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Do genocídio negro à ‘palmitagem’, debate sobre racismo se multiplica e enfrenta contradições

Após anos de avanços, discussão entra em nova etapa. Enquanto grupos organizados se unem contra Bolsonaro e a impunidade policial, novos atores abrem debates que terminam em brigas nas redes

Manifestação no dia da Consciência Negra  em 20 de novembro de 2019, São Paulo.
Mulheres participam de ato no dia da Consciência Negra, em São Paulo.NACHO DOCE (REUTERS)
Felipe Betim

“Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”, escreveu Carolina Maria de Jesus no dia 19 de maio de 1958 em seu diário. O relato está no principal livro da autora, Quarto de Despejo: Diário de uma favelada, publicado em 1960 respeitando fielmente a linguagem de uma mulher negra que, apesar de ter estudado somente até o segundo ano, havia desenvolvido o gosto pela escrita. Na obra, a mineira radicada em São Paulo narra sua rotina na extinta favela do Canindé, onde lutava diariamente para criar, sozinha, os três filhos. E sobreviver. A fome e a angústia apareciam como fantasmas diariamente. “Quando puis a comida o João sorriu. Comeram e não aludiram a cor negra do feijão. Porque negra é a nossa vida. Negro é tudo que nos rodeia”, relatou no dia 23 de maio.

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Desde então muita coisa melhorou para a população negra do país —ainda que do jeito brasileiro, de forma lenta e gradual. O ativismo se institucionalizou com a criação do Movimento Negro Unificado, em 1978, e conseguiu constranger o Estado brasileiro a produzir dados e políticas públicas. A mais exitosa delas, a de cotas sóciorraciais no Ensino Superior, fez com que os negros fossem maioria nas universidades públicas brasileiras pela primeira em 2018, segundo a pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil publicada pelo IBGE no dia 13 de novembro do ano passado. O mesmo organismo aponta que 55,8% da população brasileira é negra, classificação que engloba pretos e pardos. A própria contagem, feita a partir da autodeclaração das pessoas, que cada vez mais se reconhecem como negras e se dizem como tal, é tida como uma vitória do movimento. “A desmistificação da ideia de uma democracia racial é uma agenda concluída. Você não consegue mais sustentar academicamente, institucionalmente, que o Brasil é uma democracia racial. O direito à educação não é o mesmo para o negro e para o branco”, explica Winnie Bueno, mestra em Direito e doutoranda em Sociologia.

Uma das muitas consequências foi a ampliação e democratização do próprio debate sobre o racismo estrutural. Nas redes sociais, novos atores trazem uma diversidade de temas para o debate público e pautam as novas gerações, habituadas a se comunicar e a se instruir a partir da Internet. Muitos desses assuntos tocam em questões delicadas e pessoais que não raro resultam em brigas, constrangimentos e linchamentos típicos do território virtual. Nesta semana, o youtuber Spartakus Santiago divulgou um vídeo sobre palmitagem, um conceito que, em resumo, aborda o preterimento afetivo das pessoas negras, sobretudo mulheres. O comunicador contextualizou a questão e mostrou suas discordâncias com setores da militância, gerando uma enxurrada de reações negativas. As menções ao seu nome chegaram nos trending topics do Twitter na terça-feira.

Bueno pontualiza que a agenda política do movimento negro ―que também se expandiu, com novos e velhos militantes atuando lado a lado― não deve ser confundida com o “ativismo de pessoas negras” nas redes. Ela tem os pés nas duas canoas e utiliza sua própria experiência como exemplo: criadora da Winnieteca no Twitter, uma plataforma que une doadores de livros a negros que precisam deles, explica que seu projeto pessoal jamais poderia ser entendido como uma pauta dos grupos organizados ―nos quais também milita. “Hoje existe uma agenda política do movimento social negro no Brasil, a partir da Coalização Negra por Direitos, que está muito focada no genocídio da população negra instaurado neste país”, esclarece. "Nas redes, há indivíduos que colocam ações importantes para a comunidade negra. Surge de uma maneira mais contundente nos últimos 10 anos, o advento da Internet facilitou muito isso. Mas é outra dimensão da agenda de lutas. Esses múltiplos ativismos muitas vezes se reverberam, mas também podem ocorrer em paralelo com questões bastante individualizadas”, acrescenta.

