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Governo Bolsonaro
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Prazer senhor ministro, eu sou a filha do porteiro

A filha do ‘paraíba’ se formou com o programa criticado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, no país onde a crise da educação “não é uma crise, é um projeto”, como afirmou Darcy Ribeiro

Gabriella Figueredo e os pais na formatura.
Gabriella Figueredo e os pais na formatura.Arquivo Pessoal

Era janeiro de 2019, lá estava eu num hotel na Barra da Tijuca, onde seria a colação de grau dos formandos de Letras e dos demais cursos da PUC-Rio. Eu estava sentada, enquanto a cerimônia começava, meus pais muito distantes de mim, mas eu pensava neles, pensava no quão aquele dia era importante para nós.Um filme passou na minha cabeça. Lembro do dia em que comemorei a aprovação de uma grande amiga, também filha de porteiro, no vestibular da UFF. Ela havia passado para o curso de Direito. Gritamos juntas no telefone. Depois, seria eu que comemoraria minha aprovação na PUC-Rio. Nunca pensei que estudaria nessa universidade, nos primeiros dias de aula estava sempre nervosa. E ouvi quando estava no primeiro período de um morador do prédio onde meu pai trabalha que a PUC não era lugar para mim, pois era uma universidade muito cara.

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Mal sabia ele que naquela universidade privada estudou a vereadora Marielle Franco e a deputada estadual do Rio de Janeiro, Renata Souza, ambas crias da Maré. Quando digitamos PUC-Rio no Google, em geral aparecem os ex-alunos famosos e ilustres, como o ex-ministro Pedro Malan, o ator Rodrigo Santoro e o atual prefeito do Rio, Eduardo Paes. Porém, eu e muitos alunos da periferia, negros e não tão famosos, tivemos também a oportunidade de frequentar as salas de aula da universidade localizada na Gávea, Zona Sul do Rio. Isso só foi possível graças aos programas sociais como o Prouni, o Fies e as cotas raciais criadas nos governos Lula e Dilma. Eu tenho orgulho de ter estudado com alunos bolsistas Prouni, eram os primeiros da família a ingressarem numa universidade, como eu. Eu também tenho orgulho de ter visto alguns dos meus colegas da escola ―do ensino fundamental ao médio― receberem um diploma universitário. Muitos deles moradores da Rocinha e do Vidigal, filhos de empregadas domésticas, manicures e taxistas.

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Eu fui aluna de escola pública, nunca a frase do grande Darcy Ribeiro fez tanto sentido desde a época em que o César Maia foi prefeito do Rio de Janeiro. “A crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”. Eu escapei da aprovação automática porque conclui o ensino fundamental em 2004, e sou grata à minha professora de Português na escola Henrique Dodsworth, em Ipanema, que nos incentivava a gostar de ler. Lembro que na sétima série, ouvi de uma professora que o pai trabalhava vendendo alfinetes para pagar a sua escola particular. Ela era negra e não parava de repetir em suas aulas que deveríamos estudar e muito. Era algo que eu já ouvia dentro de casa, meus pais não puderam estudar e eu deveria aproveitar a oportunidade que eles me davam.

Gabriella na colação de grau da faculdade.
Gabriella na colação de grau da faculdade.Arquivo Pessoal

Eu certamente não chegaria à universidade sem o apoio e o incentivo dos meus pais. Confesso que não fui uma aluna brilhante, talvez até alguns ex-professores do ensino médio confirmem isso, mas não seria exagero dizer que a graduação mudou a minha vida. Ao caminhar para receber o canudo das mãos de um dos meus professores favoritos do curso de Letras, o Fred Coelho, eu lembrei o quanto eu havia aprendido, quantos escritores eu havia lido. Lembro também que o Fred pegou na minha mão e me disse para continuar tentando ingressar na pós-graduação, para não desistir, já que eu não havia passado na seleção da instituição. Aquele incentivo, mais um, também foi importante. Ao longo do ano de 2019, enviei muitos papeis para cinco universidades na Espanha, com o objetivo de consegui uma bolsa de estudos.

Já estava decidida a estudar na terra de Cervantes, comecei a ler por conta própria alguns autores espanhóis, comecei a me interessar por o tema ainda muito presente na sociedade: a Guerra Civil Espanhola (1936-1939). A sombra do vento se tornou um livro muito importante para mim, quando lia o personagem Daniel caminhando pelas Ramblas, jamais pensei —logo eu que pensava que viajar era coisa de rico— que em 2020 estaria caminhando por Barcelona. Na entrevista para a Universidade de Navarra eu disse que há um grupo de fotógrafos ainda pouco estudados, um deles, o Francesc Català-Roca. Suas fotos foram capas dos livros do autor espanhol Carlos Ruiz Zafón (1964-2020), e queria estudá-los. Surpresa com o meu conhecimento, a diretora do mestrado disse que eu já havia sido aprovada.

Em setembro de 2019, estava eu no aeroporto Antônio Carlos Jobim, pronta para embarcar, tentando esconder o choro, já que meu pai tentava esconder o seu e a minha mãe também. Talvez arrependidos de terem uma única filha. Estava triste por um lado porque perderia o primeiro jogo da semifinal da Libertadores do Flamengo contra o Grêmio. Pensava que se o meu time ganhasse do time do Renato Gaúcho, seria a primeira vez que eu e uma geração de torcedores flamenguistas veria o Flamengo numa final de Libertadores. Por outro lado, estava muito feliz, eu iria realizar um sonho de estudar numa universidade estrangeira e na Espanha.

Em novembro de 2020, já de volta ao Rio, fui tema de uma reportagem no EL PAÍS. Fiquei emocionada. Hoje, maio de 2021, escrevo este artigo em resposta à fala do senhor Ministro da Economia, Paulo Guedes sobre o FIES. Prazer, senhor Ministro, eu sou a filha do porteiro.

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