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Rudy Giuliani, cerco ao ministro das sombras de Trump

Extraordinária viagem de quem foi o "prefeito da América" e acabou levando ao precipício o presidente que o contratou para protegê-lo

Pablo Guimón
Giuliani, na Casa Branca em maio de 2018.
Giuliani, na Casa Branca em maio de 2018.Alex Wong (Getty Images)

Duas capas da revista Time, separadas por 18 anos, ilustram a extraordinária queda em desgraça de Rudy Giuliani. Alçado sobre o terraço de um arranha-céu, como um super-herói com Manhattan aos seus pés, no Natal de 2001 a revista o retratava como o personagem do ano, e se referia a ele como “o prefeito da América”. Em novembro de 2019, seu rosto já idoso, desafiante, insolente, em primeiro plano e em preto e branco, ilustrava outra capa com uma manchete bem diferente: “Secretário da ofensa”.

A promotoria do sul de Nova York, que ele mesmo dirigiu com pulso firme nos anos oitenta, agora investiga Giuliani. Seu nome se repete centenas de vezes nos interrogatórios da investigação para o impeachment de Donald Trump. Os Estados Unidos se perguntam o que aconteceu com Rudy Giuliani. Mas quase quatro décadas de vida pública estão aí para quem quiser procurar explicações. A mesma natureza vulcânica que o transformou no herói de um país enlutado o levou a acompanhar à beira do precipício um presidente que o contratou para protegê-lo.

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Nascido em 1944, filho de imigrantes italianos, seu pai, encanador e garçom, trabalhou como capanga de uma rede mafiosa local. O crime organizado, que ditava sua lei no Brooklin onde cresceu, era, portanto, algo quase familiar para Rudy Giuliani quando em 1983 se transformou em promotor do Distrito Sul de Nova York. Dois anos depois protagonizou um lendário golpe à máfia.

Caíram 11 capos das cinco famílias de Nova York. Giuliani brilhou. Era corajoso, idealista, ambicioso. Falava na linguagem das ruas. Na segunda tentativa, em 1993, chegou à prefeitura de Nova York.

Eram tempos duros na cidade. Dois mil assassinatos por ano, quase seis por dia. Giuliani construiu sua campanha sobre o argumento da mão de ferro contra o crime. Iria limpar a cidade. Mas as táticas agressivas que tanto sucesso lhe trouxeram nos primeiros quatro anos começaram a se voltar contra ele em seu segundo mandato. Escândalos de violência policial. Acusações de racismo. A cidade começava a recusar seu prefeito.

Negada por lei a possibilidade de concorrer a um terceiro mandato, tentou sem sucesso conseguir uma cadeira no Senado. Enfrentou a à época primeira-dama, Hillary Clinton. Em quatro frenéticas semanas, o prefeito anunciou que tinha câncer de próstata, os tabloides insinuaram uma relação extraconjugal, anunciou a separação de sua mulher e, em 19 de maio de 2000, abandonou sua corrida ao Senado.

Então, quando lhe restava um pouco promissor ocaso de três meses até deixar a prefeitura, vieram os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Rudy Giuliani tomou o controle. Nunca se conhece totalmente a capacidade de um político até um momento de autêntica crise. E Giuliani, novamente, brilhou. Os piores dias de sua cidade foram os melhores dias de sua carreira.

Fora da prefeitura, soube capitalizar a heroicidade. Fez dela sua marca. Publicou um livro chamado O Líder, deu conferências por todo o mundo, fundou uma consultoria de segurança. E, em 2006, anunciou sua inevitável corrida presidencial.

Seu trunfo, claro, era a liderança mostrada no 11 de setembro. De fato, tudo era o 11-S. Alguém demonstrou isso, e esse alguém foi Joe Biden. “Só há três coisas que ele menciona em uma frase. Um substantivo, um verbo, e o 11-S”, o futuro vice-presidente o humilhou, em um debate nas primárias democratas em outubro de 2007.

Foi um golpe terrível ao ego de Giuliani. Nunca perdoou Biden. Pouco depois saiu da corrida presidencial. Seus negócios também foram afetados. Um perdedor já não podia se vender como o grande líder. Caiu, pela primeira vez em muitos anos, em uma discreta irrelevância. Até que, em 2015, Donald Trump anunciou que concorreria à presidência.

Eles se conheciam há décadas e suas histórias possuíam semelhanças evidentes. Os dois venceram em Manhattan com o estigma de crescerem nos bairros mais afastados. Os dois procuraram a luz dos holofotes e suas vidas alimentaram os tabloides.

Giuliani se transformou em uma das primeiras figuras do establishment republicano a apoiar Trump em sua corrida presidencial. Trump venceu. E uma vez na Casa Branca, lhe ofereceu vários postos, que Giuliani recusou com a esperança de ser nomeado secretário de Estado, algo que Trump e seu genro Jared Kushner não viam tão claro. Por fim, decidiu ficar de fora do Governo, como conselheiro e amigo. E no momento de maior necessidade, Trump recorreu a ele.

