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Incertezas sobre política social se multiplicam com novo Governo

Para especialistas, compromissos econômicos do Programa de Temer não condizem com discurso de manter programas sociais

Marcelo Camargo (Fotos Públicas)
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Em 2015, com um aceno para o mercado, Michel Temer lançou o documento Uma Ponte Para o Futuro. Em linhas gerais, as propostas ali contidas defendem que o Estado brasileiro está inchado, que os gastos públicos são muito altos e que agora, mais do que nunca, faz-se necessário um forte ajuste fiscal. Inicialmente, o então vice-presidente defendia que o documento não passava de uma contribuição para o debate de como o Brasil poderia retomar o caminho virtuoso do crescimento e da estabilidade econômica. O que se viu, contudo, foi que as sugestões transformaram-se em seu programa de Governo, que agora está, de fato, em vias de começar.

Se, ao lançar o Uma Ponte Para o Futuro Temer se preocupou em tranquilizar o topo da pirâmide social, anunciando cortes de gastos e sondando nomes fortes no mercado financeiro para a economia – sondou Armínio Fraga primeiro e depois fechou com Henrique Meirelles para a pasta do Ministério da Fazenda –, também fez a base dessa mesma pirâmide tremer diante da falta de informações claras sobre o que pretende para a área social. O áudio vazado há algumas semanas em que o então vice-presidente falava sobre “sacrifícios” inevitáveis para a retomada da tranquilidade econômica, só fez aumentar o medo e as especulações de que programas sociais estariam no alvo dos cortes do novo Governo.

Em seu primeiro pronunciamento como presidente interino, no dia 12, poucas horas depois de o Senado confirmar o afastamento de Dilma Rousseff, Michel Temer falou muito sobre os desafios econômicos, e a necessidade de restaurar a confiança dos investidores. Dedicou uma parte para falar da necessidade da consolidação de políticas sociais. “Reafirmo, e o faço em letras garrafais: vamos manter os programas sociais. O Bolsa Família, o Pronatec, o Fies, o Prouni, o Minha Casa Minha Vida, entre outros, são projetos que deram certo, e, portanto, terão sua gestão aprimorada”, garantiu.“Você tem que prestigiar aquilo que deu certo, completá-los, aprimorá-los e insertar outros programas que sejam úteis para o país. Eu expresso, portanto, nosso compromisso com essas reformas”, completou.

A questão é entender o que Temer e sua equipe entendem por 'gestão aprimorada'. Na sexta-feira 13, seus ministros concederam entrevistas falando da necessidade de um pente fino em alguns projetos como o Bolsa Família, que hoje atende 47 milhões de brasileiros, ou cerca de 25% da população.

Arquivo pessoal de Ana Fonseca
Arquivo pessoal de Ana Fonseca

A divulgação parcial de um documento chamado Travessia Social, parece ter sido também uma tentativa de dirimir essas incertezas. Contudo, com um texto que fala mais sobre o tamanho do Estado brasileiro do que de programas sociais específicos, especialistas avaliam que ainda não está claro como Temer fará para conciliar a tese de que os programas não sofrerão com os cortes planejados. Além disso, as dúvidas se tornam ainda maiores já que o texto – que chegou a ser divulgado em um PDF de 20 páginas pela revista Veja e que mereceu comentários de seus idealizadores em entrevistas e reportagens – ainda não foi confirmado como oficial pelo Instituto Ulysses Guimarães, responsável por sua elaboração.

A proposta apresentada pelo Travessia Social fala em focar o Bolsa Família, por exemplo, nas “10 milhões de pessoas que compõem os 5% mais pobres” do Brasil. Para Ana Fonseca, que foi secretária-executiva do Bolsa Família, isso significaria colocar milhares de pessoas novamente na linha da pobreza. “Se levarmos em consideração que esses 5% são relativos a todas as famílias brasileiras, teremos apenas 3,2 milhões de famílias que permanecerão no programa. Agora, se esse número se referir ao total de famílias beneficiárias do programa, restaria apenas 0,7 milhão de famílias no Bolsa Família. Uma exclusão de 13,2 milhões”.

Em seu Facebook, o presidente do Fundação Ulysses Guimarães, Moreira Franco, disse que a intenção é expandir o programa para esses 5% mencionados e não cortá-lo para o resto. Contudo, o texto do Travessia Social não deixa isso claro. Ao falar de uma faixa de 70 milhões – que iria dos 5% mais pobres até 40% do total da sociedade brasileira – o programa diz que lida com pessoas plenamente inseridas no mercado de trabalho e que só precisariam da recuperação da economia para voltarem a progredir na vida, sem mencionar, contudo, se elas receberiam algum auxílio do Governo. “É tudo muito confuso, eles não dizem de onde tiram esses dados e, a partir do texto, você não consegue entender claramente quem será cortado do programa. Agora, eu me pergunto por que o programa está em discussão se ele impacta apenas 0,5% do PIB, segundo dados do IPEA”, argumenta Fonseca.

