Presos morreram por falta de comida adequada em cadeia do Piauí, aponta relatório do Ministério da Saúde
Seis detentos perderam a vida e 56 foram internadas por surto de beribéri, causada pela falta de vitamina B1, em unidade de Altos, aponta investigação da pasta. Caso em 2020 chama atenção para problemas na dieta em presídios com visitas familiares restritas
A falta de uma alimentação básica é realidade nas celas brasileiras. Ao menos seis pessoas presas na Cadeia Pública de Altos (CPA), no Piauí, morreram no ano passado devido a um surto de beribéri, doença causada pela falta de vitamina B1 e relacionada a uma alimentação inadequada e pobre em nutrientes. Em suma, morreram desnutridas. A conclusão consta em um relatório técnico do Ministério da Saúde obtido pelo EL PAÍS. A pasta fora acionada pelo Ministério Público do Piauí (MP-PI) para verificar as condições da prisão, gerida pela Secretaria da Justiça do Governo Wellington Dias (PT). De acordo com o documento, 199 dos 656 presos na CPA foram atendidos no serviço de saúde com sintomas e 56 foram internados.
A investigação avaliou os casos atendidos nos serviços de saúde, entrevistou presos e avaliou o ambiente da CPA, bem como suas rotinas, cardápios diários e faturas de compras de comida. Uma de suas principais conclusões é a de que “a alimentação dos detentos apresentava características de monotonia alimentar, com presença predominante de carboidratos simples, em especial o arroz branco”. Também chamou a atenção dos técnicos que entre a entrega do jantar e do café da manhã havia um intervalo de 15 horas, um período muito longo de jejum. Além de arroz, o cardápio do almoço e do jantar continha basicamente frango ou galinha. No café da manhã, cuscuz e bolacha. “Concluiu-se que a hipovitaminose causada pela monotonia alimentar / dieta pobre em vitaminas, especialmente a B1, é a etiologia provável do surto”, afirma o documento.
Com a pandemia de coronavírus, a entrega quinzenal de alimentos por parte de familiares —apelidada de sacolão— foi interrompida, o que “pode ter agravado o quadro de hipovitaminose a que os detentos se encontravam expostos”. De acordo com o relatório, esse hábito, “representava uma fonte importante de acesso a frutas pelos detentos na CPA”.
Inaugurada no final de setembro de 2019 com o intuito de desafogar o sistema prisional do Piauí, a CPA, localizada a cerca de 30 quilômetros do centro da capital Teresina, possui capacidade para 603 detentos e é a penitenciária mais bem estruturada do Estado. Mas nem por isso deixou de enfrentar sua primeira crise poucos meses depois de sua abertura. Entre março e junho de 2020, mais de uma centena de presos começou a apresentar sintomas como vômitos, dor abdominal, náuseas, febre, dormência, edema, fraqueza, dor de cabeça, entre outros. A maioria dos casos se deu entre o final de abril e o final de maio.
Na ocasião havia relatos sobre a ocorrência de alagamentos e retorno de esgoto por ralos, pias e latrinas, além da quebra da bomba da caixa d’água e o reabastecimento do local por caminhão pipa. Além disso, a penitenciária havia passado por uma dedetização. Todo esse contexto alimentou hipóteses, algumas dadas como certas pelo Ministério Público e pela imprensa local, de que os presos haviam tido leptospirose, intoxicação exógena e doenças de transmissão hídrica e alimentar. Mas todas elas foram descartadas pela equipe do Ministério da Saúde enviada ao local de 15 de junho a 7 de julho de 2020.
As seis mortes registradas geraram revolta e resultaram em protestos dos familiares nas ruas de Teresina. O MP-PI abriu inquérito para investigar o adoecimento dos presos e chegou a pedir pela exoneração do secretário da Justiça, Carlos Edilson Rodrigues Barbosa de Sousa —que se mantém no cargo até hoje. A crise foi tamanha que Governo Wellington Dias decretou, ainda em junho do ano passado, estado de emergência por 90 dias na CPA. “Nossa reivindicação é que as famílias sejam devidamente indenizadas, que esse massacre ganhe espaço no debate público e as várias autoridades e instituições envolvidas sejam responsabilizadas. Mas, principalmente, que tragédias assim possam ser evitadas”, afirmou Frente Estadual pelo Desencarceramento do Piauí, que ainda pede que as condições nos presídios piauienses sejam radicalmente transformadas. O EL PAÍS tentou entrar em contato com a Secretaria da Justiça do Piauí, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.
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O MP-PI chegou a concluir que os detentos haviam sido envenenados por causa de uma dedetização “mal feita”, mas acabou pedindo apoio da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, para identificar o que estava ocorrendo. A investigação foi coordenada pelo Programa de Treinamento em Epidemiologia aplicada aos serviços do Sistema Único de Saúde (EpiSUS), mas no relatório não consta a data precisa de sua publicação. Este jornal também entrou em contato com o Ministério da Saúde, mas não obteve resposta.
De acordo com os técnicos do Ministério da Saúde, metade dos presos adoecidos são provisórios e têm, em média, 24 anos. “A investigação não teve o objetivo de estimar a magnitude do surto. Quanto a este aspecto, os números apresentados são possivelmente subestimados”, informa ainda o relatório, indicando que “parte dos adoecimentos pode ter ocorrido silenciosamente nas celas, sem ter chegado a receber atendimento da equipe”. O documento também destaca que foi identificada uma mudança do cardápio a partir da segunda quinzena de maio, “o que pode ter proporcionado uma breve reposição de tiamina [vitamina B1] e favorecido o declínio da curva [de contágios]”.
Entre as recomendações dos técnicos da pasta à Secretaria da Justiça de Piauí estão as de “administrar tiamina em todos os detentos”, promover uma avaliação clínica contínua e, sobretudo, “diversificar os alimentos no cardápio oferecido aos detentos, com inclusão de vísceras, verduras e frutas, alimentos ricos em Tiamina e outras vitaminas necessárias para uma alimentação adequada e saudável”.
A Frente Estadual pelo Desencarceramento do Piauí afirma que são “costumeiras” as denúncias de detentos e seus familiares “sobre questões relacionadas à falta de alimentação básica, bem como de torturas e maus tratos”. Nesse sentido, ressalta que “a maioria dos detentos que adoeceu estavam sem receber os sacolões de suas famílias, que traziam componentes alimentícios diversos e balanceados, o que indica que tragédias assim não ocorreram antes por conta da atuação de familiares.”
Em nota enviada ao EL PAÍS, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), vinculado ao Ministério da Justiça, recorda que o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) divulgou uma resolução em 2017 estabelecendo parâmetros de nutrição e de prestação de serviços de alimentação no sistema prisional, baseado no Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde. O Depen também garante que acompanhou as ações realizadas pelo Ministério da Saúde e que, em maio de 2020, solicitou informações sobre “as providências administrativas e corretivas” adotadas enfrentar a situação na CPA.
Para a Frente Estadual pelo Desencarceramento do Piauí, o caso não é isolado e reflete uma política de Estado. “Não podemos normalizar as mortes evitáveis de seis pessoas e o adoecimento severo de dezenas que ficaram com sequelas pro resto da vida como erros de ingenuidade e obra do acaso dentro de uma instituição prisional do Estado”, afirma.
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