Guaracy Mingardi: “A polícia fez tudo errado no Jacarezinho. Nossa legislação não tem pena de morte”
O ex-investigador e cientista político, que estuda há mais de duas décadas as polícias e a segurança pública no Brasil, diz que faltou inteligência à Polícia Civil. Ele defende investigação independente sobre o massacre
O ex-investigador e cientista político Guaracy Mingardi define a operação na favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio de Janeiro ―que deixou 28 mortos na última quinta-feira, entre eles um policial que atuava na ação―, como um “morticínio”, que não deveria ter acontecido caso a Polícia Civil agisse pautada pela investigação e inteligência, e não pela lógica do confronto. Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o ex-policial estuda organizações criminosas há mais de duas décadas e destaca a militarização das polícias como um problema ao funcionamento da instituição. “O tráfico se armou, a polícia foi se armando cada vez mais e a população foi ficando cada vez mais aprisionada no meio deles.”
A operação Exceptis tinha como objetivo cumprir 21 mandados de prisão contra investigados por aliciar crianças e adolescentes para o tráfico de drogas no Jacarezinho, região cujo narcotráfico é dominado pelo Comando Vermelho, e onde vivem cerca de 40.000 habitantes. Dos 21 investigados, três foram mortos e outros três presos. Foram apreendidos seis fuzis, 16 pistolas, uma submetralhadora, 12 granadas e uma escopeta calibre 12. Mas ao menos 13 pessoas mortas não eram investigados na operação, que é considerada a mais letal da história do Rio e a segunda maior chacina registrada no Estado. Há vários relatos de violações de direitos humanos feitas por moradores do Jacarezinho. Mas a Polícia Civil nega ter descumprido regras, critica o “ativismo judicial” dos detratores da ação e insiste que todos os mortos eram criminosos, com exceção do agente.
O EL PAÍS entrevistou o especialista em segurança pública neste sábado, por telefone. Na conversa, Guaracy Mingardi ―que é autor do livro Tiras, Gansos e Trutas: cotidiano e reforma na Polícia Civil―, apontou o que considera os principais erros cometidos pela corporação.
Pergunta: Como avalia o resultado da operação da última quinta na favela do Jacarezinho?
Resposta: Foi uma coisa que não deveria ter acontecido. É o tipo de operação que não deve ocorrer, porque virou uma guerra. Na verdade, o trabalho que deveria ser feito não era esse. A Polícia Civil não está lá para fazer operação atirando; deve investigar, ir atrás dos criminosos, cumprir os mandados de prisão, mas não trocar inúmeros tiros em uma área urbanizada. Então foi uma coisa que começou errada ―por ter sido uma operação desse tipo―, e continuou errada o tempo todo. Inclusive, se não tivessem feito essa bobagem, e sim esperado para, aos poucos, ir prendendo cada um deles não teria morrido um policial, nem ninguém.
P: Como podemos qualificar esta ação?
R: O que aconteceu foi uma chacina, um morticínio, uma tragédia. Estão falando que todos eram criminosos, mas eu não vi. E mesmo que fossem criminosos, a nossa legislação não tem pena de morte então não era para eles serem mortos, e sim presos. Quando acontece algo desse porte, não se pode dizer outra coisa a não ser que foi uma chacina, uma tragédia, e a polícia fez tudo errado.
P: Chama a atenção o fato de a operação mais letal da história do Rio de Janeiro ter sido feita pela Polícia Civil, cujo papel é investigar? O que levou a uma ação tão letal pela instituição?
R: A Polícia Civil tem o dever de cumprir os mandados de prisão. Eram 21 investigados por suspeita de aliciar menores para o tráfico de drogas, motivo da entrada policial. Só que o problema é a forma. Como a Polícia Civil se militarizou demais ―e isso em todo o Brasil―está agindo através de operação, quis pegar todo mundo junto, e não pega. Vários deles não deveriam nem estar lá, mas para você saber onde eles estão precisa de investigação, um trabalho de inteligência muito bom. Quando se faz uma operação dessas botando tanta gente e pega menos de um terço do que era procurado, tem alguma coisa errada. A inteligência não foi tão boa, a informação que chegou não foi boa. Para localizar pessoas, por exemplo, quando teve uma série de guerras na Rocinha, depois de um certo tempo, um dos principais criminosos foi preso pela Polícia Civil sem trocar um tiro fora da Rocinha, porque ele estava se escondendo e através de investigações e prenderam sem dar um tiro, é essa a ideia.
P: A Polícia Civil afirma que a única execução foi a do policial André Frias, e que todas as outras mortes foram para neutralizar os traficantes. Mas soube-se depois que pelo menos 13 mortos nem sequer eram investigados naquela ação. Como vê isso?
R. Quando você entra atirando não escolhe alvo. Acaba matando quem está reagindo, quem não não tem nada a ver com nada. Não se pode fazer uma guerra na área urbana, a polícia não existe para isso. Na guerra, você entende: morre inocente e quem tem a ver, mas é uma guerra. Agora, o que aconteceu, não. Era para ser feito a prisão de alguns criminosos, afinal, não conseguiram pegar todos eles. Eles fizeram tudo isso para pegar pouca gente e mataram muitos, ou seja, a ideia está toda errada. Eu sempre falo isso: quem faz operação é médico, polícia não tem que fazer operação.
