Bolsonarismo dobra a aposta na ousadia, desta vez com um novo elemento: as armas
Caçadores e colecionadores, parte da base do presidente, têm registro de 409.000 armas. Autor de atentado contra o STF em 2020 tinha uma, apreendida antes de ele jogar carro no Ministério da Justiça
Com apoio de um séquito cego e fiel, o presidente Jair Bolsonaro segue dobrando suas apostas na má condução do país. Em uma de suas jogadas mais ousadas, ele protocolou o pedido de impeachment do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, em 23 de agosto. Feito depois que o ministro incluiu Bolsonaro como investigado no inquérito das fake news, o pedido foi prontamente rejeitado pelo Senado. Agora, o presidente segue incitando seguidores contra a corte, que precisou tomar providências para evitar riscos em 7 de setembro, quando estão previstas manifestações de apoio a Bolsonaro e contra o STF por todo o país.
No Palácio, governistas, militares da ativa e da reserva analisam mais de 100 decisões dos ministros da Suprema Corte, tomadas entre 2019 a 2021 para os pressionar. Ao chamar os ministros para “falar com o povo” no dia 7 de setembro e dizer que “não somos três Poderes, somos dois”, Bolsonaro estica novamente a corda, numa tensão que já é quase palpável. E há mais um elemento nessa receita: armas.
Os discursos de agitadores de Bolsonaro, chamando ações do Supremo de “ditadura da Toga” ecoam nas ações de seus seguidores, como o advogado Luiz Antonio Iurkiewiecz, que em novembro de 2020 viajou de Santa Catarina a Brasília, armado, para atacar o STF. Ele errou o prédio e jogou o carro contra o Ministério da Justiça, mas a investigação do Ministério Público mostra que Iurkiewiecz “pretendia promover um atentado contra o Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de protestar contra o que considera “uma ditadura do Judiciário” e “mostrar a ruptura institucional”.
Falha atrás de falha
Documentos aos quais o EL PAÍS teve acesso com exclusividade mostram que o atentado poderia ter tido consequências mais graves, já que o autor do crime percorreu mais de 1.500 km entre Lajes (SC) e Anápolis (GO), armado com uma espingarda Boito, calibre 12. Ele foi preso em flagrante em Goiás após uma denúncia de que um homem ostentava uma arma em frente a um hotel. A arma era legalizada (SIGMA 1207058), e só ficou apreendida porque o advogado não tinha autorização para transitar com a espingarda.
Pagou fiança, foi solto no mesmo dia e seguiu seu plano de ir até Brasília cometer um atentado contra o Supremo. Sem a arma, ele apelou para o plano B: jogou o carro contra o Palácio da Justiça. O estrago só não foi pior porque o homem errou o cálculo e o carro caiu no espelho d’água de Brasília. Na perícia do carro, alugado e com um adesivo de apoio a Jair Bolsonaro, foram encontrados também uma espada e um porrete.
Atiradores com pouca fiscalização
No celular periciado foi possível ver que o advogado participava de alguns grupos pró-armas, como “Muda Brasil CAC Sul” e “Muda Brasil - Armas”. Mas, apesar disso, nenhuma busca ou apreensão foi solicitada em endereços ligados ao investigado para saber, por exemplo, se ele tinha outras armas. Os CACs, grupo do qual Iurkiewiecz era parte e que é formado por caçadores, atiradores e colecionadores, são a categoria mais beneficiada por decretos que aumentaram o acesso a armas e munições na era Bolsonaro. Hoje há mais CACs armados no Brasil do que militares. Atualmente, o registro do grupo é superior a 409.000; enquanto os militares somam quase 335.000.
A quantidade se aproxima do efetivo das polícias militares nos Estados brasileiros, que registram 416.000, segundo dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Além da radicalização do discurso contra outros poderes da República e de um incentivo por parte do presidente para o uso de armas de fogo para fins políticos, hoje nós temos milhares de armas a mais nas mãos de civis e sinais mais fortes de cooptação de forças federais pelo presidente”, explica Bruno Langeani, advogado e gerente da área de Justiça e Segurança do Instituto Sou da Paz.
Para ele, este caso não pode ser analisado apenas como um carro jogado contra o Palácio da Justiça. É preciso se aprofundar e investigar ameaças reais que podem, ao contrário desta, “dar certo”. “Se alguém que fazia ameaças públicas na internet, participava de vários grupos de CACs e apoiadores do presidente e que publicou posts durante toda a viagem até Brasília, foi desarmado e preso a poucos quilômetros de Brasília e, mesmo assim, conseguiu realizar o atentado, isso nos traz sérias dúvidas sobre a capacidade dos órgãos de inteligência de prevenir ameaças deste tipo”, analisa.
