Levar pacientes com covid-19 de norte a sul do país: “A maior dor foi ter que dizer ‘não’ aos mais graves”
Paulo Mendonça, médico do Amazonas, relata a tensão de remover pacientes para outros Estados após o colapso da rede de saúde de Manaus. Diante da superlotação de leitos em 17 unidades da federação, as transferências interestaduais de pacientes estão esgotadas
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Às duas horas da tarde de 18 de janeiro, o médico Paulo Mendonça decolou em um avião da Força Aérea Brasileira de Manaus rumo a Goiânia, levando 16 pacientes com covid-19 que precisaram cruzar mais de 3.000 quilômetros do país para receber assistência de saúde. Quatro dias antes, a capital do Amazonas havia vivido o seu pior dia da pandemia, com doentes morrendo asfixiados dentro de hospitais por falta de oxigênio. Pronto-socorros lotados fechavam as portas a novos enfermos e a fila por leitos se acumulava, quando Mendonça assumiu a missão de avaliar pacientes e levá-los para hospitais de outros Estados. “Todos eles ali estavam totalmente vulneráveis”, lembra. Pacientes com uma situação mais crítica eram acomodados nos assentos dianteiros para o caso de piorarem durante a viagem e precisarem de uma intervenção mais invasiva, que deveria ser evitada a todo custo.
Durante aquele vôo ―e em muitos outros que viriam nas semanas seguintes― Mendonça sentiu a adrenalina subir. Ele sabia que precisava estar preparado caso fosse necessário intubar pacientes, que já sentiam dificuldade para respirar e poderiam piorar com a pressão reduzida pela altitude. Cilindros de oxigênio haviam sido presos cuidadosamente nas poltronas ―por conta dos riscos, transportá-los em vôos com passageiros é algo restrito. Essa tensão se somava às muitas dúvidas que Mendonça tinha sobre os cuidados que os pacientes receberiam a partir dali, longe de casa e de suas famílias. Mas ele diz que o receio se dissipou já na pista de pouso de Goiânia, quando viu dezenas de profissionais de saúde e ambulâncias à espera deles. “O vôo durou duas horas e meia. Havia 25 ambulâncias perfiladas. Eu dizia: ‘só temos 16 pacientes’. Vi que quem os recebia também queria que tudo desse muito certo. A lágrima veio. Foi uma cena emocionante, que nunca esquecerei”, diz. “Foi um ganho humanitário interestadual que nunca imaginei.”
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Clique aquiDurante semanas, 16 Estados cederam leitos clínicos, que se somaram a vagas nos hospitais federais, para auxiliar o Amazonas, o primeiro a colapsar neste ano pela alta de casos de coronavírus. Depois, Rondônia também contou com a força-tarefa para as remoções diante de sua situação dramática. Nos últimos 40 dias, 645 pacientes cruzaram o país em busca de assistência médica ―82 deles faleceram e 119 seguem internados. O Brasil assistiu a uma operação sem precedentes no SUS, que significou uma esperança para doentes diante do colapso de oxigênio nas suas cidades de origem e reduziu drasticamente a fila de espera por leitos clínicos e especializados. Mas a estratégia esgotou-se ante o grave avanço simultâneo da pandemia em várias regiões do país. A demanda por hospitalização cresceu na maioria dos Estados, e 17 capitais já operam no limite, com elevadas taxas de ocupação de UTI. Sem muita margem para as transferências interestaduais, governadores e prefeitos agora administram transferências dentro do próprio Estado. Em Natal, por exemplo, pacientes esperavam uma vaga de UTI dentro de ambulâncias. Já em Minas, uma força tarefa tenta desafogar hospitais do Triângulo Mineiro com transferências para outras regiões do Estado. O desafio geral dos gestores é conseguir reduzir a velocidade de contágio ao mesmo tempo em que tentam ampliar a rede de saúde.
Paulo Mendonça viajou a pelo menos sete Estados neste ano, de norte a sul do país, levando pacientes com covid-19. Passou por capitais como João Pessoa, Rio de Janeiro, Natal, Curitiba e Palmas. Fez ao menos 10 viagens durante três semanas, transportando mais de 150 pacientes. Agora, atua nas transferências feitas do interior do Amazonas para a capital Manaus, que ampliou o número de leitos disponíveis. Achou que nas cidades menores encontraria casos mais leves, mas tem visto pacientes moderados a graves que necessitam de uma estrutura de saúde mais robusta que a que está disponível onde moram. “Quando o paciente melhora no interior, é por conta da boa assistência dos profissionais e um pouco de milagre. Não tem todo o suporte”, explica. “[Levá-los] é uma esperança. Pode ser que não dê certo, mas vamos lutar. Estamos tentando dar uma chance maior.”
