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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Kathlen e seu bebê, mais duas vidas negras interrompidas no Brasil

As fotos mostram uma jovem feliz com a descoberta da gravidez, mas não deu tempo de ela experimentar seu futuro. Foi baleada em meio à ação policial em Lins de Vasconcelos, no Rio de Janeiro. Nos últimos cinco anos, 15 grávidas foram baleadas no Grande Rio

Kathleen Romeu, baleada durante operação policial no Rio.
Kathleen Romeu, baleada durante operação policial no Rio.Instagram
Cecília Olliveira

“Bom dia, neném”. Este foi o último post da Kathlen Romeu em seu perfil no Instagram, na manhã desta terça-feira, 8 de junho. Quem vê as fotos, se depara com uma jovem feliz com a recente descoberta da gravidez, relatando um misto de surpresa, alegria e medo.

Kathlen tinha medo dos desafios da maternidade, das coisas que uma mãe de primeira viagem ia descobrir pelo caminho. Mas não deu tempo. Ela foi morta aos 24 anos em meio a uma ação policial em Lins de Vasconcelos, na zona norte do Rio de Janeiro. Curiosamente, o bairro é um dos poucos onde ainda há Unidade de Polícia Pacificadora, a UPP, que foi estrela da política de segurança na última década e faliu.

Moradores foram às ruas protestar contra a morte da jovem designer de interiores. E na capa de um dos maiores portais de notícias do país era possível ler a manchete “Protesto fecha autoestrada Grajaú-Jacarepaguá”. A morte vinha em detalhe, abaixo. Kathlen, uma jovem negra, morreu na contramão atrapalhando o trânsito.

Essa desumanização é ainda corriqueira no jornalismo e nas ações policiais. Nos últimos cinco anos, 15 grávidas foram baleadas no Grande Rio, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado. Além de Kathlen, outras sete mulheres não resistiram aos ferimentos e morreram. Houve ainda 10 bebês baleados quando ainda estavam na barriga das mães ―só um deles sobreviveu.

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É uma tragédia cotidiana e não é exceção. A forma como as operações e ações policiais são feitas no Rio de Janeiro nos coloca em risco. E exatamente por isso o Supremo Tribunal Federal, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, conhecida como ADPF das Favelas, restringiu operações policiais não urgentes durante a pandemia. A medida foi estabelecida após a morte do adolescente João Pedro, em casa, durante uma operação policial em São Gonçalo, no ano passado.

Em um ano de ADPF 635, completados há três dias, os tiroteios caíram 23% em relação ao período anterior à vigência da medida. O número de pessoas baleadas caiu quase 30%. Mas a proporção de tiroteios com vítimas, que ocorrem majoritariamente em casos onde há agentes públicos de segurança, se manteve estável. Isso indica que o comportamento das polícias não mudou, elas apenas atuaram menos.

No último dia 24, o ministro Alexandre de Moraes pediu vista sobre o julgamento da “ADPF das Favelas”. O ministro Edson Fachin, relator do caso, defende que o Governo do Rio de Janeiro elabore e encaminhe à corte, um plano para reduzir a letalidade policial no Estado e controlar violações de direitos humanos pelas forças de segurança fluminenses.

Isso está parado. E esta discussão é urgente.

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