O vírus que despertou a colaboração global
Tomamos o café da manhã na Europa com dados colhidos na Ásia, e passamos os nossos ao final do dia para a América, que fecha o círculo. Pesquisadores do mundo inteiro lutam contra a covid-19 no maior projeto científico da história, mostrando o valor da ciência aberta e colaborativa
A pandemia da covid-19, causada pelo vírus SARS-CoV-2, é o maior desafio do nosso tempo, que comentaristas e políticos comparam à Segunda Guerra Mundial. Aquela luta do século XX lançou uma corrida para desenvolver a arma devastadora que daria a vitória final, cujo desenvolvimento Albert Einstein propôs em uma carta ao então presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt. Esta corrida atraiu os melhores cientistas de sua geração para o Projeto Manhattan, dirigido por Robert Oppenheimer, que resultou na bomba atômica. Essa arma conseguiu a claudicação do Japão após aniquilar quase um quarto de milhão de civis em Hiroshima e Nagasaki, no maior massacre de população civil na história da humanidade.
Agora, a humanidade também está procurando na ciência a saída para desafio do novo coronavírus, mas desta vez as melhores mentes do mundo estão colaborando para salvar vidas ao invés de aniquilá-las, e o estão fazendo através da ciência aberta e colaborativa, longe do segredo que cercou o Projeto Manhattan.
A luta contra a pandemia se transformou no maior projeto de investigação científica da história. Não se trata de um projeto estruturado e dirigido por uma mente clarividente que orienta um exército de pesquisadores, mas sim de uma cooperação que surgiu de forma espontânea dentro da comunidade científica e foi se organizando de uma maneira orgânica, numa imensa rede colaborativa que enlaça centenas de milhares de profissionais trabalhando numa corrida de revezamento que alcança da Ásia à América do Norte, 24 horas por dia, sete dias por semana.
A arma definitiva que permitirá frear a seco esta loucura virá da ciência, e tenho confiança de que chegará antes do que se prognostica
A cada jornada compartilham entre si uma média de 200 novos artigos científicos sobre a covid-19, e já foram acumulados mais de 6.500 trabalhos (www.covid19primer.com). Este ritmo de publicação duplica o dedicado a todas as demais doenças humanas juntas e é o triplo da difusão de textos sobre a mudança climática, considerado o maior desafio de nosso tempo.
Este esforço já gerou uma série de resultados que informam sobre a resposta à pandemia e apontam soluções concretas. As análises genômica estabeleceram a origem do vírus e sua relação com outros betacoronavírus, os de morcegos e os que produziram as epidemias da SARS-1, há 15 anos, e da MERS, uma década mais tarde. Essas análises revelaram proteínas funcionais quase idênticas entre o SARS-CoV-1 e o SARS-CoV-2, identificando claramente o alvo para as vacinas —ou seja, atacar o mecanismo de entrada nas células humanas— e a proteína responsável pela inflamação que leva à pneumonia, que é quase idêntica a uma proteína da SARS-1, alvo para as terapias. Essas semelhanças e a análise estrutural destas e outras proteínas levaram, com base em sistemas de inteligência artificial, à identificação de uma série de fármacos já aprovados para o uso em humanos para tratar outras doenças e que poderiam ser úteis como terapia contra a covid-19. Este esforço levou a lançar 411 análises clínicas registradas até o momento, que estão avaliando pelo menos 50 desses compostos, individualmente ou em diferentes combinações. Os sistemas de inteligência artificial estão guiando também o desenho de vacinas para serem testadas in silico, ou seja, em modelos de computador, antes de iniciar ensaios com ratos. O desenvolvimento de organoides, atividade liderada em nível global pelo cientista espanhol Juan Carlos Izpisúa e na Espanha por Núria Montserrat, ex-integrante da equipe de Izpisúa, permite testar esses tratamentos em modelos mais relevantes para o tratamento em humanos. Este desenvolvimento não teria sido possível sem a pesquisa com células-tronco humanas, que, por causa de um veto da Holanda por motivos religiosos, não pôde ser financiada com recursos dos fundos científicos europeus.
Nos campos da estatística e matemática aplicada, trabalha-se no desenvolvimento de modelos que permitam predizer as trajetórias futuras da epidemia e sua resposta a intervenções de mitigação, como o confinamento, e à suspensão dessas medidas. Esses modelos indicam que as medidas rigorosas de confinamento, como as adotadas na Espanha, diminuem em 80% a taxa de contágio e contribuíram para reduzir notavelmente o número de mortos. Tais modelos desempenharão um papel fundamental na decisão sobre estratégias de saída do confinamento que permitam a volta à normalidade protegendo os mais vulneráveis. Também ajudam a aproximar o percentual de imunização da população, que atualmente poderíamos situar em torno de 15% ou 20% para a população espanhola.
