‘Lei Rouanet da segurança’ permite a empresários direcionarem recursos
Legislação inédita autoriza renúncia fiscal em troca da compra de armas e viaturas no Rio Grande do Sul. Especialista diz que nova norma deveria levar em conta estudos sobre o combate da violência e prevenção, e não priorizar apenas equipamentos
Desde agosto de 2019, os empresários do Rio Grande do Sul podem trocar o pagamento de uma parte do imposto devido ao Estado pela aquisição de armas, viaturas e outros equipamentos para as forças de segurança estaduais. A nova norma, apelidada de “Lei Rouanet da segurança pública”, possibilita que os próprios empreendedores determinem a destinação dos bens adquiridos: podem indicar um uso específico do artigo comprado e até o local —município ou bairro— onde preferem que seja aplicado.
Essa foi a principal mudança feita no texto aprovado pela Assembleia Legislativa a toque de caixa e sancionado pelo governador José Ivo Sartori (MDB) no final do ano passado. Ao ser regulamentado em dezembro de 2018, no apagar das luzes do mandato, o decreto trouxe como novidade a possibilidade de o empresário escolher onde e como seriam aplicados os recursos destinados por ele ao fundo vinculado ao programa, com um adendo: se ele mesmo não definir, “irá, preferencialmente, para o município do doador”.
O projeto foi aprovado pela Assembleia Legislativa sem que nenhuma emenda fosse acatada. Uma delas previa que 70% das doações fossem direcionadas às localidades com maiores índices de criminalidade, mas foi enterrada sem debate para não atrasar a votação do projeto em ano eleitoral, quando a segurança pública havia se tornado um dos principais temas. Depois que o governador Eduardo Leite (PSDB) tomou posse, um novo decreto passou a regulamentar a lei, mas ainda assim a destinação de recursos para a região escolhida pelos empreendedores foi mantida.
Hoje deputado federal, Ronaldo Santini (PTB) tinha então mandato estadual e participou da costura do projeto desde o princípio. Ele admite que esse ponto era central no debate: “Tinha que ter a possibilidade de decidir que tipo de ajuda o empresário queria fazer, se era um veículo, um armamento, uma câmera de monitoramento. E também que não fosse apenas repasse dos recursos, mas que pudesse ele mesmo adquirir o bem, um determinado bem. Foi feita uma grande discussão em torno disso, e ficou conversado entre os atores que haveria essa liberalidade do setor empresarial”.
Para o vice-governador e secretário de Segurança Pública, Ranolfo Vieira Jr. (PTB), trata-se de uma legislação pragmática, já que os empresários “da região X vão querer investir na região X, que aquele retorno se dê na região X”. “Não tem como a instituição [polícia] dizer que [o investimento] não vai ser lá, que vai ser em outro lugar”, afirma. Desde o início do ano, Santini já se reuniu em duas oportunidades com o ministro da Justiça, Sergio Moro, para que a União patrocine legislação semelhante em âmbito nacional.
Criminalidade e orçamento
Quando promulgada em 2018, a lei foi festejada no Estado em editoriais dos diários e nos círculos empresariais. A Federasul, que reúne em torno de si o setor produtivo gaúcho, promoveu um workshop para orientar seus filiados como participar.
Não sem razão. Na última década, o cenário da segurança pública no Rio Grande do Sul se deteriorou. Latrocínios e homicídios cresceram até atingir um pico em 2016, quando somaram quase 3 mil casos (em 2009 eram 1.700). Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2016 e 2017 “o Estado atingiu os piores índices de sua história contemporânea”. Em 2018, Porto Alegre foi incluída no ranking das 50 cidades mais violentas do mundo.
Em 2019, embora já sob o efeito da redução de alguns indicadores de criminalidade – movimento verificado em quase todo o país –, os gaúchos convivem com o maior índice de policiais mortos em operações nos últimos cinco anos.
“Teve um episódio bem conhecido, de uma mãe que foi assassinada na frente dos filhos na saída da escola, num assalto. Aquilo foi um divisor de águas, nos demos conta que precisávamos fazer algo urgente. A gente precisava melhorar o ambiente de segurança”, diz o empresário Claudio Goldsztein, um dos fundadores do Instituto Cultural Floresta (ICF), organização que, com apenas um ano de existência, foi a principal articuladora da lei e arrecadadora de fundos para viabilizar sua implementação.
Hoje Goldsztein preside o conselho consultivo do ICF, que representa a sociedade civil no Conselho Técnico do Fundo Comunitário Pró-Segurança, órgão estadual responsável pela eleição dos projetos aptos a captar recursos – duas, entre as cinco propostas pioneiras aprovadas, também são encabeçadas pela entidade.
