Investigado, Ricardo Salles deixa comando do Meio Ambiente em meio a desmatamento recorde
Ministro será substituído por Joaquim Alvaro Pereira Leite, atual secretário da Amazônia e ex-assessor de ruralistas. “Enquanto Bolsonaro estiver no cargo, com aliados como Arthur Lira para passar a boiada no Congresso, o meio ambiente e os povos indígenas não terão um dia sequer de paz”, critica ONG
Ricardo Salles, o homem que dirige a política ambiental do Brasil desde que Jair Bolsonaro se tornou presidente, renunciou nesta quarta-feira. Integrante da tropa de choque ideológica do Governo ultradireitista, Sallles deixa o cargo semanas após a abertura de duas investigações contra ele, uma por ligações com um caso de tráfico ilegal de madeira e outra por supostamente obstruir as investigações em um caso de desmatamento. Sua renúncia coincide com o renovado interesse ambiental dos EUA trazido pelo presidente Joe Biden, que coloca o Planalto sob pressão, e com um forte aumento nos alertas de desmatamento e extração ilegal de madeira na Amazônia, a maior floresta tropical do mundo. No discurso de despedida à imprensa, o agora ex-ministro citou motivos pessoais para deixar o cargo. Salles será substituído por Joaquim Alvaro Pereira Leite, atual secretário da Amazônia da pasta, que foi por anos funcionário da Sociedade Rural Brasileira (SRB), entidade que apoia a bancada ruralista no Congresso.
As pressões para que Bolsonaro se desvencilhasse de Salles eram muitas e antigas. Mas o presidente vinha resistindo até agora. Nesta terça-feira, o mandatário o parabenizou publicamente durante evento em Brasília: “Parabéns, Ricardo Salles. Não é fácil dirigir o seu ministério”. A queda de Salles, após dois anos e meio de embates com ativistas do meio ambiente e com servidores de órgãos técnicos da pasta, como Ibama e ICMbio, acontece justamente num dia agitado em Brasília, quando perturba o Planalto a sombra das denúncias de irregularidades a respeito da compra da vacina indiana Covaxin.
Salles é alvo de dois inquéritos autorizados pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito de operações da Polícia Federal: a Handroantus (responsável por apreensão milionária de madeira ilegal em dezembro de 2020) e Akuanduba (que desbaratou em maio deste ano um esquema de exportação ilegal de toras). Nos dois casos existe a suspeita de que a madeira foi extraída ilegalmente na Amazônia e no Pará. O caso envolve um constrangimento extra: enquanto o Planalto tentava se livrar da imagem de “vilão ambiental” e se aproximar do Governo Joe Biden, foram justamente autoridades norte-americanas que ajudaram a deflagrar a operação da PF que teve Salles como alvo ao denunciar carregamentos suspeitos de madeira.
As autoridades apuram se o ministro e outros funcionários de sua pasta agiram para beneficiar as madeireiras em troca de vantagens financeiras. Para embasar a inclusão de Salles nas apurações, a Polícia Federal apontou supostas “movimentações suspeitas” no escritório de advocacia do qual o ministro é sócio. Agora, com a perda do status de ministro, as investigações devem ser redirecionadas para a primeira instância da justiça. O ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, responsável por autorizar uma das investigações, destacou em seu despacho que as autoridades identificaram “movimentação extremamente atípica envolvendo o escritório de advocacia (...), em valores totais de 14 milhões de reais, situação que recomenda, por cautela, a necessidade de maiores aprofundamentos”.
Nas últimas semanas, a pressão sobre Salles voltou a subir. O celular do então ministro também foi finalmente apreendido, após dias de demora para entregar o aparelho à justiça para análise. No início da semana outro fator de desgaste: o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União solicitou seu afastamento do cargo após um pedido de investigação do TCU que apura “ingerência indevida” em uma licitação do Ibama no ano passado, que definiu quem iria fornecer os helicópteros usados pelo órgão de fiscalização ambiental. De acordo com os procuradores, teria ocorrido “ato de gestão ilegal, ilegítimo, antieconômico e infração à norma legal, com potencial de acarretar dano ao erário” no processo.
“Salles foi sintoma e não doença”
Sob Salles, a Amazônia perdeu 11.088 quilômetros quadrados de árvores no ano passado, 9,5% a mais que no ano anterior. O balanço, divulgado em novembro passado, é o pior dos últimos doze anos. E alertas mensais por satélite mostram que os números deste ano podem ser ainda piores. O envio de milhares de soldados na Amazônia para interromper os incêndios que provocaram escândalo em agosto de 2019 foi ineficaz, apesar da fortuna que custou.
Em seus dois anos e meio na pasta, o Brasil também enfrentou crise de queimadas no Pantanal, que perdeu 26% de sua área para as chamas. Seu trabalho também atraiu a crítica de ex-ministros do Meio Ambiente à direita e à esquerda, que o acusaram de desmonte da política ambiental brasileira. Um dos momentos mais lembrados da gestão do agora ex-ministro à frente do Meio Ambiente é uma frase que ele pronunciou durante um explosivo Conselho de Ministros em abril de 2020, cujo vídeo foi divulgado por decisão do Supremo Tribunal Federal. “Agora que estamos em um momento tranquilo porque a mídia está focada na covid-19, temos que aproveitar para aprovar a boiada e simplificar as regras”, disse. Boiada, neste contexto, como sinônimo de mudanças legais para afrouxar a regulamentação ambiental brasileira.
A queda de Salles foi comemorada com cautela por ativistas e ONGs ligadas ao meio ambiente. Não há esperança de que haja guinada na política ambiental, que segue as diretrizes que Bolsonaro publiciza desde a campanha. “Enquanto Jair Bolsonaro estiver no cargo, com aliados como Arthur Lira [presidente da Câmara] para passar a boiada no Congresso, o meio ambiente e os povos indígenas não terão um dia sequer de paz”, disse, em nota, a ONG Observatório do Clima. Foi uma referência ao avanço na Câmara, nesta quarta, de projeto que fragiliza a demarcação de terras indígenas. “Salles foi sintoma e não doença”, conclui a ONG.
Aliado de Salles na pasta até agora, o novo ministro Álvaro Leite tampouco arrancou aplausos entusiasmados, especialmente por causa de seu trabalho para uma das entidades mais emblemáticas do agronegócio, tradicionalmente crítico das regulações ambientais. De acordo com uma reportagem da BBC, Joaquim Álvaro Pereira Leite integra uma família tradicional de fazendeiros de café de São Paulo que pleiteia um pedaço da Terra Indígena Jaraguá, em São Paulo, cuja demarcação segue na justiça. Segundo seu currículo disponível no site do Ministério do Meio Ambiente, o novo ministro tem formação em Administração de Empresas, pela Universidade de Marília (Unimar), no interior de São Paulo, e MBA pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), em São Paulo.
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