Amor e militância contra a ditadura: “A morte de Merlino nos uniu definitivamente”
Angela Mendes de Almeida, de 82 anos, foi companheira do jornalista Eduardo Merlino, morto em 1971 nos porões da ditadura militar. Ela relata como o assassinato reforçou seu compromisso com a luta que travavam contra o regime, que chegou a levá-la ao exílio
Amor e militância são duas palavras que sempre andaram juntas ao longo da vida de Angela Maria Mendes de Almeida. Nascida há 82 anos em São Paulo, essa socióloga, historiadora e cientista política passou a militar no movimento estudantil, como muitos outros de sua geração, pouco depois do golpe militar de 1964. Foi nessa época que conheceu o jornalista Luiz Eduardo Merlino, por quem se apaixonou. A união que começou em 1968 foi brutalmente interrompida pela ditadura militar três anos depois, em 1971, quando ele foi preso, torturado nos porões do regime e assassinado. Tinha apenas 23 anos. Ela, 32.
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Muitas coisas aconteceram nos 50 anos seguintes. Ela se exilou na Europa, construiu uma carreira acadêmica, teve um filho, retornou ao Brasil... Permaneceu, contudo, a lealdade a seu companheiro e à história que viveram juntos. “Foram apenas três anos, mas eram laços muito fortes. Pode ser que, se ele tivesse sobrevivido, nós tivéssemos nos separado. Mas sua morte me uniu definitivamente a ele”, conta ela, em conversa com o EL PAÍS por chamada de vídeo.
Almeida e a família do jornalista ainda hoje lutam nos tribunais para que o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos cérebros da tortura na ditadura, morto em 2015, seja responsabilizado pela morte de Merlino. Uma ação por danos morais chegou a ser ganha na primeira instância, que condenou Ustra a pagar uma indenização aos familiares. Mas em 2018, quando um recurso da família do coronel foi julgado pela segunda instância, os desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo isentaram o torturador ignorando testemunhas e citando um laudo forjado da ditadura. Ainda cabe recurso. Outra ação, na esfera criminal, esbarrou na lei da Anistia, de 1979, e foi rejeitada tanto na primeira como na segunda instância.
O início da militância
A militância de Almeida começou por volta de 1966 no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Nessa época cursava Ciências Sociais na antiga Faculdade de Filosofia e Ciências da USP, em sua mítica sede da rua Maria Antonia, no centro de São Paulo. As principais discussões da esquerda passavam por ali. Mas, por discordar da linha do partido, de tendência stalinista, acabou se transferindo em pouco tempo para o Partido Operário Comunista (POC), de tendência trotskista.
Foi presa em duas ocasiões, uma delas por participar do famoso congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), de Ibiúna, no interior de São Paulo, em 1968. “Na ocasião 800 alunos foram levados, uma cena dantesca”, recorda. Alguns chegaram a ser torturados, mas ela escapou desse destino nas duas vezes em que acabou detida.
Eduardo Merlino era jornalista. Com passagem por veículos como o Jornal da Tarde e a Folha da Tarde, começou a frequentar as reuniões estudantis como profissional da imprensa. “Ele era bem mais novo que eu, mas tinha uma experiência profissional muito grande. Naquele tempo não era necessário ter diploma para ser jornalista, então desde os 16 anos trabalhava na imprensa convencional”, conta Almeida. Os dois se conheceram em uma dessas reuniões, mas começaram a se perceber, e a se apaixonar, durante um encontro convocado pelo então líder estudantil José Dirceu num apartamento do edifício Copan, em São Paulo. “Nessa época eu morava com meus pais, e ele com uns amigos”, recorda Almeida.
Poucos meses depois passaram a morar juntos, e também a militar juntos. Angela se tornou Taís e Luiz Eduardo se tornou Nicolau. E com esses codinomes seguiram, juntos, convencidos de que o futuro do Brasil deveria ser socialista.
Morte de Merlino e mergulho na clandestinidade
O Ato Institucional de número 5 (AI-5) radicalizou o regime, cabendo a Merlino levar para o exterior as primeiras denúncias sobre a tortura em pau de arara que acontecia nos porões da repressão. Os dois deixaram o Brasil no final de 1970, quando ela já carregava duas condenações nas costas: uma de quatro anos e meio de prisão por pertencer a uma organização clandestina, o POC; e outra, de um ano de prisão, por participar do Congresso da UNE. “Em Paris tínhamos um núcleo de discussões de militantes que iriam voltar para a América Latina”, recorda Almeida. “Nosso projeto era retornar e propor aos que estavam no Brasil a aderir à Quarta Internacional, que naquele momento tinha sede em Bruxelas e tinha uma posição favorável à luta armada como movimento de resistência, não para tomar o poder.”
Merlino retornou ao Brasil primeiro. Iria preparar a volta de Almeida. O que veio em seguida, quatro dias depois de sua chegada, está bastante documentado: no dia 15 de julho de 1971, o jornalista foi detido por agentes do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna de São Paulo (DOI-CODI) – que era comandado por Carlos Alberto Ustra — na casa de sua mãe, em Santos. Foi submetido a 24 horas de tortura no pau de arara e, depois, acabou abandonado em uma solitária. Sofreu gangrena nas pernas decorrente da tortura e não recebeu tratamento médico. Deixado de lado por seus algozes, acabou morrendo.
