que se aproxima da Ilha das Pedras Brancas, uma minúscula porção de terra de 150 metros de comprimento no meio do Lago Guaíba, em Porto Alegre, o jornalista Antônio Pinheiro Salles aponta uma guarita que se destaca em cima de uma rocha e comenta: “Eu olho para aquela guarita ali e vejo o policial com o fuzil apontado para a gente”. Então, percorre com os olhos a lateral norte da ilha, à procura da segunda guarita, à sua direita, onde imagina o outro guarda, também com a arma apontada para a Tenebrosa - apelido dados pelos presos políticos à balsa que os levava daquele local de custódia para as sessões de tortura no Dops, na década de 1970.
É dia 13 de dezembro de 2019, Pinheiro Salles tem 82 anos e está em Porto Alegre há 48 horas, cidade onde exatos 49 anos atrás fora levado para os porões da ditadura militar, de onde saiu apenas nove anos depois. A detenção aconteceu no bairro Menino Deus em 1970, “o ano do terror em Porto Alegre, quando 11 organizações de combate à ditadura foram destruídas”, assegura Raul Ellwanger, músico da capital, ex-preso político e atual coordenador do Comitê Carlos de Ré de Verdade e Justiça do Rio Grande do Sul. Pinheiro Salles era militante estudantil na época da ditadura e participou de movimentos de luta armada, o que incluía assaltos a banco com o intuito de financiar o movimento de resistência.
É um dos presos políticos brasileiros com mais longa estadia na cadeia: não foi beneficiado sequer pela Lei de Anistia, de agosto de 1979, porque tinha uma condenação por “crimes de sangue” durante a ditadura - apenas 186 brasileiros tiveram penas semelhantes. “Pinheirinho é um exemplo concreto de que a anistia não foi ampla, geral e irrestrita, como disseram”, anotou em um evento na noite anterior Suzana Lisboa, uma das lideranças nacionais entre familiares de mortos e desaparecidos pelo regime militar no Brasil.
Solto após reforma da Lei de Segurança Nacional, que permitiu a revisão de sua pena, nunca mais tinha voltado ao Rio Grande do Sul, território que conheceu de dentro de camburões, viaturas, e atrás das grades. Ao longo dos quatro anos que esteve preso no Estado passou por seis cadeias diferentes, em Porto Alegre, Alegrete e Charqueadas. Em 2013, prestou depoimento à Comissão Nacional da Verdade, no qual relatou as torturas sofridas em solo gaúcho e em São Paulo (esteve também no DOI-Codi e na Oban) e registrou os nomes de seus algozes - entre eles Carlos Alberto Brilhante Ustra, a quem o presidente Jair Bolsonaro homenageou com seu voto no processo que cassou o mandato de Dilma Rousseff, em 2016.
“Não foi fácil vir”, admitiu Pinheiro Salles a um grupo de amigos que foram reencontrá-lo na noite em que sua prisão completava 49 anos. Suas lembranças do Sul incluem noites passadas no pau de arara, “bofetadas, tapas, telefones, queimaduras com brasas de cigarro, espancamentos com tira de pneu, uso de alicate, afogamentos”, além de eletrochoques no ânus e no pênis, conforme ele registrou diante da CNV.
A tortura deixou sequelas visíveis: ele fala com alguma dificuldade mesmo após cirurgias que repuseram com platina pedaços da mandíbula partida pelas pauladas - dependendo da ocasião precisa falar segurando o queixo, tal a impressão de que vai perder o controle da articulação. Os tendões do braço direito foram rompidos pelas cordas do pau de arara, amarradas com muita força nos punhos, e por isso, para beber água, Pinheiro Salles precisa segurar o copo como fazem as crianças, utilizando as duas mãos. “Sou surdo do ouvido direito e escuto muito pouco com o esquerdo”, completa.
