Afinal, Bolsonaro pode ser preso?
Ameaça do presidente de descumprir ordens do STF e eventuais ilicitudes previstas em lei podem virar ação penal contra Bolsonaro. Após pressão política, presidente recua e diz que falas golpistas em atos do Sete de Setembro ocorreram no “calor do momento”
“Aviso aos canalhas que não serei preso.” A frase foi uma das mais enfáticas ditas pelo presidente Jair Bolsonaro durante o discurso desta terça-feira, no Sete de Setembro, a milhares de apoiadores que foram defender o Governo na avenida Paulista. A preocupação de Bolsonaro chamou a atenção porque, até hoje, todos os presidentes brasileiros que responderam por algum malfeito durante o mandato o fizeram por um crime político —ou de responsabilidade—, cuja pena é o impeachment, e não a prisão. A lei do país permite, no entanto, que Bolsonaro sofra também ações penais que podem levá-lo à cadeia por crimes comuns. Esse poderia ser o caso em um eventual embate com o Supremo, como prometeu Bolsonaro durante os atos ao dizer que não mais cumpriria as decisões do ministro Alexandre de Moraes, autor do inquérito das fake news, que investiga o presidente. Nesta quinta, depois da pressão política que sofreu diante de suas falas, Bolsonaro recuou. Escreveu que lutaria contra Moraes apenas na esfera judicial, e destacou que respeita os demais Poderes da República. ”Quero declarar que minhas palavras, por vezes contundentes, decorreram do calor do momento e dos embates que sempre visaram o bem comum”, disse.
Independentemente do cargo, “qualquer fato definido como crime pelo Código Penal pode ser objetivo de ação penal contra o presidente da República, seja ele relacionado ou não ao mandato”, explica João Paulo Martinelli, doutor em direito penal pela USP e professor da Escola de Direito do Brasil. A promessa de Bolsonaro na Paulista “poderia gerar uma ação penal prevista na Lei de Segurança Nacional, artigo 23: incitar à subversão da ordem política ou social, com pena de reclusão de um a quatro anos”, afirma Martinelli. Revogada e substituída por outra legislação, a Lei de Segurança Nacional ainda não saiu de vigência após a sanção, com vetos, de Bolsonaro. ”E caso venha de fato a não cumprir decisões do Supremo, isso pode ser encaixado no Código Penal, que prevê de 15 dias a seis meses de prisão por desobedecer ordem legal de funcionário público”, complementa o professor.
O descumprimento de ordens judiciais, de acordo com Martinelli, também configura crime de responsabilidade política por ser um atentado contra outro poder, o que por sua vez pode acarretar no impeachment”, continua. Ou seja, depois de concluídos ambos os processos com decisões finais de Senado (no caso de um impeachment) e Supremo (jurídico), Bolsonaro poderia ser afastado do cargo e preso. Os trâmites do julgamento de um presidente por crimes de responsabilidade ainda estão frescos na cabeça dos brasileiros, que acompanharam em detalhes a destituição de Dilma Rousseff, em 2016. O processo de impeachment é político e conduzido, portanto, pelo Congresso Nacional.
Já o crime comum é julgado pelo poder Judiciário, e baseado na solidez das denúncias. No caso de o presidente da República ser o autor do ilícito, apenas a Procuradoria Geral da República pode encaminhar a denúncia ao STF. Reconduzido ao cargo recentemente, o procurador-geral, Augusto Aras, entretanto, tem sido criticado por não tomar decisões que prejudiquem o presidente.
Caso receba a denúncia da PGR, o Supremo repassa, então, o processo à Câmara, que também precisa aprovar o prosseguimento do caso com dois terços dos parlamentares. Se aprovado, o presidente é afastado por 180 dias e o julgamento passa para as mãos do STF, entidade máxima do Judiciário brasileiro, que dá o veredito final.
Inquérito das fake news
Ainda que Bolsonaro tenha indicado que não pretende mais entrar em um embate direto com o Supremo, existem ainda outras fatos que envolvem o nome do presidente e que podem entrar nos critérios de crimes políticos e jurídico. Os principais estão, justamente, no inquérito das fake news. Ele foi incluído pelo ministro Alexandre de Moraes como investigado por possíveis 11 crimes, entre eles calúnia, difamação, associação criminosa e outros previstos no Código Penal. Portanto, passíveis de serem julgados como crimes comuns, além de políticos, uma vez tendo ele os praticado na figura de presidente da República. A depender dos rumos da CPI da Pandemia, Bolsonaro pode ainda responder politicamente por crime de saúde pública ou prevaricação, caso seja provado que seu Governo foi negligente em sua política sanitária, aceitando propinas na compra de vacinas ou boicotando o isolamento social. E também na esfera penal, uma vez que o artigo 267 do Código Penal prevê até 15 anos de prisão para ilicitudes contra a saúde pública ou por expor a vida de outrem a perigos iminentes. “Só dependeria do PGR apresentar a denúncia”, lembra Martinelli.
Já um caso que não entraria nesta conta seria a suspeita de rachadinha, denunciada recentemente pelo ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Patriotas), Marcelo Luiz Nogueira de Santos, ao portal Metrópoles. Segundo o ex-funcionário, o atual presidente sabia de um esquema de desvio de dinheiro no gabinete do seu filho mais velho enquanto deputado estadual no Rio de Janeiro e de Carlos Bolsonaro (Republicanos), enquanto vereador na capital fluminense, entre 2003 e 2007. “Estas denúncias não poderiam prejudicar Jair Bolsonaro porque crimes cometidos antes de assumir a Presidência da República não podem ter qualquer andamento durante o cumprimento do mandato”, esclarece Martinelli. Os dois filhos envolvidos, mesmo que também ocupem cargos públicos atualmente, não têm a mesma imunidade. Eles podem ter seus processos andando mesmo que os crimes não tenham relação com o atual cargo —hoje, Flávio é senador, enquanto Carlos continua vereador.
Essa é uma das vantagens que o chamado foro privilegiado traz ao presidente da República. É por conta dele, também, que Bolsonaro, enquanto estiver no mandato, só pode ser denunciado pelo PGR e julgado pelo STF na área penal. Além disso, não pode ser preso preventivamente mesmo em caso de flagrante. A prisão só viria em caso de condenação do STF. Apenas o Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, poderia pedir sua detenção preventiva, antes do julgamento do crime.
No entanto, o professor João Paulo Martinelli deixa claro que punir um presidente em mandato por um crime comum é “muito incomum”. Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff, os dois presidentes que foram impedidos de cumprir seus mandatos desde a redemocratização, responderam apenas por crimes de responsabilidade. “O caminho natural é priorizar o julgamento político e só entrar nas ações penais quando o réu estiver afastado do cargo, sem a imunidade”, conta o professor. “Uma denúncia do PGR contra o presidente precisa ser embasada em algo muito grave e evidente, porque isso traz uma repercussão política imensa”, justifica ele. “Além disso, cabe à acusação provar o dolo [a deliberação de violar a lei com pleno conhecimento da criminalidade] na denúncia. É comum a interpretação de que o comportamento foi errado, mas não existiu um dolo de incitar pessoas contra uma instituição. Esse entendimento por parte do PGR já inviabilizaria o crime nas falas que observamos de Bolsonaro contra o STF, por exemplo”, conclui Martinelli.
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