Genocídio da população negra como pauta central

Apesar dos avanços, há aspectos do cotidiano da população negra que insistem em não mudar. No mesmo dia em que os dados do IBGE sobre presença negra nas universidades foram divulgados, a menina Kettelen Gomes, de apenas cinco anos, tornou-se a sexta criança morta a tiro no Rio de Janeiro em 2019. “As pessoas negras são marcadas para morrer desde a maternidade, e isso não pode ser naturalizado”, diz Bueno. No Brasil, 75% das vítimas de homicídios, assim como das mortes cometidas por policiais, são jovens homens negros, segundo o Forum Brasileiro de Segurança Pública. Os números também mostram que a letalidade policial vem aumentando nos últimos anos em todo o país, de 2.212 pessoas mortas em 2013 para 6.220 em 2018. “Mas esse genocídio não está só expresso no número de homicídios. Também está inscrito numa dimensão intelectual, na dimensão da seguridade alimentar, da moradia, na taxa de suicídios...", completa Bueno.

É nesse contexto que o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Justiça, Sergio Moro, buscam aumentar ainda mais a imunidade de agentes públicos que cometem excessos. A primeira tentativa foi através do pacote anticrime, que a Câmara dos Deputados aprovou sem o artigo que ampliava o excludente de ilicitude. A segunda tentativa veio através de um Projeto de Lei, apresentando no fim do ano passado, que isenta de punição os militares e agentes federais que estejam agindo sob o decreto presidencial da Garantia da Lei e da Ordem (GLO).

A Coalização acredita que essas iniciativas do Governo, além de sua própria retórica de incentivo a letalidade policial, aumentariam ainda mais a violência estatal e teriam consequências especialmente graves para a população negra, segundo denunciou na OEA e na ONU. “Há coisas que conseguimos combater por muito tempo e que agora estão de volta. E eles voltaram com mais força, mais organizados, usando os argumentos de antigamente”, explica Iêda Leal, pedagoga coordenadora nacional do Movimento Negro Unificado, onde milita desde 1988. “O que mais nos assusta é que tem adesão. Vamos precisar estudar um pouco mais esses inimigos para compreender como o racismo está se reorganizando para combatê-lo melhor".

Colorismo e palmitagem nas redes

Entre os vários debates sobre a questão racial que permeiam as redes sociais, dois deles chamam a atenção pela sua constância: o colorismo e a palmitagem. O colorismo é um conceito que chama a atenção para uma política de embraquecimento que resultou na hierarquização racial da sociedade brasileira, segundo explicam os estudiosos do tema. Isso significa que o nível e o tipo de preconceito que um negro sofre no cotidiano varia de acordo com a tonalidade de sua cor, a largura de seu nariz, a grossura dos lábios e a textura do cabelo. “O colorismo é braço do racismo, é uma metodologia que hierarquiza as pessoas dentro da composição dos grupos negros. É uma forma de controle, de mantê-las dentro do estereótipo daquilo que a gente entende por negro e obrigá-las a buscar o ideal de beleza, de competência, de história e de cultura associada ao etnocentrismo”, explica Alessandra Devulsky, doutora em direito político e econômico e pesquisadora sobre o tema. Uma das consequências do colorismo, exemplifica ela, é que os negros eleitos para o parlamento, os artistas negros que se tornam destaque ou os professores negros contratados são, em sua maioria, pessoas com a pele mais clara e que "se associam aos traços compreendidos da branquitude”. Por isso, prossegue, “é difícil ver artistas de pele escura tendo destaque”.

Já a palmitagem diz respeito aos relacionamentos amorosos inter-raciais, especialmente entre um homem negro e uma mulher branca ― essa última vista como padrão ideal de parceira, o que resulta na solidão das mulheres negras, segundo pesquisadores do tema. “Existe uma ideia de que é preciso embraquecer a família. Isso continua. Geralmente os homens negros, que são hipersexualizados e que têm uma posição financeira melhor, buscam as mulheres brancas. O padrão de beleza é branco. A mulher que merece ser amada, a mulher que é humana, é a mulher branca", explica a cientista política Nailah Neves, mestre em Direitos Humanos e Cidadania. As mulheres negras, explica ela, também tem essa mesma educação. “Primeiro porque nossos homens negros estão morrendo. Além disso, aquele homem branco que escolheu aquela mulher negra se torna o grande salvador, o príncipe encantado que habita no imaginário da mulher negra que vem de uma estrutura sofrida. Ele está no topo da pirâmide e pode pode dar aquilo que chamamos que é o padrão de relacionamento”, prossegue.