P: Em qual contexto acontece esta militarização das polícia e desde quando?
R: As do Rio começaram a se militarizar antes, por conta do Comando Vermelho. Na época [final dos anos 1970] e depois, por conta de outras organizações criminosas (que eu não chamo de facções), as polícias começaram a se armar muito. Primeiro a PM e depois a Civil partiram para esse tipo de guerra. E por trás disso tudo está a ideia de guerra contra às drogas, então você deixa a droga mais cara e na mão dos criminosos, dos mais violentos possíveis, e não adianta nada. Você faz uma guerra prolongada e nem consegue diminuir a droga circulando? Alguma coisa está errada nessa política. Como eu disse, não é exclusivo do Rio de Janeiro, acontece quase que no país todo, mas não em todos os Estados, essa militarização da repressão ao tráfico, mas as cacas maiores dos últimos tempos aconteceram lá.
O tráfico se armou, a polícia foi se armando cada vez mais e a população fica aprisionada no meio deles.
P: É possível dizer que há um antes e depois do Comando Vermelho no que diz respeito à atuação das polícias?
R: No Rio você sempre teve aquele problema de dificuldade da polícia em subir o morro, mesmo antes das organizações criminosas, já se tinha as quadrilhas, era difícil de chegar, bem complicado. Quando o Comando Vermelho começou a tomar o espaço, como no Santa Marta e na Cidade de Deus, ficou cada vez mais difícil para a polícia chegar. Depois que os criminosos começaram a usar fuzil, a polícia também começou a usá-los e foi evoluindo nisso. Cito uma bobagem carioca de fuzil, nas palavras de Wilson Witzel (governador do Rio que sofreu impeachment por irregularidades na área da Saúde), que é o seguinte: o tiro de precisão do helicóptero não existe, por causa da trepidação não dá para dar tiro de precisão. Não adianta ter um atirador muito bom que você não consegue. Essa é a maior estupidez de todas, ou seja, para resumir: o tráfico se armou, foi ficando cada vez mais armado e pesado, a polícia foi se armando cada vez mais e ficando pesada. São dois lados muito preparados para trocar tiros, e a população fica aprisionada no meio deles: da polícia e dos criminosos. Se não pegarmos pesado agora para impedir, vai continuar a acontecer.
P: O que distingue as atuações do Comando Vermelho e do Primeiro Comando da Capital (PCC), as maiores organizações criminosas do Brasil, e como isso influencia no trabalho da polícia?
R: O contexto histórico do Rio de Janeiro, do armamento, da polícia que foi se militarizando e tem a questão do Comando Vermelho, que o pessoal é mais porra louca mesmo, muito diferente do PCC, por exemplo. O pessoal do PCC matar policiais? Precisa de autorização lá de cima no PCC. Então, na verdade, o Comando Vermelho é cheio de porra louca que fazem o que quer. Só que a polícia não pode ser cheia de porra louca, a polícia é uma organização profissional e tem que agir profissionalmente, essa é a diferença. Os criminosos não estão nem aí em troca de tiros e atiram no meio da multidão. Eles não estão nem ligando se isso ocorrer, agora, a polícia, tem que se importar com isso. A polícia está ali para proteger a população, essa é a função dela.
P: A Organização das Nações Unidas pediu na sexta-feira que haja investigação independente para elucidar a chacina. Quem deveria conduzir as investigações deste episódio?
R: Eu sou favorável às investigações independentes assim como sou favorável à Ouvidoria de polícia com poder de investigar. Ouvidoria de polícia não constituída por policiais, mas sim por pessoas que são contratadas pelo Estado e que verificam elas antes de passar adiante. Mas aí é um caso que vai além de uma simples Ouvidoria de polícia: é o caso de que vai ter que ter gente com poder. Na verdade, você teria que ter provavelmente uma ação do Ministério Público, porque o MP pode convocar pessoas para depor. Então isso deveria partir do Ministério Público. E, mesmo que não fosse o MP, deveria ser gente com o poder de convocar pessoas para depor. Não adianta você só ouvir a polícia ou só a população. Você tem que ouvir todo mundo.
P: O Ministério Público (MPRJ) acompanhou na sexta-feira a perícia nos corpos das pessoas mortas no Instituto Médico Legal (IML) e diz que está fazendo uma investigação independente sobre o caso.
R: Pelo menos o MP deu um passo. O problema é que muitas vezes temos o Ministério Público muito ligado, muito amigo da polícia. Tem que ser parceiro de trabalho, mas não amigáveis demais. Quando o policial comete um erro, tem que ser responsabilizado. Não é um erro de um policial, eu não estou culpando todo mundo da operação. É o que aconteceu. Quem foram os reais culpados? Quem mandou aquilo? Quem organizou aquilo? É necessário verificar se não houve execução, porque uma coisa é matar criminoso em um tiroteio e a outra coisa é executar. Quem deixou aquilo acontecer?
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