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Chile
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

A longa reconstrução da esquerda chilena

A cólera da maioria dos chilenos com o legado pinochetista e a conciliação promovida pelo centrismo eletriza tempos de grandes mudanças. A esquerda chilena, após meio século, está a poucos passos de retomar o fio da história.

Deputada  chilena Camila Vallejo (E) com a vereadora eleita do Partido comunista Virginia Palma (C) em evento na Plaza de Armas em Santiago.
Deputada chilena Camila Vallejo (E) com a vereadora eleita do Partido comunista Virginia Palma (C) em evento na Plaza de Armas em Santiago.MARTIN BERNETTI (AFP)

Muitos analistas consideram que o fato principal das eleições para a Convenção Constituinte chilena, ocorrida em 15 e 16 de maio, foi a derrota da lista formada por partidos de direita, Vamos por Chile, encabeçada pela União Democrática Independente (UDI) e pela Renovação Nacional (RN), base do presidente Sebastian Piñera. Com 20,56% dos votos e 37 das 155 cadeiras, os setores conservadores realmente estão em maus lençóis, com obstáculos tremendos para chegar na terça parte dos representantes, a cláusula de barreira que poderia impedir alterações na Constituição, conforme previsto pela norma eleitoral.

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Mas esse não é a única conclusão relevante das urnas. Talvez nem seja a mais destacada para projetar a disputa presidencial que deverá ocorrer em novembro de 2021. Outro elemento de forte repercussão é a consolidação de um bloco de esquerda, fruto da aliança entre o Partido Comunista e a Frente Ampla, denominado Apruebo Dignidad, que recupera protagonismo para as correntes anticapitalistas.

A lista dessas organizações alcançou 18,74% dos sufrágios, conquistando 28 vagas, além das legendas que a compõem terem obtido resultados emblemáticos nos pleitos para governador e prefeito, como a incrível vitória no município de Santiago, o terceiro maior do país. Esse sucesso está marcado, além do mais, pela presença de jovens e mulheres, participantes das gigantescas manifestações de 2019, de onde emergiram lideranças que se somaram a quadros mais antigos.

Desde a eleição de Salvador Allende, em 1970, a esquerda não conseguia superar o centro democrático. Dessa vez, ainda que tenha ficado um pouco atrás da direita, ultrapassou a chapa Apruebo, puxada pelos partidos que conduziram a transição conservadora da ditadura para a democracia, a saber, Partido Socialista (PS), Partido Pela Democracia (PPD) e Democracia Cristã (DC). Essa lista alcançou apenas 14,45% dos votos, com 25 cadeiras.

O avanço é ainda mais notável se os independentes, que conquistaram quase metade dos postos constituintes, forem divididos por inclinação ideológica, já que as agremiações progressistas indicaram candidatos nas listas sem-partido. Feita essa conta, o bloco de esquerda deve chegar a 53 constituintes, contra 37 da direita e 36 do centro. Os indígenas terão 17 vagas e os independentes sem lista, 12.

O centrismo, mesmo enfraquecido, será o fiel da balança. Somado à esquerda, abrirá caminho para os dois terços necessários (103 votos) à aprovação de uma Constituição de ruptura com a herança pinochetista e o neoliberalismo. Nos casos em que se juntar à direita, impedirá mudanças.

A primeira votação importante da Convenção Constituinte, aliás, poderá ser sobre a manutenção da regra definida na convocação do atual processo, sem aval comunista, exigindo maioria de dois terços, ou sua substituição por um sistema de maioria absoluta (50% mais um). Logo de cara, caso assim seja, ficará nítido se o centrismo continuará ou não na lógica dos últimos trinta anos, de concessões à direita. Provavelmente a DC fará muitos acordos com a UDI e a RN, talvez acompanhada, em algumas ocasiões, pelo PPD e outras legendas menores. Mas os socialistas terão a chance de retificar a trilha que adotaram a partir de 1987, quando desfizeram laços históricos com o PC para se associarem aos democratas-cristãos e à lenta auto-reforma do regime militar.

Vale lembrar que, até aquele momento, o PS estava junto com os comunistas e o Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR, em espanhol), entre outros grupos, no Movimento Democrático Popular (1983-1987), que pregava uma rebelião de massas para derrubar a tirania e estabelecer um governo progressista. Após o fracasso da tentativa de execução do ditador Augusto Pinochet, em 1986, operada pelo braço armado do PC, a Frente Patriótica Manuel Rodríguez (FPMR), a ala mais moderada dos socialistas conquistou o comando da legenda e a conduziu ao centro.