Em 2018 o promotor especial Robert Mueller apertava o cerco sobre o presidente. Trump percebeu que teria de passar a ofensiva e decidiu contar com Giuliani para isso, que se transformou em seu advogado pessoal em abril de 2018.

A política, que deu a fama a Giuliani, não o havia tornado rico. Mas desde que deixou a prefeitura a coisa mudou. Em 2017, de acordo com seus advogados, ganhou 9,5 milhões de dólares (40 milhões de reais). Seu novo cargo a serviço do presidente, pelo qual Giuliani se gaba de não receber, lhe permite agir como essa espécie de secretário de Estado nas sombras descrito nos depoimentos do impeachment e, ao mesmo tempo, continuar com suas lucrativas atividades privadas. Giuliani alternou durante sua vida etapas de poder político e de enriquecimento econômico. Mas, pela primeira vez, no último ano e meio misturou as duas atividades. E então vieram os problemas.

Existiu um momento em que seus interlocutores não sabiam quais interesses Giuliani representava. Os seus próprios como consultor? Os de seu cliente Donald Trump? Os dos EUA? Em uma Administração com a inesgotável capacidade de produzir notícias, as atividades de Giuliani pelo mundo de não eram o principal foco de atenção. Até que a Ucrânia atravessou seu caminho.

Procurando defender o presidente da investigação de Mueller, encontrou uma arma conveniente. Como todas as teorias, possui um fundo de verdade. É verdade que o Executivo anterior de Kiev realizou uma campanha midiática e de influência contra Trump nas eleições, mas a trama em questão vai muito mais além. Afirma que foi a Ucrânia, e não a Rússia, a intervir nos e-mails dos democratas, algo refutado tanto pelo relatório Mueller como pelos serviços de inteligência norte-americanos, que veem isso como uma tentativa da inteligência russa de desviar a atenção de sua comprovada ingerência em 2016.

A jogada da Ucrânia tinha outra virtude acrescida: permitia a Giuliani acertar contas com Joe Biden, que além disso é agora o democrata com mais possibilidades de enfrentar seu cliente, Trump, nas eleições de 2020.

Hunter Biden, seu filho, esteve no conselho da empresa de gás ucraniana Burisma, e Giuliani afirma que Joe Biden utilizou seu cargo de vice-presidente durante a Administração Obama para obrigar a destituição de um promotor ucraniano que pretendia investigar o chefe da Burisma. A história, novamente, tem várias inexatidões. Hunter Biden nunca foi investigado e seu pai foi somente um dos muitos agentes estrangeiros que manobraram contra o promotor, justamente por seu fracasso em combater a corrupção. Mas as acusações podem prejudicar a corrida presidencial de Biden e dar a Giuliani uma suculenta vingança 12 anos depois.

Lev Parnas e Igor Fruman, dois empresários da Flórida, são fundamentais nos problemas de Giuliani, que começou a trabalhar com os dois em agosto de 2018. Parnas, de origem ucraniana, pagou antecipadamente a Giuliani 500.000 dólares (2,1 milhões de reais) pelo que afirmou ser assessoria legal e de segurança. Sua ligação com Giuliani, que exibiam nas redes sociais, abriu aos empresários as portas dos círculos republicanos e eles supostamente ajudavam Giuliani na Ucrânia.

Em outubro, Parnas e Fruman foram presos, acusados de comprar influência política dirigindo doações estrangeiras a políticos norte-americanos. A investigação revelou suas ligações com Giuliani. De acordo com o The Wall Street Journal nessa semana, os promotores estão investigando quase uma dezena de crimes que o ex-prefeito pode ter cometido, incluindo obstrução da Justiça, lavagem de dinheiro e conspiração para fraudar os EUA. Além disso, verificam se Giuliani violou as leis de lobbies ao manobrar contra a embaixadora norte-americana em Kiev, Marie Yovanovitch. Também nessa semana, o The New York Times publicou que Giuliani estudou fazer negócios pessoais com funcionários ucranianos ao mesmo tempo em que procurava seu apoio para obter informação sobre os rivais de Trump.

Os problemas se amontoam para Giuliani. Tanto que, pela primeira vez, até o próprio Trump quis se distanciar dele nesta semana. Durante meses, de acordo com os depoimentos do impeachment, quando alguém de sua Administração lhe perguntava algo sobre a Ucrânia, Trump dizia para falar com Giuliani. Na terça-feira, em uma entrevista na rádio, perguntaram ao presidente o que exatamente Giuliani fazia em seu nome na Ucrânia. “Terão que perguntaram a Rudy”, respondeu Trump. “Eu não sei”.

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