Explosão social no Chile reflete mal-estar com desigualdade e lembra atos do Brasil de 2013
Entenda o contexto dos protestos que colocaram o país sob o controle dos militares. Aumento do custo de vida e desconexão dos políticos com os cidadãos explicariam em parte a explosão social chilena
O Chile era aparentemente um oásis dentro de uma América Latina em convulsão, como disse o presidente Sebastián Piñera há algumas semanas. Mas entre quinta e sexta-feira uma espécie de panela de pressão explodiu com violentos protestos sociais que no sábado colocaram a capital sob controle militar, como não acontecia desde a ditadura. As mobilizações começaram por causa do aumento do preço da passagem de metrô, mas parece haver certo consenso de que a tarifa da passagem é apenas a expressão de um descontentamento maior da sociedade chilena. A situação lembra os protestos no Brasil de 2013, quando centenas de pessoas foram às ruas contra o aumento da passagem do transporte público, mas que desencadeou muitas reivindicações com pautas difusas no país. A ação do Exército chileno, apoiado pela polícia, não conseguiu aplacar o protesto em diferentes regiões de Santiago, onde confrontos, ataques incendiários e saques ao comércio continuaram acontecendo neste sábado. As manifestações começaram a irradiar para outras regiões do país, o que forçou o Governo a decretar um toque de recolher.
Circula pelas redes sociais uma imagem que tenta explicar o problema. Há um iceberg e, na ponta dele, aparecem os protestos contra o aumento da tarifa do metrô, que começaram na semana passada com muitos grupos de jovens entrando no metrô sem pagar. Mas, de acordo com o desenho, existe uma parte profunda do iceberg que não é vista: “Aposentadorias indignas, saúde precária, salários miseráveis, educação de baixa qualidade, licenças médicas por depressão, dívida universitária vitalícia, salários da elite política, criminalidade sem controle, empregos precários, Pagogate e Milicogate [escândalos de corrupção na polícia e no Exército, respectivamente]”. Em suma, o que acontece estaria relacionado a um cansaço que nem este Governo nem os anteriores conseguiram apaziguar.
A economia cresce em torno de 2,5%, abaixo do prometido pelo Governo Piñera, embora certamente melhor do que muitos dos vizinhos do Chile na região. Mas viver se tornou caro, especialmente em Santiago, onde o preço da moradia aumentou até 150% na última década, enquanto os salários apenas 25%, segundo um estudo da Universidade Católica. O Chile pertence à OCDE, mas 70% da população ganha menos de 770 dólares (cerca de 3.175 reais) por mês e 11 dos 18 milhões de chilenos têm dívidas, segundo estimativas da Fundação Sol.
No mês passado foi anunciado que as contas de energia elétrica aumentarão até 10% e os aumentos do preço do transporte –justificados pela guerra comercial e pelo aumento da cotação do dólar, entre outras questões– motivaram declarações infelizes das autoridades. Como o que aumenta é o preço da passagem do metrô nos horários de pico, o ministro da Economia, Juan Andrés Fontaine, disse: “Alguém que sai mais cedo e pega o metrô às sete da manhã tem a possibilidade de uma tarifa mais baixa que a de hoje”. Foi uma espécie de bofetada para os habitantes de Santiago que podem levar até duas horas para chegar a seus locais de trabalho. O mesmo que a revelação de alguns meses atrás sobre as contribuições reduzidas do presidente Piñera –uma das principais fortunas do país– em uma de suas casas de veraneio no sul. Ou a impunidade para os casos de financiamento ilegal da política que foram descobertos nos últimos anos, afetando dirigentes e partidos de diferentes setores.
