Bruna Rocha, sobre o ‘BBB 21’: “As pessoas estão loucas para ser racistas, só precisam de uma justificativa”
Pesquisadora de semiótica antirracista analisa o debate racial, as violências psicológicas e o linchamento moral de pessoas negras dentro e fora do ‘reality show’ da Globo
Quando o elenco da edição 2021 do Big Brother Brasil foi anunciado, fãs do programa celebraram a primeira vez em duas décadas em que o reality show de maior sucesso do país teria paridade em relação ao número de participantes brancos e negros. Logo ficou explícito, no entanto, que isso não necessariamente significaria uma edição isenta de práticas e discursos racistas. O ator Lucas Penteado, por exemplo, foi co...
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Quando o elenco da edição 2021 do Big Brother Brasil foi anunciado, fãs do programa celebraram a primeira vez em duas décadas em que o reality show de maior sucesso do país teria paridade em relação ao número de participantes brancos e negros. Logo ficou explícito, no entanto, que isso não necessariamente significaria uma edição isenta de práticas e discursos racistas. O ator Lucas Penteado, por exemplo, foi colocado no lugar de “homem negro perigoso e potencialmente violento” —algo que aconteceu em 2020 com o ator Babu Santana— e, depois de sentir-se perseguido por outros participantes, saiu do jogo na madrugada do domingo. Lucas desistiu da disputa por um milhão e meio de reais depois de protagonizar o primeiro beijo entre homens no programa — entre dois homens negros— e ter sua bissexualidade questionada por uma mulher negra e lésbica, a psicóloga e DJ Lumena Aleluia.
Lumena, ao lado da cantora Karol Conka, tem sido a participante que mais pauta o racismo nas conversas dentro da casa mais vigiada do Brasil, mas o faz de forma equivocada. “É um autoritarismo violento em que ela se sente como a única legitimada a falar disso”, avalia Bruna Rocha, doutoranda em Comunicação e Culturas Contemporâneas na Universidade Federal da Bahia e pesquisadora de semiótica antirracista. Do lado de fora, atitudes como a de Lumena e Karol são combustível para ataques nas redes sociais contra elas e seus familiares. Ambas já foram chamadas de “macacas” e receberam mensagens de ódio e ameaças. Como toda a sociedade brasileira, a cultura do cancelamento é estruturalmente racista.
Pergunta. Quando foi anunciado o elenco do BBB 21, muita gente celebrou uma edição com paridade racial entre participantes negros e brancos. O que mostrou-se, no entanto, é que isso não necessariamente significaria uma edição menos racista. Por que?
Resposta. A gente está em um momento político e midiático tensionado pelas mobilizações antirracistas e a partir de escândalos de violência, como foi o caso do assassinato de George Floyd e o de João Alberto Silveira Freitas, espancado até a morte no Carrefour. O Big Brother Brasil responde a essa demanda com o elenco e a Rede Globo quis mostrar que não está desconectada dessa realidade. No entanto, uma edição com paridade racial é uma edição desafiadora do ponto de vista do olhar do público brasileiro que, infelizmente, é forjado na estrutura racista e ainda olha com muito estranhamento para a presença de corpos negros nesses espaços. Imaginei que houvesse esse conflito de narrativas entre pessoas negras, porque na edição passada houve uma disputa narrativa entre Babu e Thelma [Assis], ainda que não fosse estruturada nos discursos deles, mas justamente na construção do público. A narrativa do conflito é a narrativa que, historicamente, vence e dá dinheiro. É a narrativa do ressentimento e do boicote entre pessoas negras. E eu acredito que a produção do programa tenha feito escolhas estratégicas de elenco, misturando perfis fragilizados, que constroem sua persona a partir desse lugar da fragilidade, com perfis profundamente autoritários. Programas como esse são feitos para testar o caráter e são construídos com base em sistemas de vigilância, punição e pressão psicológica. Até as nomenclaturas do programa, que já foram naturalizadas, refletem essa intenção violenta. A gente fala em paredão sem se lembrar, que, historicamente, o paredão é de fuzilamento. Nós, como público, naturalizamos essas coisas em troca de entretenimento.