O economista Ricardo Paes de Barros, cujos estudos sobre o assunto serviram de inspiração para o Travessia Social, tem dito à imprensa que o Bolsa Família pode ser aperfeiçoado, como afirmou à jornalista Ana Carolina Cortez, em entrevista ao EL PAÍS. Ao mesmo tempo, disse à revista Época que programas sociais precisam apenas de “ajustes de relojoeiros” e que “não há como afirmar que para qualquer ajuste fiscal o Brasil precisa tirar dinheiros das políticas sociais”. Para Tereza Campello, que foi ministra do Desenvolvimento Social de 2011 até agora, contudo, as propostas contidas no Travessia Social são muito mais do que “ajustes de relojoeiro”.

“A diferença entre um programa para 10 milhões de pessoas e o Bolsa Família é a diferença de um limão para uma melancia. O que eles propõem é um programa assistencialista para pessoas que estão à beira da calamidade, o que temos hoje no Brasil é uma política de proteção social focada na população de baixa renda”, defende Campello. Ainda segundo ela, há carência de informações na proposta de Temer. “O documento diz, por exemplo, que os mais pobres estão em áreas esparsas e de difícil acesso, mas o IBGE mostra que pelo menos metade da população mais pobre do Brasil está em centro urbanos”, diz.

De volta para o passado?

“O Travessia não é nada mais que um esforço para fazer caber alguma faceta social dentro do Uma Ponte Para o Futuro, que é o que tem a primazia”

Os sinais desencontrados sobre o futuro dos programas sociais são, segundo Daniel Cara, especialista em questões educacionais e coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, um reflexo das prioridades de Temer. “O Travessia não é nada mais que um esforço para fazer caber alguma faceta social dentro do Uma Ponte Para o Futuro, que é o que tem a primazia”, comenta. Para Cara, todas as ações do Governo Temer estarão condicionadas ao programa econômico de cortes de gastos. Não à toa, ele alerta que áreas como Educação e Saúde devem ser preteridas.

“Uma das marcas do Ponte, que também está refletida no Travessia, é a proposta de acabar com a vinculação obrigatória do orçamento (DRU) e isso terá impacto imediato nessas duas áreas”, argumenta Cara. Hoje, os dois ministérios contam com recursos obrigatórios do orçamento que, segundo ele, são essenciais para que se possa planejar o futuro. O Plano Nacional da Educação (PNE) – aprovado em 2014 depois de um longo processo e negociações entre instituições, sociedade civil e Governo –, por exemplo, estaria ameaçado. Uma das metas do PNE, que pretende aumentar os gastos federais para Educação em no mínimo 10% do PIB até daqui 10 anos, pode ser inviabilizada, pois depende dessa vinculação obrigatória.

Cara também destaca o fato de que o Travessia Social sugere um aumento de participação do Governo Federal no ensino básico, mas que não explica como faria isso sem aumentar gastos. “O compromisso da União com a educação básica já está na Constituição, se a proposta é aumentar esse compromisso estamos falando de mais recursos, talvez a partir da criação de um imposto específico para a área, mas isso seria um contrassenso com o resto do programa que defende corte de despesas”, argumenta. Outras ideias apresentadas, classificadas por ele como “balas de prata falhas”, já são comprovadamente ineficazes. “Também se fala em bonificação de professor por resultados positivos de alunos, mas isso, em todos os lugares do mundo em que foi testado, não deu certo”, diz.

Na outra ponta, as propostas apresentadas para saúde pública também não empolgaram especialistas. Em reportagem do jornal carioca O Globo, o pesquisador Mário Scheffer, da Universidade de São Paulo, classificou as ideias como uma cópia do que o senador Aécio Neves (PSDB) propôs durante a eleição presidencial de 2014. “As propostas plagiadas têm custo altíssimo, como universalizar o Programa de Saúde da Família, aumentar urgência e emergência, entre outros. Sem resolver o subfinanciamento, sem novas fontes, como a CPMF exclusiva, governo nenhum fará essa mágica na saúde”, disse Scheffer ao jornal.

“O mais importante é entender que o Travessia Social é só um apêndice dentro do programa maior que é o Uma Ponte Para o Futuro”, reforça Cara. Nesse sentido, se uma das ideias mais defendidas é cortar ministérios, por exemplo, é fácil concluir que políticas irão se perder. “Uma das discussões atuais no Brasil era desmembrar o ministério da Educação em dois: um para ensino de base e outro para superior, sendo que o segundo seria aglutinado pelo de Ciências e Tecnologias. Eu nem concordo com essa visão, mas é curioso ver que agora, muito provavelmente, a decisão vai ser completamente contrária ao debate, já que a pasta da Cultura foi incorporada à Educação”, diz.

Depois de um longo período de instabilidade política – marcado pelo impeachment de Dilma Rousseff –, dentre a lista de incertezas que emergirão nos próximos meses, a questão social estará no topo dela. Segundo Cara, o que se verificará, de fato, a partir de agora é se o Travessia Social do Uma Ponte Para o Futuro terá o potencial de se converter em “um atalho para o passado”.

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