Dessa forma, explica Devulsky, colorismo e palmitagem estão diretamente interligados. Ela pondera que “amor não se regula”, mas defende “que afeto e beleza, assim como a ideia de competência e inteligência, são questões construídas" ao longo da história. “E quem estabelece o poder e a norma, daquilo que é aceitável e recompensado socialmente, não é o negro, que não ocupa posições de poder econômico e político”, explica. “Como então algumas pessoas integram a ideia de privilégio racial para poder salvar a família? A partir da miscigenação”, completa.

Por tudo isso, prossegue Devulsky, pessoas brancas e negras de pele mais clara ―especialmente mulheres― são priorizadas nas relações amorosas e de amizade, assim como nos círculos acadêmicos e empresariais. “Vamos escolher aquilo que nos parece mais positivo. E, quanto mais clara é minha pele, mais aceitação eu tenho, tanto no lado afetivo como profissional. Fica mais fácil adquirir status social”. Enquanto isso, “a mulher negra de pele escura segue na base dessa pirâmide de valores”, sem associação “à beleza ou à inteligência”, mas sim “ao trabalho braçal”. As cicatrizes na comunidade negras são várias, vão de problemas de depressão e autoestima à interiorização de estereótipos racistas. "Algo que não se resolve com esforço individual, mas sim com psicanálise e com transformação social, via distribuição de renda e de poder”, argumenta. Assim, conclui a pesquisadora, "a construção da ideia de negritude vai no sentido de resistir, de enfrentar o racismo e de buscar a igualdade racial revalorizando a africanidade pelo viés da sua ressignificação política”.

Nas redes, essas temáticas ganham múltiplos significados e atingem outra dimensão. Como quando homens e mulheres negras aparecem com seus respectivos parceiros brancos, algo que gera não só problematizações como também pode render questionamentos e acusações de estarem “palmitando”. No vídeo publicado no YouTube, Spartakus Santiago repreendeu os ativistas que, para ele, tentam impor regras nos relacionamentos alheios, tanto na Internet como em festas e eventos sociais. Segundo afirma o youtuber, essas pessoas também estariam assumindo o papel de opressores da população negra com o objetivo de preservar a pureza da raça. “A gente tem que parar de usar raça como componente para escolher nosso parceiro afetivo”, defende ele no vídeo. As reações foram sobretudo negativas: o jovem comunicador foi acusado, entre várias coisas, de menosprezar décadas de estudo sobre o assunto e de ecoar a retórica de brancos que tentam esvaziar a discussão racial.

Outro momento de intensa discussão nas redes ocorreu quando, em 2018, a cantora e atriz Fabiana Cozza foi escolhida pela família de Dona Ivone Lara para representar a artista em um musical. Ativistas questionaram na ocasião a escolha por causa de seu tom de pele mais claro que o da sambista. Mas muitas pessoas optaram pela agressão e Cozza acabou tendo sua própria negritude questionada. Algo que não é incomum: nas redes, não raro pessoas com pele mais clara que se declaram negras são questionadas ou até mesmo atacadas virtualmente. Bastante ativa nas redes, Neves explica o contexto: “Por causa das cotas raciais, se tornou lucrativo se enegrecer: fazer bronzeamento artificial, encrespar o cabelo, botar beiço... Muitas pessoas brancas fazem isso. A gente consegue dizer tranquilamente se a pessoa é branca, e não negra de pele mais clara. Até porque essas pessoas usam argumentos como ‘a minha avó é negra’ ou ‘o meu pai é negro”.

A cientista política argumenta ainda que o objetivo das cotas não é incluir os afrodescendentes, mas sim os negros. Isso porque, ao contrário dos Estados Unidos, onde houve uma política de segregação, o embraquecimento promovido na sociedade brasileira faz com que o racismo se manifeste justamente a partir do tom de sua pele e seus traços físicos. Mas ela faz uma importante ponderação: “Pessoas negras de pele clara não quer dizer que sejam brancas. Existe uma diferença. Quer dizer apenas que não são negros retintos [com o tom de pele mais escuro]”. Ela também considera “extremamente positivo” que mais pessoas se reconheçam e se autodeclarem negras. “O objetivo das cotas era exatamente esse: a inserção de negros, a perspectiva na universidade e a consciência racial. 56% de autodeclaração ainda é muito pouco”, opina.

