“O papel da extrema direita é fazer a população oprimida se reestruturar. Nós temos que derrotá-la”

Milton Barbosa, um dos fundadores do Movimento Negro Unificado criado na ditadura militar, diz que mesmo a esquerda demorou a se engajar na luta contra o racismo

Milton Barbosa, um dos fundadores do Movimento Negro Unificado (MNU).PC Pereira

Voz do movimento negro no Brasil há exatamente 42 anos, Milton Barbosa (Ribeirão Preto, 1948) ainda não foi ouvido. Escolhido o orador de um manifesto lido para cerca de 2.000 pessoas nas escadarias do Theatro Municipal de São Paulo, em plena ditadura militar, ele denunciou a violência contra a população negra e a discriminação racial, simbolizadas na época pela morte do feirante Robson da Luz, torturado pela polícia por ser suspeito de roubar uma fruta, e pela proibição de entrada de quatro atletas de um time de vôlei em um tradicional clube paulistano. “Os racistas do Clube de Regatas Tietê que se cubram, pois exigimos justiça. Os assassinos de negros que se cuidem, pois a eles também exigiremos justiça!”, proferiu, naquele 7 de julho de 1978. Era, segundo discursou, um dia histórico, que representou um novo passo na luta contra o racismo no Brasil.

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O ato de lançamento do Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial foi considerado marco por ter sido o primeiro de caráter nacional, com representantes de outros Estados, e pela mudança tática de enfrentamento, indo além dos debates e dos eventos culturais, como os bailes black. Em 1979, o grupo passou a se chamar Movimento Negro Unificado (MNU). “Com ele, inaugurou-se o protesto nas ruas para denunciar o mito da democracia racial, a violência policial e a pobreza da população negra. Essa habilidade política inspirou diversas organizações espalhadas por todo o território brasileiro”, explica a historiadora Gevanilda Santos no livro Relações raciais e desigualdade no Brasil (2009).

Isolado em sua casa em São Paulo em razão da pandemia de coronavírus —”Tenho 72 anos, não posso ficar dando bobeira”, diz—, Barbosa assiste, como em outras tantas vezes, à repetição da história. Casos de abuso policial contra jovens negros motivam repúdio e levam pessoas para as ruas, ao mesmo tempo em que a crise econômica gerada pelo vírus aumenta o desemprego e reforça as desigualdades. Estamos lutando pelas mesmas questões de mais de 40 anos atrás? “Com certeza, porque neste país a violência policial é sistemática”, afirma em entrevista ao EL PAÍS. “Eles [policiais] sempre atuaram meio de forma autônoma, independente, e num Governo de extrema direita ficam ainda mais violentos porque se sentem livres para agir”, diz, sobre o Governo de Jair Bolsonaro. Cita como revoltantes os recentes casos do jovem Guilherme Silva Guedes, de 15 anos, assassinado a tiros após ser levado de madrugada da frente da casa da avó, e de David Nascimento dos Santos, 23, que apareceu morto com as roupas trocadas após abordagem policial —ambos os episódios ocorreram em São Paulo e estão sob investigação.

Para o ex-estudante de economia da USP (não concluiu o curso, mas conta que ainda “agitava” no movimento estudantil na época em que ajudou a fundar o MNU) e ex-metroviário (diz ter sido demitido duas vezes por perseguição política), a polícia se sente respaldada pelo Estado para torturar e matar, seguindo o que chama de projeto de genocídio da população negra, “especialmente da juventude negra”, instalado desde a abolição da escravatura. É esse mesmo projeto, escondido na estrutura da sociedade, que faz ainda com que muitos normalizem a violência e não se mobilizem para eliminá-la. “Sempre fui abordado pela polícia. Já fiquei a madrugada toda na cadeia, de bobeira, sem ter feito nada. Isso faz parte da nossa vida.”

Capa do jornal 'Folha de S.Paulo' de 8 de julho de 1978 noticia o ato de lançamento do MNU.Reprodução

Miltão, como também é conhecido pelo movimento, recorda que mesmo entre militantes políticos o combate ao racismo não era uma pauta prioritária há poucas décadas. “Nós sempre falamos para a esquerda que eles tinham que combater o racismo, que a maioria da população era negra, de trabalhadores, mas eles não entendiam na época. Eram na maioria de classe média, pequeno-burgueses.” Uma maior conscientização sobre a identidade brasileira veio com os exílios na ditadura. “Quando a ditadura pegou pesado, prendeu, torturou, matou, eles tiveram que fugir. E foi nos Estados Unidos, na Europa, que eles descobriram que eram não brancos”, provoca. “Descobriram que só o americano, o canadense, o europeu são de uma cor rosa e cabelo dourado.”

