Ataques à Lava Jato pavimentam caminho ao julgamento decisivo de Sergio Moro no STF
Corte beneficia Lula ao excluir de seu processo delação de Palocci divulgada por ex-juiz em 2018. Coalizão antilavajatista sonha em barrar candidaturas de ex-magistrado e Dallagnol
A Lava Jato vive um annus horribilis em 2020, atordoada por decisões na Suprema Corte, e uma campanha ostensiva do procurador-geral Augusto Aras contra os métodos da operação, sob as graças do Planalto. O mau agouro respinga na figura do ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro, personagem que mais encarnou a cruzada anticorrupção que sacudiu o Brasil e alguns países da América Latina desde 2014. Hoje, para boa parte do meio jurídico, ele personifica a deterioração da Justiça e dos ritos democráticos. Em um dos lances mais recentes desse revés, na última terça-feira, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal tomou uma decisão a favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), condenado duas vezes por Moro por corrupção e lavagem de dinheiro.
Os ministros da Corte entenderam que a delação do ex-ministro Antonio Palocci, divulgada por Moro na semana prévia à eleição em primeiro turno de 2018, não poderia ser incluída nos processos contra o ex-presidente, o que pode anular ao menos um processo contra Lula em Curitiba. Nas palavras do ministro Gilmar Mendes, a divulgação parecia ter “sido cuidadosamente planejada pelo magistrado para gerar verdadeiro fato político na semana que antecedia o primeiro turno das eleições presidenciais de 2018”. Também concederam aos defensores acesso ao acordo de leniência da empreiteira Odebrecht. “O Supremo reconheceu algumas de nossas queixas. Uma delas é a de que essa foi uma condenação política. Outra, de que não tínhamos acesso a tudo o que precisávamos para fazer a defesa”, diz o advogado de Lula, Cristiano Zanin.
Partiu da defesa do ex-presidente petista, no final de 2018, o recurso no Supremo pela suspeição de Moro que anularia as sentenças proferidas contra o ex-presidente Lula. São processos que correram em Curitiba, como o caso do triplex do Guarujá, pelo qual o ex-presidente já cumpriu parte da prisão, o caso do sítio de Atibaia, e um terreno para o Instituto Lula que teria sido aceito, segundo Palocci, em acordo com a Odebrecht. Dentre os argumentos da defesa, estão a parcialidade do ex-juiz, escancarada depois de aceitar o cargo de ministro da Justiça do Governo Bolsonaro. A ação foi encorpada com as revelações do The Intercept Brasil sobre as comunicações estreitas entre Moro e procuradores de acusação do ex-presidente, que reforçam a leitura de parcialidade.
O jogo virou, celebram inimigos da Lava Jato, embora o destino da operação — e das decisões de Moro — esteja longe de ser definida. A decisão de terça-feira virou uma prévia de um julgamento previsto para ocorrer nas próximas semanas no qual será analisada também pela segunda turma a parcialidade de Moro, o ex-juiz que por um ano e quatro meses foi ministro da Justiça de Bolsonaro. Os cinco juízes decidirão se Moro tinha interesses particulares na condenação de Lula. Dois deles já proferiram seus votos contra a tese da defesa do ex-presidente: Edson Fachin e Cármen Lúcia. Outros dois, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski sinalizaram que acatarão a tese. O voto de minerva deve ser o de Celso de Mello, o decano da Corte.
A pancada do Supremo esta semana sobre o que pareciam intocáveis —Moro e a Lava Jato— vem numa sequência de golpes que passa também pelo descolamento do presidente Bolsonaro da febre lavajatista. Justamente depois de ter sido eleito sob a bandeira anticorrupção da mais longeva operação contra a corrupção no Brasil, que levou para o banco dos réus dezenas de empresários, doleiros e políticos. Moro dividiu com Bolsonaro o seu troféu na Lava Jato, a prisão de Lula, e reforçou a base eleitoral do presidente.
As máscaras, entretanto, caíram em abril quando Moro pediu demissão do cargo de ministro da Justiça, e Bolsonaro passou a hostilizar sua figura e, com apoio de seu aliado na PGR, Augusto Aras, a própria operação que ajudou a elegê-lo. Começou com Bolsonaro limitando os poderes de Sergio Moro no Ministério da Justiça, enfraquecendo os mecanismos de combate à corrupção, tentando interferir na Polícia Federal e acusando seu antigo subordinado de agir mais politicamente do que em defesa do Governo. Moro se demitiu, posou de vítima e atacou o chefe, o que resultou em um inquérito no STF contra ambos. Até 2018, quando aceitou ser ministro, Moro era a principal cara da operação. Idolatrado por parte da população nas ruas e assediado por partidos políticos para uma candidatura. Agora, entre bolsonaristas, é chamado de traidor e vê uma clara tentativa de limitação de sua atuação na seara política.