As análises genômicas, com dados de mais de 5.700 genomas sequenciados de indivíduos isolados obtidos em vários países, permitiram identificar quase 60 variantes, por mutações, do vírus original. Essas variantes permitem reconstruir os caminhos de propagação (da China para o resto da Ásia e a Europa e posteriormente a América) e poderiam ajudar a explicar as diferenças de mortalidade entre regiões. Também sabemos que a covid-19 pode afetar gatos e tigres, entre outras espécies; como se transmite e a que distância pode se propagar em ambientes fechados (até quatro metros). Sabemos que os riscos para os afetados são altamente dependentes da idade, de forma que a percentagem de mortalidade é muito baixa entre pacientes com menos de 30 anos, mas aumenta rapidamente até ser muitíssimo maior na população com mais de 70 anos. Além disso, o índice de mortalidade é muito superior em homens —da ordem de 75% a mais— que em mulheres. Também sabemos que a obesidade, o diabetes, as doenças cardiorrespiratórias, o tabagismo e o consumo excessivo de álcool elevam o risco. Sabemos quem são os membros vulneráveis da nossa sociedade e das nossas famílias. Sabemos quais deles temos que proteger.
Os esforços de pesquisa já deram lugar a dúzias de sistemas de detecção, com custos que vão de 10 euros (cerca de 60 reais) a várias centenas de euros, que podem oferecer resultados em minutos e permitem uma razoável capacidade de detecção. Estas novidades abrem as portas à aplicação de exames generalizados, o que é a chave para permitir a saída ordenada e segura do confinamento. É possível inclusive monitorar a carga viral de toda uma cidade através de análises em águas residuais, uma aproximação muito promissora para fazer estimativas da realidade diante da impossibilidade de testar repetidamente toda a população.
O maior projeto científico até a covid-19 teria sido o experimento que confirmou a existência do bóson de Higgs, que envolveu cerca de 2.000 pesquisadores e exigiu a construção do Grande Colisor do Hádrons no CERN para realizar o experimento científico mais caro já realizado pela ciência (100 bilhões de reais, pelo câmbio atual). Pois bem, as instalações do CERN também estão servindo à luta contra a Covid-19, com o desenho de um ventilador capaz de aliviar os problemas respiratórios de pacientes com sintomas moderados.
A sociedade não será a mesma depois da covid-19, mas a pesquisa tampouco será
O campo de batalha continua estando nos hospitais, nos asilos de idosos, nas forças de segurança, nos trabalhadores que velam pelos serviços essenciais e nas crescentes listas de desempregados. Mas a arma definitiva que permitirá frear a seco esta loucura virá da ciência, e tenho confiança de que chegará antes do que se prognostica, porque nunca antes na história tantos cientistas tinham trabalhado juntos por um mesmo objetivo, a partir de tantas disciplinas diferentes e apoiados pelos melhores instrumentos e supercomputadores que já existiram.
De uma forma espontânea, a comunidade científica global organizou o maior projeto científico da história da humanidade, utilizando os novos fundamentos que regem a ciência nesta década que se inicia. Entre eles, em primeiro lugar, a aposta na ciência aberta, em que todos os pesquisadores compartilham seus dados, resultados, programas de computador e seus artigos, antes mesmo de serem avaliados pelas revistas científicas. É a ciência aberta a que permitiu divulgar em tempo real o volume de dados que possibilitou os avanços que destaquei. Os desenvolvimentos em inteligência artificial, busca e organização automática de dados na rede e em plataformas abertas de análise de dados permitem acelerar os progressos sobre a quantidade maciça de dados disponíveis. Na última década, as equipes de investigação cresceram em tamanho, tornaram-se mais interdisciplinares (eu sou um biólogo marinho, mas lidero uma equipe de resposta à covid-19), mais colaborativos e desenvolveram ferramentas de trabalho em grupo à distância. Essas ferramentas permitem esta corrida de revezamento em que, ao nos levantarmos, temos em nosso computador os resultados de experimentos feitos na China enquanto dormíamos, entregamos os nossos a pesquisadores na América do Norte com os quais mantemos videoconferências enquanto eles tomam o café da manhã e nós jantamos, e estes por sua vez os entregam a cientistas chineses.
A sociedade não será a mesma depois da covid-19, mas a pesquisa tampouco será. O valor da ciência aberta e colaborativa nunca ficou tão claro como nesta crise. Esperemos que a sociedade não se esqueça dos profissionais da saúde quando isto acabar, mas que tampouco se esqueça da ciência e dos seus profissionais. Também não devemos ignorar outros desafios científicos que merecem o mesmo esforço e o mesmo respaldo social, como a luta contra a mudança climática, a proteção da biodiversidade e a realização dos objetivos de desenvolvimento sustentável.
Da minha casa, que virou meu laboratório, às 20h, hora em que concluo este texto, quero aplaudir hoje a comunidade científica internacional [todos os dias, às 20h, os espanhóis dedicam um aplauso aos profissionais sanitários]. Não é um aplauso prematuro, porque sei que serão eles que colocarão um fim nesta guerra, com uma vitória que, pela primeira vez, toda a humanidade comemorará unida.
Carlos M. Duarte é titular da Cátedra Tarek Ahmed Juffali de Pesquisa Ecológica do Mar Vermelho na Universidade Rei Abdullah de Ciência e Ecologia (Arábia Saudita), ganhador do Prêmio Nacional de Ciência da Espanha e designado para receber o Prêmio Fundação BBVA Fronteiras do Conhecimento em Ecologia e Biologia da Conservação na sua edição de 2020.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.