Defesa gasta mais de meio bilhão por ano com pensões acumuladas pagas a parentes de militares

Dados inéditos referentes a 2020 mostram que familiares de militares mortos receberam 19,3 bilhões de reais líquidos. Muitos recebem mais de um benefício, ainda com base na regra de pagamentos vitalícios mudada em 2001. Militares da reserva ou reformados receberam outros 22,1 bilhões

Militares do Exército batem continência para a bandeira do Brasil em frente ao Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência da República, em 7 de julho de 2020.ADRIANO MACHADO (Reuters)

582.542.382,43 de reais. Este é o valor total pago ao longo de 2020 pelo Ministério da Defesa —já com impostos e outros descontos aplicados— a viúvas, filhas e filhos de militares mortos, além de outros dependentes, que recebem pelo menos duas pensões vitalícias acumuladas, segundo os dados divulgados no fim de junho pela Controladoria-Geral da União (CGU). O número é reflexo de regras vantajosas acumuladas pelos membros das Forças Armadas ao longo de muitas décadas, se comparadas às condições gerais de outros servidores e trabalhadores do setor privado. Esses pensionistas parentes de militares mortos receberam 19,3 bilhões de reais líquidos dos cofres do Estado brasileiro entre janeiro e dezembro do ano passado, enquanto que militares da reserva e reformados receberam mais 22,1 bilhões líquidos. O total é de cerca de 41,5 bilhões de reais líquidos. Os dados individualizados de pensionistas militares só foram publicados após o Tribunal de Contas da União (TCU) acatar, em 2019 e em junho deste ano, duas denúncias da agência Fiquem Sabendo, especializada no acesso à informação. Em janeiro de 2020 o Governo havia publicado os pagamentos de pensão a parentes de servidores civis, atendendo parcialmente a primeira denúncia da agência, que reiterou então a solicitação pela transparência dos pagamentos de pensão a parentes de militares. Os números liberados abrangem o ano de 2020 e os dois primeiros meses deste ano.

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O caso mais visível é o de uma mulher que será identificada pelas iniciais, G.R.. De acordo com os dados de fevereiro deste ano, ela recebe uma pensão mensal de 70.106,60 reais brutos (60.589,20 reais líquidos) por ser filha de um marechal do Exército, além de ser viúva de um segundo-tenente da Marinha e de um almirante da Marinha. É também o caso de outra mulher, identificada como A.P.. Ela recebe uma pensão mensal de 63.157,86 reais brutos (54.623,86 reais líquidos) por ser filha e viúva de dois marechais do Exército.

Casos assim abrangem um total de 2.521 pessoas com pensões duplas, dos mais de 226.000 parentes de militares mortos que estão na folha de pagamento do Ministério da Defesa. É para esse contingente que a União desembolsa mais de meio bilhão. A grande maioria possui diferentes graus de parentesco —nesses casos, os pensionistas receberam, em média, 21.037,92 reais líquidos por mês ao longo de 2020. Mas a base de dados também revela que 315 pessoas possuem dois vínculos com o mesmo parentesco. Isso acontece porque aparecem casos de viúvas de dois militares ou ainda por causa de prováveis erros no cadastro liberado pela CGU.

Além disso, mais 60% dos pensionistas cadastrados no Ministério da Defesa (137.808 pessoas em fevereiro deste ano) são filhas de militares das Forças Armadas. Ao longo de 2020, elas receberam, em média, 5.630,07 reais líquidos. Elas são seguidas por cônjuges/viúvas (os), que representam cerca de 29% do total (65.525 pessoas) e receberam, em média, 10.395,59 reais. Filhos homens, mães ou irmãos de militares mortos são minoria dos que recebem pensão do Ministério da Defesa. Levando em conta todos os parentes, a média de recebimentos ficou em 7.203,71 reais líquidos por mês ao longo de 2020 —a cifra inclui os depósitos de 13º e outros adicionais.

A norma que permitia que filhas de militares continuassem recebendo pensões vitalícias de seus pais falecidos, independentemente de seu estado civil*, foi alterada em 2001 no Governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Porém, o benefício não mudou para quem já recebia alguma pensão antes da mudança da regra. Para essas pessoas, valeu o chamado direito adquirido. Mas essa vantagem também se estendeu aos militares que já contribuíam para a Pensão Militar até o fim de dezembro de 2020. Eles puderam optar por uma contribuição opcional de 1,5% para assegurar que, depois de falecerem, suas filhas pudessem seguir com o direito ao benefício vitalício. Ou seja, o direito adquirido seguiu valendo inclusive para os militares que sequer haviam se aposentado naquela ocasião.