Debate necessário ou pouco estratégico?

Todas essas questões e discussões estão longe de ser consenso entre ativistas e membros do movimento negro. Devulsky, que está escrevendo um livro sobre colorismo ―será lançado pela editora Pólen e formará parte de uma coleção organizada pela filósofa Djamila Ribeiro―, diz ter receio de que o conceito seja “usado como instrumento para diminuir ou esvaziar a negritude das pessoas negras de pele clara”. Para ela, "não devemos usar os instrumentos do colonizador opressor como forma de emancipação”. Além disso, “ser negra não está apenas associado a quantidade de melanina na minha pele, é também um elemento cultural e histórico, e uma identidade política”. Um exemplo é a maneira como Meghan Markle, esposa do príncipe Harry, é tratada no Reino Unido por setores conservadores. “Mesmo rica e famosa, ela é relembrada diuturnamente pelos tabloides britânicos de que não é branca. Ela e seu filho são tratados de modo distinto de outros membros da realeza. Uma negra de pele clara é, antes de tudo, uma negra, uma não-branca”.

Sobre como o debate se dá nas redes sociais, opina que “regular a agenda amorosa das pessoas com problemas socioeconômicos, quando a gente tem genocídio de jovens negros nas periferias de forma alarmante, é o que menos vai resolver nossos problemas”. E conclui: “Não podemos reproduzir uma ideia de controle das relações como um dia quis fazer um Estado dos EUA, ao proibir os casamentos inter-raciais, do mesmo jeito que não podemos reproduzir o contrário e promover o embranquecimento da sociedade com a ideia de ficarmos mais parecidos com a Europa dentro do que etnocentricamente foi estabelecido como padrão. Francamente, não é um debate fácil de se fazer, mas que precisa ser enfrentado de modo sério e criterioso”.

Iêda Leal, do MNU, argumenta que “o pertencimento racial é algo muito individual”, construído ao longo de toda uma vida. “A complexidade de alguém que tem uma pele mais escura e uma pele mais clara de ser discriminado não pode ser um fator que concorra entre a gente, quem é mais ou menos discriminado. O colorismo vem, de forma muito perversa, dar uma pitada de complexidade na construção racial do país”, opina. Também afirma que relacionamentos amorosos devem ser respeitados, ainda que seja necessária uma discussão sobre “a questão do afeto e da construção do amor” feita “olho no olho”, com “muito estudo”.

Já Winnie Bueno acredita que não houve uma “ascensão social suficiente da população negra para justificar a necessidade do debate sobre o colorismo”. Ela argumenta que, na hora de preencher uma vaga do mercado de trabalho, “entre um preto que é retinto e um preto que é mais claro, vão escolher a pessoa branca”. À respeito da palmitagem, opina que o debate sobre preterimento afetivo de negros é importante, mas nas redes acabou se limitando a "mulheres negras que não casam porque homens negros escolhem mulheres brancas”, ocultando “dimensões da sexualidade das mulheres negras, que nem sempre querem se casar com homens”, além de fechar o debate “sobre autonomia sexual e outras possibilidades de constituição do afeto”.

Em resumo, acredita que essas discussões “acabam sendo colocadas como algo central de forma pouco estratégica”, deixando de lado questões que considera mais importantes, como “as mortes cruéis, desumanas, de meninas negras”. Considera que a divergência é algo saudável e faz alguém pensar de forma múltipla, mas nas redes acaba se desdobrando em “mera fofoca” ou ainda em “vigilância e controle do comportamento”.

Nailah Neves rebate, por outro lado, os questionamentos sobre se a liberdade de alguém se relacionar está sendo cerceada. “A nossa liberdade já está sendo cerceada, porque a escolha pelo branco nos foi ensinada. Até que ponto você sabe exatamente que está escolhendo aquela pessoa por causa de suas características pessoais, ou porque você viu nela um modelo de corpo e padrão de relacionamento que só alguém que não sofre violências pode oferecer?”, questiona. Para ela, “não se trata de limitar a livre escolha, mas sim de dizer que é preciso ter noção da política que está por trás” quando se opta por relacionar-se com alguém. “Você vê aquele nariz, aquele cabelo, aquela forma de agir… Projeta no outro aquilo que gostaria de ser, mas nunca vai conseguir porque aquilo não faz parte de você”.

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