Muito do que vai acontecer no 7 de Setembro já aconteceu
Apenas predizer que “não vai ter golpe” é tão estéril quanto os discursos relativizadores que servem a acalmar a opinião pública sobre a robusteza de nossa democracia desde que Jair Bolsonaro se candidatou e assumiu a presidência
Nos últimos dias ganharam fôlego dúvidas sobre o que acontecerá no 7 de Setembro, dia no qual se comemora a Independência do Brasil e que consta no calendário nacional de feriados da nossa República. Os jornais seguem com cada vez mais afinco monitorando a escalada de acontecimentos em direção ao feriado. Especialistas passam a seguir com mais frequência grupos em apoio ao presidente que, camuflados de democratas, ameaçam ir às ruas dispostos a impor um simulacro de liberdade a qualquer preço. O cidadão comum faz o supermercado para poder se resguardar em casa, protegendo-se de qualquer tipo de violência que possa vir a acontecer. Enquanto isso, a capital do país, em pleno feriadão, tem seus hotéis lotados, assim como pipocam notícias e boatos de caravanas de ônibus que rumam com patriotas em defesa do discurso pró-golpe de quem apoia a invasão do Supremo e do Congresso.
O que vai acontecer no dia 7? A esta hora, pouco importa, pois é uma retórica sobre a qual não devíamos perder tempo. Já aconteceu, este é o ponto. Seria mais producente se perguntar em que outro 7 de setembro das últimas décadas desde a redemocratização ocorreu um debate parecido com que há hoje? Posso adiantar a resposta: em nenhum. Sendo assim, se vai ter ou não ter golpe, o que se tem já é muito.
Apenas predizer que “não vai ter golpe” é tão estéril quanto os discursos relativizadores que servem a acalmar a opinião pública sobre a robustez de nossa democracia desde que Jair Bolsonaro se candidatou e assumiu a presidência. É irrelevante também. Não deveria ser mais necessário listar todos os dias os motivos pelos quais devamos nos preocupar com o que atravessamos, como têm feito os incansáveis analistas políticos. Ignorar o “eu sou a Constituição”, “o meu exército”, “dia 7 de setembro será um ultimato”, ignorar o engavetamento de processos por autoridades públicas em favor do presidente, deixar de levar em conta as manifestações políticas cada vez menos tímidas de comandantes de quartéis e o silêncio em dos militares do alto comando das Forças Armadas são erros inadmissíveis que não poderiam ocorrer em um país cuja história possui o passado autoritário que o Brasil tem. Fingir que isso não é importante é o negacionismo da ciência política. Veem-se todas as evidências, mas em nome de uma fé inabalável, diz-se que nada vai acontecer com a democracia. Já aconteceu.
As pesquisas de opinião pública, aquelas cujos crivos são aprovados pela entidade de pesquisa que regula os institutos e não pelas tias e tios do zap, dão que de 20 a 25% do eleitorado brasileiro apoia o presidente da República. Dentre os quais, é possível apontar um tipo de perfil: homens, evangélicos, de cidades do interior, “empresários” (novos empreendedores?), com renda média entre 2 e 5 salários-mínimos e muito pouco escolarizados. Aliás, hoje, e ao contrário de 2018, quanto mais escolarizado, menos chance há em apoiar o presidente. Se explorarmos mais ainda, conseguiremos observar que dentro deste grupo há um de característica mais específica e que tem se dedicado a apoiar qualquer iniciativa do presidente da república. Quando digo qualquer, refiro-me a rezar para a caixa de cloroquina ou bradar que a vacina vem com chip, como se cientistas fossem gastar horas de trabalho para desenvolver em tempo recorde vacinas com microchips para monitorar logo quem.
Esse grupo é representado por mais ou menos 10% a 15% dos entrevistados das pesquisas. A identificação desses grupos está longe de ser infalível, mas parte de toda análise é mesmo intuitiva. Entretanto, podem ser facilitadas com perguntas do tipo que a Genial Quaest Consultoria e Pesquisa tem feito, como “pensando na economia do país como um todo, você diria que no último ano a economia do Brasil (...)”, “qual é seu nível de preocupação com a pandemia da COVID-19?” e monitoramentos como “movimento feminista é exagerado”, “demonstrações de gays/lésbicas incomodam” e “compras/acesso de armas facilitado”. Em todo caso, este não é um percentual irrelevante numa população de quase 148 milhões de eleitores.
Ainda mais quando são insuflados e atiçados a todo tempo pelo próprio presidente e seus filhos. Assim, para um apoiador do presidente, invadir o Congresso, o Supremo, apoiar a prisão de um ministro de uma alta corte por ele estar fazendo o trabalho de defender a Constituição, também é “democrático” e faz parte da tão desgastada noção de “liberdade de pensamento e de expressão”, completamente deslocada da realidade e disfuncional. Portanto, perguntar a eles se querem viver sob uma ditadura ou se prezam a democracia não é suficiente para responder ao desafio deste momento.
O fato é que já foi inoculado em parte da sociedade a possibilidade de golpe e de abuso autoritário. Assim como já avançaram sobre o tecido social a desconfiança e o medo sobre o que está ocorrendo. Essas variáveis, embora intangíveis, são reais e possíveis de mensurar. A prova disso é a quantidade de pesquisas e sondagens com o objetivo de captar essas percepções das pessoas, nas quais volta a ser um indicador de monitoramento a pergunta sobre viver em democracia.
Teremos muito trabalho a fazer para reconstruir políticas públicas dos últimos 30 anos e oferecer mínimos de dignidade a uma população carente. Serão necessários também esforços para recuperar os flancos que fizeram em nossa democracia. O próximo governo será para começar esse trabalho. E vai durar mais do que um. Quem não vê seriedade nisso está por fora.
Carolina Botelho é doutora em ciência política, pesquisadora do Laboratório de Neurociência Cognitiva e Social/Mackenzie e associada do Doxa/Iesp/UERJ.
Apoie nosso jornalismo. Assine o EL PAÍS clicando aqui
Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.