Caso Marielle lança sombra sobre a polícia, tribunais e a política brasileira
Assassinato da vereadora carioca, há 20 meses, está cheio de lacunas, inclui graves irregularidades e continua cercado por uma corrente de informações, frequentemente contraditórias, que semeiam novas dúvidas sobre quem encomendou o assassinato
A investigação sobre o assassinato, há 20 meses, da vereadora Marielle Franco, transformada em símbolo da esquerda brasileira, saiu da letargia esta semana com um eletrochoque. A notícia de que um porteiro do condomínio onde Jair Bolsonaro vivia antes de se mudar para Brasília mencionou o presidente em relação com o crime durante um interrogatório policial devolveu o caso à atualidade. A revelação monopolizou o debate durante algumas horas, mas no dia seguinte o Ministério Público lançou dúvidas sobre o testemunho. Esta é a dinâmica de uma investigação que está corrompida, segundo a ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge. O caso está cheio de lacunas, inclui graves irregularidades, como um delegado que tentou incriminar um vereador com uma confissão falsa, e continua cercado por uma corrente de informações, frequentemente contraditórias ou confusas, que semeiam novas dúvidas sobre quem encomendou o assassinato.
“598 dias. Quem mandou matar Marielle? E por quê?”, tuitou na manhã deste sábado Eliane Brum, como vem fazendo diariamente. A colunista do EL PAÍS aponta, como uma ladainha, as duas principais incógnitas de um caso que tem como pano de fundo as milícias, grupos criminosos formados por ex-policiais que controlam várias áreas do Rio de Janeiro. As suspeitas de vínculos dos Bolsonaro com esse mundo vêm de longe, porque o clã dedicou boa parte de suas carreiras políticas a defender os interesses corporativos dos agentes das forças de segurança. Há meses se sabe que Bolsonaro era vizinho do suposto atirador, que tem uma foto com o segundo suspeito... Marielle Franco representava outro universo. Era uma negra criada em uma favela, mãe, bissexual e estrela emergente no Partido Socialismo e Liberdade.
A TV Globo abriu com a reportagem exclusiva o telejornal de maior audiência do país na terça-feira à noite. O protagonista era o presidente e a data, a do assassinato. Um porteiro contou à polícia que em 14 de março de 2018 o ex-policial militar Élcio Queiroz, hoje na prisão, chegou de carro ao condomínio, disse que ia à casa 58 (a de Bolsonaro), e um homem que se apresentou como Jair autorizou, pelo interfone, sua entrada… mas o suspeito, em vez de ir à casa de Bolsonaro, foi à do suposto assassino, Ronnie Lessa. A polícia acredita que pouco depois ambos saíram para cometer o crime.
Um Bolsonaro bastante irritado negou imediatamente as acusações, em um vídeo gravado em plena noite na Arábia Saudita, onde estava em viagem oficial. Está comprovado que no dia que a vereadora e seu motorista foram assassinados, o então deputado federal estava em Brasília, porque votou na Câmara. O Ministério Público semeou dúvidas sobre a informação da Globo ao revelar que a declaração do porteiro não coincide com as gravações da guarita, que indicariam que foi Lessa que autorizou a entrada. Neste sábado, Bolsonaro afirmou que pegou a gravação da portaria do seu condomínio "antes que fosse adulterada". " Pegamos toda a memória da secretária eletrônica que é guardada há mais de ano. A voz não é a minha", disse o presidente.
A investigação continua em segredo, nas mãos da polícia do Rio, apesar das graves irregularidades denunciadas pela então procuradora-geral Raquel Dodge em seu último dia no cargo, em setembro. No documento em que pede a federalização do caso, Dodge traça um cenário sombrio da situação na cidade. Sustenta que a polícia estadual está contaminada e no documento há “diversas menções ao Escritório do Crime [o grupo suspeito de ter assassinado Marielle e seu motorista], às milícias espalhadas pela cidade, seus homicídios mediante pagamento, participação de policiais ou ex-policiais, em um cenário de plena impunidade” que, segundo ela, “nem a intervenção federal no Estado do Rio em 2018 conseguiu reverter”. Entre os motivos para acusar de obstrução os atuais responsáveis pelas investigações, Dodge destaca um emblemático. O delegado cuja investigação apontou primeiro Lessa e Queiroz como executores dos assassinatos propôs a um miliciano preso que confessasse ter sido contratado por um vereador para matar Marielle. Diante da recusa desse miliciano, fez uma contraproposta. O delegado lhe prometeu que, se confessasse ter sido sondado pelo vereador para cometer o crime, não iria a julgamento por uma acusação anterior de assassinato.
Dodge solicitou em setembro que Domingos Brazão, ex-membro da Assembleia Legislativa do Rio, seja investigado como autor intelectual do assassinato, além de acusá-lo de obstruir a investigação. Mas, nesta semana, a promotora do Rio responsável pelo caso Marielle declarou que “não há provas concretas” da participação de Brazão.
Na sexta-feira, uma das promotoras foi afastada da investigação depois que o The Intercept Brasil revelou que ela era uma militante bolsonarista e que tirou foto com um político local que destruiu uma placa em memória de Marielle Franco.
Os ex-policiais Lessa e Queiroz estão presos. Quatro pessoas ligadas a eles foram acusadas recentemente de se desfazer da arma do crime, que desde o começo se considerou ter sido cometido por um profissional e por encomenda. Mas, como diz a esquerda brasileira, Marielle está presente. E seu assassinato lança uma enorme sombra sobre a polícia, os tribunais e a política do Brasil.
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