Um carro funerário se aproxima. Em seguida outro. E mais outro

Pandemia pressiona o sistema funerário. No cemitério de Vila Formosa, o maior da América Latina, que fica em São Paulo, são realizados mais de 80 enterros diários. Familiares se aglomeram em volta dos veículos a espera de enterrar seus mortos

Trabalhadores do cemitério da Vila Formosa, em São Paulo, carregam um caixão nesta quarta-feira, 24 de março.Toni Pires

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Um carro funerário se aproxima. Em seguida outro. E mais outro. Vão surgindo de repente, vindos de várias direções. No cemitério municipal de Vila Formosa, o maior da América Latina, na cidade de São Paulo, cinco veículos ficam estacionados ao mesmo tempo diante da quadra 101. Alguns chegam a formar fila. Em volta deles, familiares aguardam a vez de enterrar seus mortos. Nem todos faleceram pela covid-19, convém dizer. Mas as vítimas dessa doença são maioria. “Só nesta manhã foram uns 70 enterros”, dizia um dos trabalhadores em conversa com outros três colegas nesta quarta-feira, relatando a pressão do sistema funerário como um dos sintomas do agravamento da pandemia de coronavírus, que neste mesmo dia fez que com que o Brasil superasse a marca de 300.000 mortes.

Quando os veículos começam a chegar, o trabalho volta a ser incessante. Para carregar um caixão são necessários pelo menos quatro trabalhadores, dois na frente e dois atrás. Todos vestem um macacão especial de proteção. “Chego em casa com o maior cuidado, só falta pegar minha carteira com vara de pescar. Porque aqui a gente está exposto”, comenta um coveiro. “Estamos aqui porque precisamos estar.”

Os velórios são em sua maioria simples. Não só pelo fato de a Vila Formosa ser destino daqueles com menos recursos financeiros, mas também porque nem velório existe direito. A cerimônia com muitos amigos e familiares é restrito para quem morre por causas naturais ou doenças que não sejam a covid-19. Não há tempo nem espaço suficiente para velar as vítimas da pandemia. Por causa dos protocolos rígidos, o caixão chega lacrado no cemitério e, acompanhado por um grupo pequeno de familiares, segue direto para o enterro. Os veículos maiores chegam a levar quatro caixões ao mesmo tempo. Tampouco há muitas flores, homenagens e rezas. Tudo precisa ser feito às pressas, como em uma linha de produção de fábrica.

Uma vez retirados do carro funerário, os caixões são levados por alguns minutos até a cova recém-aberta. O tempo só se alonga no momento de descer o caixão. É quando vem a dor da despedida. O silêncio impera no cemitério da Vila Formosa, mas é quebrado quando um familiar cai aos prantos e grita alto sua indignação —como uma senhora que, nesta quarta-feira, precisou ser deitada no chão e socorrida.

Trabalhadores do cemitério da Vila Formosa, em São Paulo, carregam um caixão nesta quarta-feira, 24 de março.Toni Pires

Risco de colapso funerário

O Estado de São Paulo bateu o recorde de 1.021 mortes nesta terça-feira, mesmo dia em que o Brasil registrou 3.251 óbitos. A pandemia obrigou que cemitérios de todo o país ativassem novas e antigas áreas e deixassem centenas de covas preparadas para receber as vítimas da covid-19. É o caso da quadra 101, onde foram realizados os enterros desta quarta-feira na Vila Formosa. O sindicato dos servidores municipais de São Paulo vem chamando atenção para o aumento dos sepultamentos nos cemitérios públicos e privados e no crematório, o que gera um risco de colapso no sistema similar ao que já ocorre nas redes pública e privada de hospitais —a taxa de ocupação de leitos de UTI é superior a 91% tanto no Estado como na Grande São Paulo. “Na terça-feira [16 de março], foram realizados 336 sepultamentos. No último sábado [20 de março] foram inacreditáveis 372″, afirmou a entidade em nota. De acordo com ela, o número de sepultadores é muito baixo para dar conta da alta demanda.

“Eu nunca vi nada parecido. Antes da pandemia, quando havia um fim de semana com muitas mortes, na segunda-feira não havia tantos enterros assim”, comenta um agente da Guarda Civil Municipal (GCM), admirado pela pequena aglomeração de famílias que esperam enterrar seus mortos. Mas ele mesmo já se acostumou com a perda. Nesta semana soube da morte de um colega de profissão e amigo. Na semana passada foram oito pessoas próximas que faleceram. “Mesmo quando não é alguém próximo, toda semana ficamos sabendo nos grupos de WhatsApp de colegas que morreram”, conta. Ao ser perguntado sobre o que achava da determinação do Governo João Doria (PSDB) de começar a vacinação dos profissionais de segurança no início de abril, afirmou: “Isso deveria ter acontecido junto com os profissionais da saúde bem antes, porque estamos sempre na rua.”

Mais carros funerários chegam, mais pessoas são enterradas. Até o fim do dia são realizados uma média de 87 enterros na Vila Formosa, o mais demandado do município, segundo a Prefeitura. É muito até mesmo para o maior cemitério da América Latina. Em janeiro e fevereiro, a média de sepultamentos por dia no local foi de 45. Em maio, junho e julho de 2020, eram 55 enterros. “Deus é tão bom com a gente que ninguém aqui da linha de frente pegou a doença”, comenta um coveiro. “Mas se eu pegar, já avisei pra minha mulher me dar logo um pau, porque não quero ir pro hospital ficar intubado. Se eu pegar, não me intuba não.”

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