No início da década de 1980, Barbosa foi um dos criadores da primeira Comissão de Negros do PT e ajudou a montar secretarias de combate ao racismo em várias cidades do país. “Fizemos um bom trabalho, mas também tivemos muita dificuldade. Muitas vezes não entendiam o que a gente estava colocando”, recorda. No partido, diz, conseguiu chamar a atenção para a defesa dos quilombolas —o MNU foi um importante articulador da garantia, na Constituição de 1988, do direito de propriedade de terra aos remanescentes dessas comunidades. Porém lamenta a falta de compreensão sobre outras agendas urgentes da população negra. “O enfrentamento da violência policial, por exemplo. Poucos brancos entendem o significado disso, infelizmente. A negrada é que tem que ir para cima mesmo.”

Hoje, Barbosa diz perceber uma abertura maior para as questões dos negros no campo político e vê com admiração o surgimento de lideranças potentes, como a vereadora carioca Marielle Franco, do PSOL, assassinada em 2018. “Uma figura incrível. Foi uma surpresa para mim”, declara. “Lendo o livro dela você entende por que ela foi assassinada. Ela representa tudo, o enfrentamento da questão do negro, da mulher, do LGBT”, explica. Para Barbosa, o país vive um momento muito rico com as “herdeiras de Marielle” eleitas para as Assembleias Legislativas em 2018. Em São Paulo, ele fez campanha para Erica Malunguinho, também do PSOL, a primeira trans eleita deputada na Alesp. “Temos uma juventude incrível, com uma visão ampla, que está fazendo um bom trabalho. Essa é a garantia de que seremos vitoriosos”, avalia Miltão, pai de seis filhos, “duas moças e quatro moços”, “meio a meio” engajados no movimento negro.

Sobre a situação do Brasil hoje, o atual coordenador nacional de honra do MNU lembra da estratégia usada em 1978 para dar força ao movimento, obtendo apoio de outras frentes da esquerda e chamando a atenção de “setores da burguesia”, como a mídia. “Na ditadura militar nós juntamos forças que se propunham a enfrentar o regime. É muito parecido ao momento de hoje”, opina. “A extrema direita tenta tirar nossas conquistas, então os setores progressistas têm que se estruturar para ir para cima dela”, afirma, defendendo uma coalizão política e da sociedade contra os retrocessos do Governo. “O papel da extrema direita é fazer a população oprimida se reestruturar. Nós temos que derrotá-la, não tem outro caminho. Essas mobilizações de hoje estão apontando um caminho.”

"HOJE NÃO HÁ DÚVIDA DE QUE O BRASIL É UM PAÍS RACISTA", DIZ COORDENADORA EM SP

People attend a protest against police violence and racism, amid the coronavirus disease (COVID-19) outbreak, in Sao Paulo, Brazil, July 4, 2020. REUTERS/Amanda PerobelliAMANDA PEROBELLI (Reuters)

Um dos feitos do movimento negro na ditadura militar foi desconstruir o mito da democracia racial, reforçado principalmente por intelectuais como Gilberto Freyre, autor do clássico ‘Casa-grande & senzala’, de 1933. Essa mudança de mentalidade marca a diferença de contexto entre a época do lançamento do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, e os dias de hoje, avalia a coordenadora da entidade em São Paulo, Regina Lucia dos Santos. Para ela, apesar de as pautas colocadas pelo movimento há quatro décadas permanecerem, “estamos em um novo momento de mobilização da população negra”. “Hoje não há mais dúvidas de que o Brasil é um país racista e que a desigualdade social no Brasil é sobretudo baseada no racismo”, afirma.

Ela diz que o principal legado do MNU foi tirar a população negra da invisibilidade e aponta o pioneirismo do movimento em discussões como o feminismo negro, com a atuação de integrantes como Lélia Gonzalez (1935-94), filósofa e historiadora, e Luiza Bairros (1953-2016), socióloga que foi ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Brasil entre 2011 e 2014.

Santos destaca como uma das conquistas da entidade na política a aprovação da lei federal 10.639, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas. Ex-militante do PT, diz que partidos de esquerda ainda resistem a colocar o racismo como um pilares a serem combatidos, e que os movimentos sociais cumprem essa lacuna institucional. “Ainda não fomos ouvidos pelo sistema, mas fomos ouvidos pela população negra e pela população em geral.”

(Foto: Protesto contra o racismo e a violência policial em São Paulo, no último sábado. Amanda Perobelli/REUTERS)

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