Há mais de três décadas, portanto, com tensões e divisões nos últimos anos, o PS vem se alinhando ao PPD e a DC, forjando a Concertação, depois chamada Nova Maioria, uma coligação que foi desmontando aos poucos mecanismos da ditadura, mas preservando a Constituição de 1980 e a política neoliberal introduzida pelos generais após a derrubada de Salvador Allende.

O giro socialista, associado à implosão do MIR no final dos anos 80, levou os comunistas a um duradouro isolamento, que somente começaria a ser revertido a partir de 2011, com a eclosão de lutas estudantis e sociais que revelavam a fadiga do modelo chileno. Vários novos coletivos se formaram, dissidências socialistas começaram a se separar do centrismo e o solo para renascimento da esquerda voltou a se mostrar fértil.

O cansaço era tão grande e a caminhada havia sido tão difícil que o próprio PC, entre 2013 e 2018, se incorporou provisoriamente à Nova Maioria para recuperar espaço institucional e parlamentar, chegando a participar do segundo governo da socialista Michelle Bachelet.

Os comunistas, nas eleições presidenciais de 2017, apoiaram o candidato da coalizão centrista, Alejandro Guillier, que quase não chega ao segundo turno contra Sebastián Piñera. Surgira uma aliança de esquerda, chamada Frente Ampla, agrupando correntes recém-formadas e outras que tinham sido parceiras dos comunistas na travessia do deserto, lançando uma candidata, Beatriz Sánchez, que teve 20,27% dos votos, contra 22,70% do nome governista.

Os dirigentes do PC se deram conta que sua política de tantos anos, favorável à criação de uma coalizão da esquerda anticapitalista, estava frutificando e não fazia sentido se afastarem dessa perspectiva. Após a vitória da direita na segunda volta da corrida presidencial, os comunistas romperiam com o centro e retornariam, na prática, à orientação anterior, em meio a tapas e beijos com a Frente Ampla. Essa reviravolta os deixaria como a legenda mais harmonizada com o estallido social, a revolta das ruas que eclodiu em 2019.

A esquerda já vinha construindo uma alternativa independente quando ficou claro o colapso do sistema político. Radicalmente contrária ao neoliberalismo, encontrou espaço em um imaginário social que agora execrava o arranjo entre direita e centro que moldou o período pós-Pinochet. A aliança entre PC e FA, nas eleições constituintes, foi a confluência natural dessa dinâmica. O resultado obtido também.

Mas a batalha decisiva ainda está por vir: a disputa presidencial. Várias pesquisas apontam o comunista Daniel Jadue na dianteira das preferências. Um dos líderes da Frente Ampla, Gabriel Boric, também apresentou seu nome para debate. Tudo indica, porém, que os movimentos de ambos estão subordinados à construção de unidade entre as forças progressistas. Pela primeira vez desde o triunfo allendista, um postulante de esquerda terá chances reais de conquistar a Presidência do Chile.

O mais provável, aos preços de hoje, é que ocorra um segundo turno contra a coalizão de direita, bastante enfraquecida pelo desgaste do governo Piñera. O centro, por sua vez, além de revelar debilidade eleitoral no processo constituinte, é o setor com mais problemas internos e maiores dificuldades para apresentar um programa comum, capitaneado por uma candidatura única. Enquanto a DC e a maioria do PPD rechaçam alternativas à esquerda, o PS vive a crise de sua opção centrista, com segmentos exigindo o retorno partidário ao leito histórico de esquerda.

O deslocamento dos socialistas para um compromisso com frente-amplistas e comunistas, arrastando outras legendas, poderia até mesmo levar a uma vitória em primeira volta, conferindo potente legitimidade a um eventual governo popular. Essa carta, no entanto, continua a ser repudiada pela direção da agremiação, aprisionada aos compromissos com seus sócios na transição por cima. De todo jeito, será muito difícil para o PS, e mesmo para o PPD, negar apoio à esquerda em segundo turno, ainda que a imersão no território dos interesses burgueses tenha corroído o próprio código genético.

Muita coisa pode mudar nos próximos seis meses. Não há dúvidas, porém, que a cólera da maioria dos chilenos com o legado pinochetista e a conciliação promovida pelo centrismo eletriza tempos de grandes mudanças. A esquerda chilena, após meio século, está a poucos passos de retomar o fio da história.

Breno Altman é jornalista e fundador do site Opera Mundi.

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