Mendonça trabalhou como aeromédico durante três anos, mas sua experiência anterior é muito distinta da vivência durante esta crise sanitária. Se transportava dois ou três pacientes muito graves por vôo, durante a pandemia passou a levar 16 pacientes moderados. Antes de embarcá-los, cabe à equipe médica avaliar o quadro clínico do paciente, que deve estar em um nível intermediário de gravidade. Em geral, pode ser levado aquele que precisa de suporte de oxigênio, mas consegue manter a saturação acima de 90 e está com pressão controlada. “No primeiro vôo para Goiânia, tinha um paciente que estava com 85 de saturação [de oxigênio no sangue] e não tinha condições de levar. A minha maior dor foi ter que dizer não a quem estava mais grave porque tinha algo que podia complicar no avião”, diz Mendonça.
O médico conta que ainda calculou o risco, já que a viagem não tinha escalas e duraria duas horas e meia. Aumentou o fluxo de oxigênio, mudou a posição para tentar melhorar a respiração, mas o paciente não melhorou. “Outras ambulâncias vão chegando e você precisa ser objetivo. Foi a minha primeira tristeza naquele processo [ter que negar].” Mendonça diz que alguns pacientes chegavam a tentar omitir o desconforto respiratório para conseguir a transferência e chegou a dar o seu telefone pessoal a familiares de pacientes para tranquiliza-los. “Você sozinho vai para um lugar longe da sua família, doente. Então não era só o problema do oxigênio que eles enfrentavam, mas de ficar distante da família. A partir da primeira semana, eles perceberam como estava acontecendo e a aceitação foi mais fácil”, afirma.
Sempre que entra em uma aeronave para fazer seu trabalho, o médico prepara-se para observar o “detalhe do detalhe” do paciente. “Você tem que olhar em câmera lenta para poder perceber”, define. É preciso ficar muito atento porque alguns não têm energia para avisar em caso de piora durante a viagem. Médicos ―há sempre um ou dois em cada aeronave― e enfermeiros organizam os passageiros conforme seu quadro clínico. Os mais graves devem ficar nos assentos dianteiros, onde há mais espaço caso precisem ser pronados ―colocados em uma posição com a barriga para baixo para aliviar lesões pulmonares próximas às costas― ou levados à maca para alguma intervenção. Os demais são intercalados conforme o nível de gravidade e o banheiro nunca deve ser trancado, pois o esforço do paciente para chegar até lá pode fazê-lo desmaiar. Se alguém agravava, mudava-se a posição para equilibrar a pressão ou a oxigenação. “Cada instante foi nos dando experiência. Tentávamos tudo antes de uma intervenção maior e nenhum paciente necessitou de intubação”, conta Mendonça.
Entre os transportados, o clima era de medo pela evolução da doença. Rodolfo Marinho, um paciente oncológico de 46 anos, foi transferido em uma aeronave por Mendonça de Manaus a João Pessoa. Ele conta que viu faltar medicamentos no hospital de Manaus onde se internou e aceitou a remoção pelo medo de piorar e ficar sem assistência. “Todo mundo no avião estava mal, ninguém sabia o que iria encontrar em João Pessoa. Eu só aceitei porque minha esperança era ir para um Estado que estivesse melhores condições de estrutura, porque Manaus havia entrado em colapso. A gente só pensava em ficar curado.” Durante o vôo, Marinho desmaiou ao usar o banheiro, quando sua saturação caiu muito, e se assustou. “Vi como a falta de oxigênio é triste. Imaginei as pessoas que morreram por falta de ar”, diz. Ele recebeu maior suporte de oxigênio e, acompanhado pela equipe médica, desembarcou em João Pessoa com tranquilidade. Depois de 12 dias internado na capital paraibana, recebeu alta no dia 19 de fevereiro.
O médico Paulo Mendonça conta que a imagem das aterrisagens estão guardadas em sua memória. Profissionais da saúde enfileirados próximos à pista de pouso de aeroportos, paramentados para se proteger do coronavírus, dão as boas vindas aos pacientes e os acomodam em ambulâncias. Em seguida, é hora do médico amazonense passar pela descontaminação de suas roupas e aguardar a esterilização e o abastecimento da aeronave, antes de retornar a Manaus. “Depois de tantas horas de tensão, parece que passou um avião em cima da gente pela adrenalina”, brinca. “É muito especial. Fez valer a pena cada minuto ver aquele cuidado.”
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