Para Lucía Dammert, analista política e professora da Universidade de Santiago, os protestos que eclodiram no Chile são “um fenômeno que foi incubado por muito tempo”. “Para começar, é protagonizado por uma nova geração de chilenos, de menos de 30 anos, que não conheceram a ditadura, abertos a expressar suas angústias e que, sem esperança, sentem que não têm nada a perder, razão pela qual suas reivindicações podem facilmente chegar à violência”. Dammert destaca, por sua vez, “a relação carnal” entre a elite política e a econômica, que as impede de ver o que está acontecendo nos setores intermediários. “Existe uma conexão maior para cima do que para baixo”, diz a especialista em segurança, referindo-se a todos os mandatos mais recentes (do mandato de Michelle Bachelet, em 2006, em diante). “A este cenário se junta uma polícia que agiu com falta de profissionalismo e a indolência das atuais autoridades”.
Segundo o advogado e cientista político Carlos Huneeus, “existe uma falta brutal de liderança do presidente Piñera, porque tem zero de sensibilidade política para controlar o que acontece”. “Em um regime presidencial no qual o presidente está imobilizado e, de passagem, imobiliza a todos, o governante se transforma em um obstáculo para o restabelecimento democrático. Assim como a oposição, que não existe”, afirma Huneeus.
As revoltas atuais eram difíceis de prever, de acordo com o especialista eleitoral e professor da Universidade Católica, Roberto Méndez, porque a faísca poderia ter explodido por qualquer assunto. “Existe uma dualidade na população chilena. Por um lado, reconhece o tremendo progresso que o Chile teve nos últimos 30 anos, que deixou de ser um dos países com maior pobreza da região para ter a melhor renda. Se valoriza que tenha reduzido a pobreza a menos de 10% e que as condições de vida da maioria tenham melhorado.” As pessoas querem manter esse progresso, explica Méndez, “mas, por outro lado, existe uma sensação de mal-estar que talvez o próprio crescimento tenha alimentado, porque as expectativas das pessoas cresceram mais rapidamente que a renda”. É um paradoxo de crescimento que não se sabe como combater, diz o analista. Sobre se os chilenos querem uma mudança de modelo econômico, Méndez não tem dúvidas: “Embora provavelmente um setor da política chilena voltará a interpretar equivocadamente os protestos, os cidadãos não pedem uma mudança de modelo, mas uma melhoria dos serviços públicos e maior acesso ao bem-estar de um país de renda média-alta”.
Para Ernesto Ottone, sociólogo e doutor em Ciência Política, “esta explosão violenta tem um apoio do resto da sociedade que é interessante analisar”. Segundo o professor e escritor, trata-se de “uma classe média que vive melhor do que antes, mas está frustrada em suas aspirações e, principalmente, tem uma opinião ruim do conjunto das instituições do Estado e do setor privado. “Os salários são considerados baixos, há uma percepção de abusos e tudo explode com medidas como a alta da passagem”. Mas, para Ottone, “o setor social que aplaude e bate panelas em sinal de apoio, anseia por melhoras, mas ao mesmo tempo é tremendamente individualista”. Se a este quadro se juntarem todos os escândalos recentes –representados na figura do iceberg que circula pelas redes– e “um Governo e uma oposição ineptos”, se desencadeia a tempestade perfeita.
O sociólogo Carlos Ruiz, professor da Universidade do Chile, ressalta que os protestos são explicados “pelo nível extremo em que a reprodução da vida cotidiana foi privatizada no Chile, o que cria várias fontes de incerteza que –ao menos neste nível– não existem em outras sociedades do mundo”. Crianças e jovens apoiados por suas famílias saíram às ruas, afirma Ruiz, que acredita que esses protestos são a continuação daqueles que explodiram no Chile desde 2006 até hoje. “É uma onda que arrasa todo mundo. Tanto os Montesco quanto os Capuleto. É a razão pela qual a política fica muda e depois a abstenção nas eleições supera os 50%”.
Para Ruiz, “é um mal-estar inorgânico e carente de representação política que nenhuma força se pode se atribuir, nem mesmo a Frente Ampla”, de esquerda, formada quando dos protestos estudantis de 2011 e que tem atualmente 20 parlamentares no Congresso, outra instituição que perdeu muito prestígio. “A única organização que continua sendo bastante valorizada no Chile são os bombeiros”, explica.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.