O horror pelo qual passou foi testemunhado por pessoas como Eleonora Menicucci de Oliveira, Laurindo Junqueira Filho e Paulo Vanuchi. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, instaurada pelo Governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), a Comissão Nacional da Verdade, instaurada pelo Governo Dilma Rousseff (PT), e a Comissão Estadual da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo narram com detalhe a captura, prisão e tortura do jornalista. Também reconhecem a responsabilidade do Estado brasileiro e de Ustra pela sua morte.
Almeida só tomou conhecimento do assassinato de seu companheiro um mês e meio depois, num tempo em que a comunicação era mais difícil. Foi um choque que a deixou desnorteada. “Foram alguns meses prostrada”, conta ela. “Mas fui amadurecendo o que devia fazer. E achei que a melhor coisa para honrar a memória dele era continuar os projetos que tínhamos feito em Paris.”
Veio então a segunda fase de sua militância. Mudou-se para o Chile e passou a viver na clandestinidade, com nome e nacionalidade suíços. “Cheguei a ter dois passaportes”, relata. Somente alguns companheiros brasileiros sabiam de sua origem. “Clandestinidade é quase uma mudança de personalidade. Eu, Angela, não existia mais”. O período chileno se encerrou com o golpe de Estado de 1973. Almeida ainda precisou se refugiar na embaixada do Panamá para não ser presa. De lá, fez um périplo por três países —Panamá, Bélgica e França— até finalmente chegar, no início de 1974, na Argentina. E lá permaneceu até julho de 1975, quando a repressão contra a esquerda ganhou intensidade —no ano seguinte, seria a vez dos militares argentinos tomarem o poder.
Almeida conseguiu então ajuda para viajar à França e solicitar asilo político. “Naquela época, as pessoas que pediam asilo eram muito bem recebidas. Eles não perguntavam nada, aceitavam o que você dizia”, conta. Sem documentos que comprovavam sua identidade real, recorreu a recortes de jornal para provar quem era. E assim Angela voltou a ser Angela.
De lá, seguiu para Portugal, onde fixou residência e passou a dar aulas numa universidade, especializando-se em história do comunismo na Europa. Vivenciou os últimos dias da Revolução dos Cravos, que levou a democracia ao país, e teve uma vida tranquila. Durante alguns anos viveu com um brasileiro e com ele teve seu primeiro e único filho —nascido poucos dias antes da assinatura da lei da Anistia, em 1979. Seu nome, Nicolau. Uma homenagem ao antigo companheiro.
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Após 11 anos afastada do Brasil, em 1981, Almeida retornou com seu filho e dois diplomas de pós-graduação debaixo dos braços —um mestrado em História Política dos séculos XIX e XX e um doutorado em Ciências Políticas. Mas não encontrou um ambiente favorável para falar sobre o que havia acontecido 10 anos antes. Faltou sensibilidade. “Quando busquei meus companheiros que militavam comigo, ninguém queria ouvir falar de mortos. Estavam engajados em construir o PT”. Ela conta que a prioridade da esquerda nessa época era constituir o partido, tomar o poder e só então falar sobre a ditadura.
Almeida acredita que essa negligência custou caro ao Brasil. A recusa em passar a limpo os crimes da ditadura durante a transição para a democracia foi um erro que permitiu a volta da extrema direita ao poder, em 2018, com a eleição de Jair Bolsonaro —um confesso admirador da ditadura militar e de Ustra. Ela também enxerga uma relação umbilical entre a repressão promovida pelo Estado naqueles anos e os abusos policiais que ainda hoje acontecem nas periferias brasileiras e que afetam a população pobre e negra. Ao varrer a história para debaixo do tapete, ela diz, o aparato repressivo continuou a funcionar sem que a esquerda, que finalmente chegou ao poder em 2003, reconhecesse o problema.
Após retornar da Europa, Almeida buscou emprego no Rio de Janeiro e desenvolveu sua carreira acadêmica nos 20 anos seguintes. Publicou livros, chegou a participar de dois grupos —o Tortura Nunca Mais e o SOS Mulher— e também acompanhou os trabalhos das comissões que documentaram os crimes da ditadura militar. Mas, ainda assim, não encontrou tão cedo um ambiente favorável, o acolhimento necessário, para falar sobre a morte de Merlino. Isso só começou a mudar em 2007, quando ela e a família começaram a acionar a justiça.
— Tantos anos depois, como se sente com relação a essa época e a Merlino?
— Vou te contar uma coisa que não costumo comentar... Mas até o momento em que comecei a falar publicamente dele, em 2007, eu me sentia emocionalmente muito ligada a ele. Eu me lembro de circunstâncias, uma sensação que tive durante muitos anos, de que talvez essa morte pudesse não ter acontecido. Cheguei a sonhar com isso duas vezes. Depois que comecei a falar, ele de repente se tornou uma pessoa pública. É como se eu tivesse tirado essa presença constante dele dentro de mim. Fiquei mais apaziguada.
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