Cientistas brasileiros travam guerra contra a desinformação bolsonarista por vacinação
Pesquisadores, artistas e ‘influencers’ tornam-se contrapontos ao presidente Bolsonaro ―que diz que não irá se imunizar― para desmentir notícias falsas e gerar onda pró-imunização no Brasil. “Não importa a eficácia, o que precisamos é que muitas pessoas sejam vacinadas”
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Áudios de WhatsApp, vídeos curtos e memes são as armas que renomados cientistas brasileiros aderiram para tentar convencer a população a se vacinar contra a covid-19. Não se trata apenas de espalhar conhecimento científico e combater a desinformação ―algo que muitos já vinham fazendo desde o início da pandemia de coronavírus. O objetivo agora é driblar a falta de iniciativa do Governo Jair Bolsonaro e criar uma onda pró-vacinação, com mensagens simples e diretas. E, dessa forma, derrubar as dúvidas sobre a eficácia das vacinas levantadas pelo próprio presidente e seus apoiadores mais extremistas, os quais inflam o incipiente movimento antivacina brasileiro.
No domingo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou o uso emergencial das vacinas Coronavac e Astrazeneca/Oxford e o país deu, finalmente, início à vacinação. Ainda há muitas dúvidas sobre como será o rateio das doses entre os Estados, mas enquanto os governadores cobram da União um cronograma da imunização, a comunidade científica inicia sua batalha para convencer a população de que a vacina é segura, eficaz e essencial. “Vimos que precisávamos fazer uma coisa conjunta de convencimento da população e a a necessidade de estourar a bolha. A gente acaba falando sempre para as mesmas pessoas”, afirmou a bióloga Flavia Ferrari, membro do Observatório Covid-19.
Pesquisadores e divulgadores científicos como Atila Iamarino, Natalia Pasternak ou Denise Garrett são algumas das dezenas de nomes e membros de entidades científicas que habitam as redes sociais para explicar a ciência de uma forma clara e alertar a população. Agora que a necessidade da vacinação em massa se impõe, está sendo formada uma união entre várias dessas entidades em torno do desafio de convencer a população. Nela estão o Instituto Questão de Ciência, o Observatório Covid-19, a Equipe Halo/Nações Unidas (ONU), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Conselho de Secretários Municipais de Saúde de São Paulo (Cosems/SP), a Rede Análise Covid-19, Blogs de Ciência da Unicamp, o Núcleo de Pesquisas em Vacinas da USP (NPV-USP), ScienceVlogs Brasil, Sociedade Brasileira de Imunologia, Projeto Divulgar e a União Pró-Vacina. No próximo dia 21, vão lançar uma campanha apelidada de “Dia V” e divulgar uma hashtag para tentar convencer as pessoas de se vacinarem.
A União Pró-Vacina vem lançando vídeos curtos no Twitter, no Instagram e no YouTube, além de áudios de WhatsApp, desmentindo notícias falsas sobre a vacinação. Entre os boatos desmentidos pelo grupo estão o de que as vacinas causam autismo ou alteram o DNA da pessoa. Para atrair atenção às mensagens difundidas, recuperam um personagem famoso das campanhas de vacinação no Brasil, o Zé Gotinha, famoso nas campanhas do Sistema Único de Saúde (SUS) na década de oitenta e noventa. “Temos muitas ideias diferentes de comunicação, mas decidimos juntar todas essas iniciativas pró-vacinação em uma só coisa”, acrescenta Ferrari. Sua maior preocupação é o WhatsApp, por onde as mentiras se disseminam mais livremente.
Combater o movimento antivacina
O movimento antivacina tem força nos Estados Unidos e na Europa, mas no Brasil ainda é uma novidade. Mas suas teorias e mentiras se disseminam rápido nas redes sociais. “Tem os aspecto religioso e de um estilo de vida natural, mas quem é mais forte [contra a vacina] está aparentemente ligado à extrema direita. É um grupo pequeno de pessoas que produz conteúdo, mas seguido por muitas pessoas”, explica Luiz Gustavo de Almeida, PhD em Microbiologia e coordenador dos projetos educacionais do Instituto Questão de Ciência. “E sempre apresentam um médico contrário às vacinas, o que gera uma voz de autoridade.” Ferrari acredita, por sua vez, que os negacionistas vão tentar “criar uma retórica de muito alarde, de muito medo, para convencer as pessoa” a não se vacinar.