Um exemplo é o caso da filha do presidente Jair Bolsonaro, Laura Bolsonaro, hoje com 10 anos. Ela terá direito a uma pensão vitalícia do Exército após a morte de seu pai —que já afirmou, quando ainda era deputado federal, que paga o adicional para que ela tenha o benefício. A nova norma só passou a valer, de fato, para aqueles que começaram a servir em 2001. A legislação vigente diz que filhas e filhos ou enteados podem receber pensões “até os 21 anos ou até os 24 anos, se estudantes universitários ou, se inválidos, enquanto durar a invalidez” —pelo INSS, é somente até os 21 anos ou em casos de invalidez. A base de dados liberada pela CGU não especifica em qual dos casos as filhas beneficiadas se enquadram.

A chamada reforma da Previdência dos militares de 2019 buscou corrigir essas e outras distorções criando uma contribuição a ser paga pelos pensionistas e um adicional de 3% para o caso de filhas de militares. Hoje, a alíquota descontada do valor bruto das pensões é de 13,5% no caso das filhas com depósitos vitalícios, além de outros 3,5% a título de assistência médica, hospitalar e social. Mesmo assim, a reforma incluiu a reestruturação da carreira militar a um custo de quase 100 bilhões de reais, o que incluiu gratificações e adicionais de que variam de 5% a 32% do soldo (o salário) e um aumento na ajuda de custo para quando um militar vai para a reserva.

Os militares atuais e futuros, assim como os servidores do Judiciário, também estão sendo poupados da reforma administrativa enviada pelo Governo Bolsonaro ao Congresso, que prevê mudanças de regras nas carreiras de servidores federais. De acordo com cálculos que o economista Daniel Duque, líder da área de inteligência técnica do Centro de Liderança Pública, fez para o jornal O Globo, 31 bilhões de reais seriam economizados com a inclusão das duas categorias.

Quando questionados sobre privilégios previdenciários em relação aos demais brasileiros, os militares argumentam que os membros das Forças Armadas não se aposentam ao irem para a reserva, já que poderiam ser convocados caso necessário. Por isso, os valores que recebem ao longo da vida não são sequer chamados de aposentadoria ou salário, mas sim de soldo. As vantajosas pensões e gratificações recebidas, explicam eles, é uma forma de reconhecer o serviço prestado por pessoas que estão sempre se deslocando pelo Brasil, às vezes levando suas famílias para os lugares mais remotos do país.

Desigualdade entre as forças

Também existe uma nítida desigualdade entre as forças quando é considerada a soma das pensões pagas ao longo do ano passado. O Exército Brasileiro foi o que mais desembolsou: entre 1º de janeiro e 31 de dezembro de 2020, os pensionistas da instituição receberam cerca 11 bilhões de reais líquidos, do total de 19,3 bilhões que o Ministério da Defesa gasta. Já os pensionistas da Marinha receberam cerca 4,7 bilhões. Por último, os pensionistas da Aeronáutica receberam cerca de 3,4 bilhões.

Essa desigualdade é bastante nítida nas diferentes categorias de pensionistas. As filhas de militares do Exército mortos receberam no ano passado cerca de 5,3 bilhões de reais líquidos. Já as filhas dos militares da Marinha receberam 2,1 bilhões, enquanto que as da Aeronáutica receberam 1,5 bilhão. A mesma tendência é encontrada nos recebimentos de cônjuges/viúvas (os). O Comando do Exército pagou para elas 4,3 bilhões líquido, mas o Comando da Marinha e o da Aeronáutica desembolsaram, respectivamente, dois bilhões e 1,5 bilhão, respectivamente.

Também chama atenção o fato de que 79 pensionistas receberam em fevereiro deste ano, o último mês com dados disponíveis, um depósito acima do teto constitucional, fixado pelo valor do salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), de 39.293,32 reais. Juntos eles receberam cerca de 6,3 milhões de reais líquidos, uma média de 79.343,06 por pessoa. Cabe ressaltar, porém, algumas dessas pessoas receberam o que se chama de “remunerações eventuais”, específicas de determinado mês por causa de decisões judiciais, pagamentos retroativos, entre outros fatores. Foi o caso de um menor de 16 anos que recebeu 435.639,27 reais líquidos em fevereiro deste ano.

*Errata: Em uma primeira versão desta reportagem, o EL PAÍS errou ao dizer que, até 2001, as filhas poderiam receber pensão vitalícia desde que permanecessem solteiras. Na verdade, as filhas maiores dos servidores civis é que precisam ser solteiras para seguir recebendo pensões vitalícias. O texto foi corrigido.

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