Memórias de um sargento com as mãos amarradas
O desembarque na Ilha das Pedras Brancas foi feito com alguma dificuldade, não só pela fragilidade física de Pinheiro Salles, mas também porque o local está abandonado, embora seja tombado pelo Patrimônio Histórico do Rio Grande do Sul. As ruínas do edifício, que em sua origem foi uma casa de pólvora ainda do tempo do Império, construída entre 1857 e 1860, são saqueadas com frequência e hoje apenas as paredes estão em pé - nem as grades das celas resistiram aos gatunos.
Os primeiros passos são dados em meio à mata que cresceu entre as rochas. “Naquela época não tinha tanto verde. Acho que podavam as árvores para poderem nos vigiar das guaritas”, analisa. Mesmo assim, o jornalista aponta uma espécie de fenda formada na junção de duas rochas altas: era o único local protegido da vista dos guardas, onde se escondia quando queria namorar -no presídio da ilha, ele passou a receber visitas e se apaixonou pela irmã de um colega de cárcere. “Foi a primeira vez que pude conversar com gente que não estava presa e nem era da repressão”, anota. Já estava detido havia dois anos.
Perto das condições anteriores de detenção, a ilha era um pequeno paraíso: as celas ficavam abertas entre 9h e 16h, era possível tomar sol e caminhar pelo terreno. Ele leva os acompanhantes da excursão - o filho, Raphael Pinheiro Salles, a nora Fernanda Vilela, a companheira Kelly Gonçalves e a historiadora Diane Valdez, que está escrevendo sua biografia - até um cantinho, onde uma rocha bem plana e próxima às águas faz as vezes de praia: “Aqui eu tirava o sapato, molhava os pés no rio, ligava o radinho e ficava ouvindo Roberto Carlos”, recorda.
Ainda assim, lembra da angústia da primeira noite naquela prisão, quando o ruído das ondas do Guaíba batendo nas rochas o fez lembrar do sargento Manoel Raimundo Soares: protagonista do famoso “caso dos mãos amarradas”, a primeira morte incontestável sob tortura do regime militar, ainda em 1966, o militar ficou preso na ilha durante cinco meses.
Ao cruzar a porta em arco, o ambiente escurece: as paredes do século XIX tem espessura de quase um metro, e são poucas as aberturas para entrada de luz. Pinheiro Salles mostra o local onde dormiu quando chegou, um salão amplo, onde foram colocados colchões porque as celas não estavam prontas. Ao lado, três cubículos com paredes construídas até a altura da cintura abrigavam as duchas: um luxo para quem passou quatro meses sem banho no Dops.
No corredor das celas, Pinheiro Salles aponta para a primeira, à direita: “Aqui ficava o Ruy Falcão, sabe, esse que foi presidente do partido”, diz, em referência ao PT, sigla à qual ainda é filiado, mas está afastado. Na terceira, à esquerda, ele entra e bate na parede: “Aqui ficava a minha cama” - eram dois beliches, e havia ainda uma mesinha. “No inverno o frio era terrível”. Olha para cima, notando que o sol agora entra no espaço, por um quadrado aberto no teto: “não tinha nem esse buraco”.
Em compensação, bastava atravessar o corredor e estava na biblioteca do presídio, cujas obras passavam pela triagem do Dops antes de serem liberadas. Não lembra de nenhum livro especial que leu, mas conta uma anedota, acontecida em outra prisão: uma biografia de Trótski que entrou “disfarçada” de um grande volume sobre a História de Roma. “A capa, a lombada, e as páginas iniciais eram mesmo sobre Roma. Mas no miolo é que ficava o interessante. Esse livro eu guardei comigo, tenho até hoje, carimbado com a autorização da censura”, conta.
Estima-se que mais de 100 presos políticos tenham sido encarcerados na Ilha da Pólvora, mas as autoridades jamais revelaram seus nomes. “Era um presídio do Exército, administrado pela Polícia Civil e vigiado pela Brigada Militar. Conseguir informação é quase impossível”, atesta Jair Krischke, fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, que tenta há cinco anos obter a lista completa.