Ainda que esse grupo seja pequeno, o descrédito das vacinas é estimulado pelo presidente brasileiro, que já afirmou categoricamente que não vai se vacinar. O mandatário também diz que não será obrigatório se vacinar e afirma que todos os imunizantes são “experimentais” e, portanto, arriscados. Quando o Instituto Butantan apresentou os resultados da eficácia de sua Coronavac, boa parte da tropa bolsonarista, incluindo os filhos do presidente, foram às redes sociais criticar o Governo paulista e fazer ilações sobre o imunizante. “Existe uma disputa de narrativa tão grande que as pessoas estão discutindo eficácia, algo que nunca aconteceu com a vacina da Influenza, por exemplo”, lembra Ferrari. Para ela, a campanha pró-vacinação tem que deixar de lado a discussão técnica sobre a eficácia se centrar numa mensagem propositiva: “Não importa a eficácia, o que precisamos é que muitas pessoas sejam vacinadas. Não é uma questão individual, em que a pessoa deixa de tomar um remédio e pode morrer”. argumenta. “As consequências de não tomar vacina não são individuais. Vacinação só faz sentido como lógica coletiva.”
O Brasil criou seu Plano Nacional de Imunização em 1973 e combateu a epidemia de meningite e erradicou o pólio e sarampo. Mas a adesão aos programas de vacinação vem diminuindo cada vez mais, e até mesmo o sarampo voltou a se disseminar. De acordo com uma apuração do portal UOL, os gastos com campanha de vacinação seguiu uma trajetória ascendente até 2018. A partir de então, caiu de 77 milhões de reais para 60 milhões em 2019 e 46 milhões em 2020. “O Brasil sempre foi um exemplo de campanha de vacinação, o que não envolve só injetar a vacina. A gente sempre teve que falar para as pessoas que é importante se vacinar, informar o dia de se vacinar…”, explica Almeida. “Mas desde o início a gente percebeu que não temos mais essa campanha, que está crescendo muito o negacionismo nas redes.”
Adesão de artistas e influenciadores
Ferrari explica que a campanha do “Dia V” não têm orçamento. Por isso será importante contar com a adesão de artistas e influenciadores digitais, os quais farão vídeos dizendo que vão se vacinar e que é importante se vacinar. Na última sexta-feira já estavam confirmados personalidades como Felipe Neto, Paola Carosella, Lulu Santos, Leci Brandão, Laerte, entre outros. É preciso criar exemplos positivos. “Queremos passar a mensagem de que todas as vacinas aprovadas pela Anvisa são seguras.”
Quando os resultados sobre a eficácia da vacina foram divulgados pelo Governo de São Paulo, a cantora Anitta foi outra que usou suas redes sociais para falar bem do imunizante e dizer que vai se vacinar. No domingo em que os diretores da Anvisa votavam pela autorização do uso emergencial das vacinas, um vídeo da atriz Marieta Severo circulava pela Instagram com a seguinte mensagem: “Eu abraço a vacina. Abrace você também”.
A pesquisadora acredita que a melhor forma de driblar o discurso xenofóbico envolvendo a Coronavac é enaltecendo o Instituto Butantan —responsável pelos testes da vacina da chinesa Sinovac no Brasil— e sua história. “Retomando o orgulho da instituição, relembrando seu papel nesse tempo todo, e que as instituições e os técnicos são maiores que qualquer política maluca”, explica. Partiu da classe artística criar um hino para valorizar a instituição: a nova versão do funk Bum bum tam tam gravada pela Orquestra Sinfônica da Bahia, pedindo confiança na instituição e na vacinação. “É a vacina envolvente que mexe com a mente de quem tá presente, a vacina saliente que vai curar nós do vírus e salvar muita gente”, dizia a nova letra. A repercussão foi tamanha que o funkeiro Mc Fioti, autor do hit, esteve no Butantan na última semana para gravar um novo clipe para a música.
Ferrari também opina que, neste segundo ano de pandemia, será mais fácil convencer as pessoas a se vacinarem do que a cumprirem a quarentena. “Uma coisa é falar para o trabalhador informal ficar em casa e parar de trabalhar, o que atinge diretamente a qualidade de vida dele. Outra coisa é falar ‘toma a vacina, você vai ficar mais protegido, vai poder trabalhar, e essa pandemia vai acabar mais rápido’”, explica. “As pessoas tem memória afetiva do Zé Gotinha, os mais velhos lembram da epidemia de meningite, conhecem alguém que teve pólio. Precisamos retomar esse sentimento de que é legal ir ao posto se vacinar, que isso ajuda.”
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