P. É possível que essa edição do BBB deixe cicatrizes no movimento negro e na construção dos discursos antirracistas?
R. Tínhamos esperança de que essa edição pudesse justamente enriquecer o debate sobre pautas feministas e raciais das quais viemos falando há muito tempo, mas aconteceu justamente o contrário, graças a posturas que têm contribuído para criminalizar ainda mais nossa perspectiva de mundo. Mas os movimentos negros são uma coisa e negros em movimento é outra, e os movimentos negros têm uma solidez de acúmulo histórico —que nos foi ensinada por nomes como Sueli Carneiro e Lélia Gonzalez— e não deixará de se articular politicamente, até porque esses movimentos são muito críticos a esse tipo de programa. Mas acho que as pessoas negras ficam profundamente feridas, sim. Acho que deixa cicatrizes no tecido social e consequências negativas na disputa da opinião pública, que é difusa, que é dinâmica e muda a todo momento. Coisas que vínhamos construindo nesse sentido são afetadas por iniciativas como essa —ainda que o programa não seja o único responsável, até porque não tem todo esse poder— e ocorre um esvaziamento de nossas pautas, a pasteurização de debates que são muito complexos.
P. Você identifica uma disputa de narrativas negras no programa?
R. Ninguém está fazendo o debate racial direito no BBB, não há uma discussão racial qualificada no programa. Gil [Gilberto Nogueira, doutorando em Economia], por exemplo, que talvez tenha uma leitura mais qualificada, está na espiral do silêncio, não participa do debate porque talvez não sinta que o ambiente é propício para se manifestar, por ser um negro de pele clara. O que existe é uma narrativa preponderante, que é a de Lumena. É a única que está colocando em pauta o debate racial, mas de maneira absolutamente desastrosa. Há um gilbertofreiriano, o Projota, mas que só se posicionou uma vez nesse sentido, quando teve uma conversa em que tentava aconselhar Lucas. Karol Conka não trouxe uma narrativa nesse sentido.
P. O colorismo também apareceu no programa, quando alguns participantes colocaram em xeque a identidade racial de Gilberto, que foi tachado como “sujinho”. De que forma isso reverbera aqui fora?
P. Não é só o fenótipo que informa a nossa raça, mas, principalmente para pessoas negras de pele clara, é o racismo que informa a identidade racial de uma pessoa. A maior prova de que Gilberto é negro é ter justamente alguém chamando ele de “sujinho”. É uma retórica autoexplicativa. Só pessoas negras são submetidas a esse tipo de violência. O debate da pigmentocracia, da mestiçagem e do que significa ser ou não ser negro no Brasil deve ser feito com cartas na mesa, com olho no olho, se ela feita de maneira a diminuir outra pessoa, isso só mostra que essa própria circunstância é produto do racismo.
P. Há uma coletivização dos equívocos individuais de pessoas negras?
R. As pessoas estão loucas para ser racistas, elas só precisam de uma justificativa plausível para isso. E a justificativa, nos últimos dias, têm sido as posturas equivocadas e violentas de parte do elenco negro do BBB. Essas posturas estão autorizando um conjunto de manifestações do racismo na internet. Por mais que eu discorde da postura desses participantes, jamais permitirei que eles sejam chamados de “macaco”. Uma pessoa desempenhando o papel de capitão-do-mato não é o maior problema da luta antirracista. O problema é quando isso vira opinião coletiva e aí a gente vê, por exemplo, gente criticando Lumena com o mesmo tom que ela usa, o mesmo autoritarismo violento.
Sobre o isolamento de Lucas, por exemplo, quase ninguém fez uma reflexão sobre auto ódio, sobre a possibilidade de que a implicância com ele seja fruto de um processo de rejeição a um espelho que se quer negar. Porque, em alguma medida, quase todos ali já foram Lucas, um jovem negro periférico que está tateando ainda nos debates, que ainda erra muito, que traz um conjunto de dores. É um processo mais perverso que não deixa de violentar também os corpos das próprias pessoas que estão ali como algozes. Vivemos a cultura do ódio e do cancelamento, por isso é até difícil fazer uma leitura dessas sem ser chamada de passadora de pano.
P. Na edição de 2020, Thelma e Babu já pautaram várias discussões sobre vivências negras em um país como o Brasil, mas mal podiam (ou se sentiam à vontade para) usar a palavra “racismo”. Há algo de positivo para o debate antirracista no BBB 21?
R. Todo processo cultural que vivemos é importante. Não usaria a palavra “positivo”, mas esse o que esse BBB 21 traz de lição é evidenciar que ferramentas como esse programa jamais poderão ser instrumentos de emancipação do nosso povo. Outra coisa é mostrar que não basta estarmos nos espaços, porque ocupar é importante, mas é preciso fazer isso com estratégias coletivas. O programa mostrou que paridade racial nem sempre é sobre o combate ao racismo.