Como não consegue por vias oficiais, vai “interrogando” quem se apresenta como ex-detento para sacar da memória nomes possíveis. À Pinheiro Salles perguntou por pessoas da quais só tinha indicações imprecisas: “Carlos, o gordo”, “Duílio, artista plástico do Rio de Janeiro” e “Flavinho”. Como o interrogado repetiu involuntariamente a resposta que deu a seus torturadores -“não sei”- outros prisioneiros presentes à reunião ajudaram. Carlos era “um companheiro de Canoas, jazzista” e Flavinho, provavelmente era “Flávio Gil Reis”. Se se confirmarem as informações, Krischke já terá 84 nomes em seu levantamento pessoal.
Professor da mulher do delegado
Se durante a estadia na Ilha do Presídio Pinheiro Salles precisava ler apenas o que a censura liberava, no Presídio Central, para onde foi levado na sequência, ele contou com uma freira e um delegado para escolher os títulos que o interessavam. A primeira criou uma escola para presos comuns do Central, na qual os presos políticos atuavam como professores. Além dele, as aulas eram comandadas pelo ex-vereador de Porto Alegre Índio Vargas (PTB) e pelo advogado Carlos Araújo, que foi casado durante 25 anos com a ex-presidenta Dilma Rousseff e faleceu em 2017. “O preso que conseguisse passar no vestibular tinha autorização para frequentar a universidade”, recorda Salles.
Houve algum sucesso no pré-vestibular, de tal maneira que um dia o diretor do presídio o chamou em sua sala: “A minha mulher quer prestar vestibular. Eu quero que o senhor dê aulas para ela aqui no meu gabinete, todos os dias”, ordenou ao prisioneiro, que acatou a determinação de bom grado. Ela também foi aprovada e desde então o militante passou a contar com certa proteção no Central.
“Os livros que a gente queria, bastava pedir para a freira, que fazia entrar. E, quando havia inspeção, o diretor ficava sabendo antes, mandava recolher os livros da cela e deixava lá no gabinete dele até os militares irem embora. Depois devolvia tudo para a gente”, diz, agradecido.
Graças a isso, mesmo as noites frias eram menos ruins quando, sob cobertores, o trio estudava filosofia materialista. “O Araújo é que fazia o chá de cidreira, que aqui no Rio Grande do Sul chama cidró”, recordou abraçado a Índio Vargas, a quem dedicou um de seus livros.
A reunião de amigos foi convocada por Vera Daisy Barcellos, presidenta do Sindicato dos Jornalistas do Rio Grande do Sul e companheira na militância atual - assim como a colega gaúcha, Pinheiro Salles é dirigente da Federação Nacional de Jornalistas. Desde a primeira vez que ouviu a história do ex-preso político, ela se comoveu, lembrando do tempo em que editava a revista Tição (sobre a cultura negra no Rio Grande do Sul), e precisava apresentar todos os textos à censura antes de rodar as edições. “Não era uma violência tão grande como a que ele sofreu, mas já era terrível”, recorda.
Entre os que aceitaram o convite estavam o ex-prefeito de Porto Alegre Raul Pont (PT), o “Raulão”, como era conhecido, e Carlos Antônio Chagas, a quem todos se referem ainda pelo nome de guerra, Beto. Foi com Beto que Pinheiro Salles permaneceu por mais de cinco meses no Dops, onde foram torturados na “fossa”, nome dado à sala de suplícios com vedação acústica no atual Palácio da Polícia gaúcha. Depois, foram transferidos juntos para um quartel militar em Alegrete, na fronteira com a Argentina. O laço que criaram nas masmorras da ditadura levou Chagas a ilustrar a amizade com um verso de tango que diz “No fim da vida tu não terás um peito fraterno para morrer abraçado”. “Pinheiro Salles foi o peito fraterno que eu tive e a quem poderia ter morrido abraçado”, homenageou o amigo.
Em retribuição, o jornalista discursou: “Se tempos difíceis enfrentamos, vocês sempre iluminaram minha vida, resistência e esperança. Nossas mãos nunca se separaram. Vocês estão guardados permanentemente em minha consciência, compromisso e coração”.
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