Os Big Data do coronavírus
Como a tecnologia, o direito e a China nos ajudam a entender e enfrentar uma pandemia
O famigerado Covid-19 está se espalhando globalmente. Qualquer administrador responsável, neste momento, não deveria se perguntar se o coronavírus chegará na sua jurisdição, mas como reagir quando ele chegar.
Felizmente, a evolução tecnológica, especialmente as análises de Big Data, o estudo da recente experiência chinesa e a aplicação do direito nos oferecem pistas sólidas para confrontar a chegada da pandemia.
Primeiramente, cabe destacar o papel dos Big Data. Analisando amplas bases de dados heterogêneos em tempo real, essas tecnologias se revelam muito úteis para entender e prever os movimentos do vírus.
Cruzando, por exemplo, a geolocalização dos indivíduos infectados com a lista dos contatos deles no período de incubação, é possível determinar quem está correndo um risco mais ou menos elevado de contaminação. Analisando a evolução da contaminação nas áreas mais impactadas, em conjunção com os dados sobre fluxos aéreos e rodoviários, é possível mapear, simular e prever o avanço do vírus —como o avanço de um evento meteorológico.
A experiência chinesa dos últimos meses é extremamente valiosa para tirar algumas lições particularmente relevantes, sobretudo no que diz respeito à gestão de duas dimensões da informação.
De um lado, a necessidade de comunicar os riscos e as diretrizes necessárias para conter a doença de maneira clara, efetiva e honesta. Os administradores da província de Hubei, onde o primeiro e mais letal surto eclodiu em dezembro, claramente falharam na comunicação. O preço de tal falha foram milhares de contaminações e centenas de mortes. Entendendo a gravidade do erro, o Governo chinês, desde janeiro, tornou a difusão efetiva de informação sobre o vírus e das medidas necessárias para fazer frente à sua expansão uma prioridade nacional.
De outro lado, a coleta de informações e a qualidade dos dados coletados são elementos essenciais para tomar as medidas mais pertinentes, efetivas e eficientes. Neste sentido, também, a experiência chinesa monstra como a tecnologia pode auxiliar os administradores.
O caso do Alipay Health Code ilustra muito bem o potencial de tal cooperação tecno-administrativa, mas é também emblemático dos cuidados necessários para não se crie externalidades negativas indesejadas. Introduzido inicialmente na megalópole de Hangzhou, na China oriental, o “código de saúde” da Alipay é uma ferramenta desenvolvida pelo gigante tecnológico Alibaba para classificar o risco de contração de Covid-19 de seus usuários.
A ferramenta baseia-se em análises de Big Data a fim de atribuir um código de cor verde, amarela ou vermelha para determinar o nível de risco de contaminação de cada usuário. Verde implica ausência de restrições para sua liberdade de movimento. Amarelo corresponde à possibilidade de quarentena por uma semana. Vermelho significa duas semanas de quarentena.
Segundo a agência de imprensa oficial, Xinhua News, o sistema está sendo ampliado ao nível nacional e já está cobrindo centenas de milhões de cidadãos chineses.
Um último elemento que emerge como essencial é a necessidade de empregar as análises de Big Data —ou qualquer outra tecnologia— no pleno respeito do direito. Nesta perspectiva, apesar de entrar em vigor apenas em agosto, a nova Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) já oferece orientações valiosas.
A proteção da vida, da incolumidade física e a tutela da saúde por entidades sanitárias são explicitamente listadas entre as bases legais para o tratamento de dados pessoais na LGPD.
O legislador europeu foi ainda mais específico do legislador brasileiro, incluindo explicitamente o monitoramento de pandemias no regulamento europeu sobre proteção de dados. Assim, o famoso GDPR menciona essa situação para exemplificar os casos nos quais o processamento de dados pessoais pelas instituições prepostas pode ser considerado legal, mesmo na ausência de consentimento, se for necessário para proteção de interesses vitais.
Portanto, as análises de Big Data ou outras técnicas algorítmicas baseadas em processamento de dados podem e devem ser utilizadas para conter a expansão do Covid-19. Mas os poderes públicos e, idealmente, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados —que ainda não foi criada pela Presidência da República, a cinco meses da entrada em vigor da lei— devem vigiar para que o processamento de dados pessoais seja efetuado somente quando for necessário pela proteção da saúde e da incolumidade dos indivíduos.
A difusão do coronavírus oferece uma oportunidade extremamente poderosa para demonstrar os benefícios da tecnologia a serviço da sociedade. O monitoramento extensivo da epidemia contribui para a proteção do indivíduo. Porém, é necessário vigilância para que a gestão da emergência pandêmica não se transforme em um pretexto para monitorar abusivamente a população.
É essencial que os dados necessários para alimentar tal tecnologia sejam processados em total segurança e transparência, no pleno respeito dos direitos individuais e liberdades coletivas.
A história nos ensina que é nos momentos de crise que a solidez das instituições é testada e as garantias do direito são as mais necessárias.
Luca Belli, PhD é Professor de Regulação de Internet na FGV Direito Rio, coordenador do projeto CyberBRICS e da Conferência latino-americana sobre Computers, Privacy and Data Protection (CPDP LatAm)
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