Enquanto isso, no Congresso, há uma intensa discussão, com apoio do Governo, para se aprovar um projeto de lei que obrigue juízes e membros do Ministério Público a cumprir uma quarentena de oito anos para poderem se candidatar à cargos eletivos. A ideia é tirar Moro e o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa do Paraná, do tabuleiro político de 2022. O ex-juiz é um dos presidenciáveis, enquanto que o procurador é apontado como um possível nome ao Senado.
“É lamentável que em meio a uma pandemia nossa preocupação seja com essa quarentena, não com a sanitária”, disse o cientista político Leandro Consentino, professor do Insper. “Não podemos super-empoderar promotores, endeusar juízes. Isso é perverso para o sistema de Justiça”, diz o advogado Marco Aurélio de Carvalho, ferrenho defensor da quarentena aos egressos do MP e da Justiça. Apoiador da Lava Jato, o procurador e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, Roberto Livianu, diz que a quarentena deveria valer também para outras carreiras, como defensores públicos, policiais e oficiais das Forças Armadas. “A quarentena é uma salvaguarda de profunda relevância, mas não essa. Porque é seletiva”, diz Livianu. Ele ainda questiona o longo prazo. “Um crime de homicídio tem pena de seis anos. Deixar um juiz, um promotor oito anos impossibilitado de disputar uma eleição é mais do que uma punição”.
A mão de Aras
Na semana passada, foi a vez do procurador-geral da República, Augusto Aras, abrir uma série de ataques à Lava Jato, quando insinuou em live com advogados do Grupo Prerrogativas, formado por críticos da operação, que os procuradores de Curitiba, liderados por Deltan Dallagnol, tinham uma “caixa de segredos” com dados de mais de 38.000 pessoas. Em junho ele enviou a subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo a Curitiba para que ela obtivesse todos os arquivos que constavam do banco de dados da força-tarefa. Recebeu um não. Recorreu ao Supremo e conseguiu, em julho, uma decisão a seu favor das mãos do presidente da Corte, José Antônio Dias Toffoli. Era o período de recesso judiciário. Mas assim que as férias dos ministros acabaram, o relator da Lava Jato no STF, Edson Fachin, revogou a decisão de seu colega e determinou que os dados ficassem onde estavam.
“É uma afronta. Procuradores e promotores têm independência funcional. Eles não estão subordinados ao PGR”, reclama o procurador Roberto Livianu. Outro movimento de Aras que pode interferir nas apurações da Lava Jato e de outras forças-tarefa é a criação de um órgão central de combate à corrupção. Batizado de Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Unac), seu coordenador seria subordinado ao PGR. “Centralizar essas investigações é pedir para que o combate dê errado. Há um alto risco de interferência política nas apurações”, alerta Livianu.
O argumento da interferência política, porém, é o mesmo que se voltou contra a Lava Jato depois da ida de Moro para o Governo Bolsonaro na sequência da liberação da delação de Palocci às vésperas da eleição, e das revelações do The Intercept Brasil. Aos poucos, firma-se um debate vocalizado recentemente pelo ministro Gilmar Mendes sobre a relação entre a operação comandada em Curitiba e o atual Governo, que já demonstrou inúmeros arroubos golpistas e desprezo pela democracia. “A Lava Jato é a mãe do bolsonarismo”, lançou Gilmar Mendes, numa entrevista em maio deste ano. A pressa em fazer justiça quebrou rituais jurídicos e atropelou acordos internacionais do Brasil, acusam as vozes de defesa dos investigados na operação, que começam a somar algumas vitórias. “A Lava Jato criou uma engrenagem, inventou um mecanismo de opressão judicial, de assassinato de reputações, para trucidar investigados, com concentração de competência”, diz o advogado criminalista Fabio Tofic, que integra o Grupo Prerrogativas. “A competência foi afirmada com ataques ao Direito e a tribunais superiores que ousassem ir contra eles. Nasceu ali o embrião de agressão ao próprio sistema, e o ataque às instituições”, completa.
Tofic é um dos autores do Livro das Suspeições, obra lançada neste final de semana que coloca o ex-juiz como um agente que colabora com o desgaste da democracia e as agressões ao Supremo que tomaram o país. Num momento de ataque às instituições democráticas no mundo inteiro, a Lava Jato fica vulnerável, posta numa trincheira oposta ao que preconizava quando nasceu.
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