Inicialmente Iurkiewiecz ficou preso em Brasília, depois foi transferido para uma clínica psiquiátrica e recebeu autorização para aguardar o julgamento em casa. Um laudo mostrou que ele estava com o “juízo crítico reduzido”, o que, alegadamente pode ter afetado parcialmente seu entendimento. A análise foi anexada ao processo sobre “tentativa de prática de atentado por inconformismo político”, no âmbito da Lei de Segurança Nacional. Revogada recentemente em partes, a LSN foi muito usada contra adversários políticos de Bolsonaro.
Apesar de o caso deixar claro o risco do acesso a armas por pessoas com “juízo crítico reduzido”, especialmente em um contexto de acirramento de ameaças democráticas, órgãos de inteligência do Governo, como ABIN e PF, não conseguiram se antecipar a esta ameaça. Na investigação, câmeras de monitoramento do Ministério mostram que Iurkiewiecz esteve no prédio dias antes do crime, segundo a PF, para analisar as condições de segurança.
Este “juízo crítico reduzido”, bem como o fato de Luiz ter sido preso em 2016 com munições ilegais, não impediu que ele conseguisse registrar uma nova arma junto ao Exército, em setembro de 2020, dois meses antes do atentado. Questionado sobre como uma pessoa com antecedentes criminais conseguiu ter acesso a uma nova arma, o Exército disse que não é possível responder dentro do período solicitado —data de publicação— mas que responderá assim que possível.
No início de setembro, o deputado federal e filho do presidente, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), se reuniu com a Polícia Rodoviária Federal e o presidente da Associação Pró Armas para reclamar de abordagem a atiradores. O deputado não gostou da ação de oficiais contra CACs que portavam armas em seus carros, que, ficou claro, é importante. Ao fim da reunião, Eduardo disse no Twitter que a “PRF em breve editará um manual para orientar seus policiais sobre abordagem a CACs”.
Radicais no limite
Durante uma live no início de agosto, o presidente Bolsonaro disse que “a hora dele vai chegar”, acusando o ministro do STF Alexandre de Moraes de atuar “fora das quatro linhas da Constituição”. O entorno bolsonarista tem inflado tais ataques nas redes. Ameaças ao ministro e ao Supremo se acirram com o 7 de setembro. Há alguns dias, um comandante da PM de São Paulo foi afastado do cargo após convocar manifestação contra o STF. No domingo (5) um usuário do Twitter identificado como Cássio Rodrigues Costa Souza, ex-PM em Minas Gerais, disse: “Morra, careca, filho da puta. Terça-feira vamos te matar e toda a sua família, seu vagabundo, advogadinho de merda do PCC. Sou policial militar e nós, militares, te eliminaremos”. O perfil foi apagado, mas deixou o alerta vermelho ligado.
Langeani lembra que Bolsonaro liberou tantas armas mais potentes a CACs e policiais, que mesmo entre as armas de porte, que podem ser carregadas e escondidas com mais facilidade, há armas que ameaçam os níveis de blindagem dos veículos das autoridades públicas. “Estamos falando de veículos de congressistas, ministros do STF. Mas, no limite, como este caso mostra, nem mesmo o Executivo Federal está a salvo”, alerta.
Uma pesquisa do Instituto Atlas Intelligence divulgada nesta segunda-feira mostrou que 30% dos policiais militares entrevistados pretendem ir “com certeza” aos protestos a favor de Jair Bolsonaro e contra o Supremo Tribunal Federal. Somada a pesquisa recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que dá conta de que apoio a teses extremistas aumentou 29% entre policiais militares, é preciso redobrar a atenção.
Para o ex-corregedor da Polícia Militar do Rio de Janeiro e coronel da reserva Wanderby Medeiros, desde o ataque de Luiz Antonio Iurkiewiecz ao Ministério da Justiça no ano passado, a polarização subiu alguns degraus, “em grande parte motivada pela elevação de tom do próprio presidente da República, que, em mais de um momento, foi expresso quanto à possibilidade de quebra da normalidade democrática”. Apesar de não acreditar que as polícias estão envolvidas nos atos como corporação, ele reitera que punir eventuais abusos “é um dever que se impõe aos seus superiores, que inclusive podem estar incursos na prática de crime militar em não o fazendo”.
Mais uma movimentação da ala bolsonarista pode ter impacto nesse sentido. Em 2019 o presidente sancionou projeto de lei que prevê o fim da prisão disciplinar para bombeiros e policiais militares. Apesar de especialistas divergirem sobre isso —há quem julgue inconstitucional— há PMs que hoje só punem certos desvios com advertência e repreensão. Levantamento feito pelo jornal O Globo mostrou que apenas oito governadores pretendem de fato tomar alguma providência e punir PMs por adesão aos protestos desta terça-feira. A instrumentalização das polícias é um risco iminente à democracia que há muito vem sendo tratado sem a devida importância. Às vésperas de um dia D como o desta terça-feira, essa falta deixa uma janela aberta para um desfecho preocupante.
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