O sobrenome do presidente do ICF, vinculado a uma importante incorporadora, não é exceção na diretoria, que reúne boa parte do PIB do Rio Grande do Sul. Lá estão também Richard Johannpeter, da metalúrgica Gerdau; Otelmo Drebes, da loja de varejo Lebes; Wilson Ling, da Évora, player mundial na produção de plásticos; Bruno Zaffari, da rede de supermercados e shoppings Bourbon, e Carlos Eduardo Ryff Moreira Roca Vianna, que atua no mercado financeiro e é membro de uma das famílias mais conhecidas nas rodas sociais de Porto Alegre.
Quase uma centena de CNPJs dos mais diversos ramos de atividades está ligada aos executivos do ICF. Foi graças a esse capital econômico e social que Goldsztein e seus colegas conseguiram alavancar 14 milhões de reais para dar a largada no projeto de financiamento privado da segurança pública. Em março do ano passado, compraram e doaram, sem incentivo fiscal, 46 viaturas, 1.500 pistolas e fuzis, alguns de alta precisão, para as forças de segurança gaúcha.
Foi uma estratégia para defender a necessidade da nova legislação, cuja minuta, redigida pelo grupo, foi entregue com as chaves das novas SUVs ao então governador do Estado, José Ivo Sartori (MDB). “O Floresta fez a provocação. Era uma forma da sociedade civil pressionar o governo para que fizesse alguma coisa”, admite Goldsztein.
Surtiu efeito. Sete meses depois, a sugestão já era lei aprovada pela Assembleia Legislativa e sancionada pelo governador.
Exército de um homem só
O pressuposto para a aprovação da “lei Rouanet da segurança” relacionava a escalada de criminalidade no Rio Grande do Sul com a falência do Estado. O governador José Ivo Sartori vinha atrasando os salários do funcionalismo desde o início da gestão (dificuldade ainda não superada por seu sucessor), ruminando constantemente uma “herança maldita” materializada em forma de endividamento público.
É verdade que a crise no caixa do Rio Grande do Sul é grave desde os anos 1970; o Estado deve hoje mais de 100 bilhões de reais. Entretanto, na última década, o orçamento da segurança pública aumentou pelo menos 70%, mais do que a variação geral orçamentária do Estado. Em números corrigidos pela inflação, a secretaria dispunha de 2,9 bilhões de reais em 2010, recurso que passou a ser 4,5 bilhões de reais em 2018.
“No Rio Grande do Sul, é impressionante o salto de investimentos na área de segurança pública. Não é verdade que o Brasil gaste pouco em segurança pública. A média, nos países da OCDE, é destinar 1% do PIB para investimento direto em segurança, para a polícia. No Brasil, investimos 1,3% do PIB, não é pouco dinheiro”, objeta Marcos Rolim, sociólogo e presidente do Instituto Cidade Segura, que presta consultoria para gestores públicos na área da segurança.
A ofensiva para aprovar o Piseg – sigla para Programa de Incentivo ao Aparelhamento da Segurança Pública do Rio Grande do Sul, como foi nomeado oficialmente – incluiu expedientes extraordinários. O texto foi encaminhado em regime de urgência para a Assembleia Legislativa, o que significa que não houve apreciação prévia nas comissões. Em menos de um mês foi levado ao plenário. Naquela terça-feira de agosto, o então secretário de Segurança Cezar Schirmer (MDB) e o chefe da Casa Civil, Cleber Benvegnú, testemunharam o apoio massivo da assembleia à iniciativa, refletido no placar: houve apenas um voto contrário, o do deputado Pedro Ruas (Psol).
A costura foi toda feita nos gabinetes parlamentares e no Palácio Piratini pelo ICF. “Fizemos um trabalho de visitar deputados e lideranças de praticamente todos os partidos apresentando a nossa ideia, falando do que foi feito, das doações”, recorda Goldsztein.
O acordo do colégio de líderes que permitiu a apreciação veloz não indicava que houvesse alguma resistência à aprovação. Talvez por isso alguns deputados tenham ficado inquietos quando seis emendas foram apresentadas em plenário.
Elas não chegavam a descaracterizar o texto. Além da já citada emenda que propunha que 70% dos recursos do programa fossem aplicados nos municípios com maiores índices de criminalidade, outra determinava prestações de contas regulares e abertas para cada projeto de captação aprovado. Também houve uma tentativa de impedir que empresas inscritas na lista de devedores contumazes do Estado pudessem obter o benefício fiscal proposto pelo projeto, assim como aquelas que já participavam de outros programas com renúncia de impostos.
Duas outras emendas previam alterações na composição do conselho técnico que avalia propostas aptas a captar recursos: o PT achava que entidades privadas, como o próprio ICF, não deveriam compor o colegiado porque “a escolha de prioridades e alocação de investimentos deve ser tarefa essencial da política pública”. Pedro Ruas defendeu que Tribunal de Contas, Ministério Público e Defensoria tivessem assento no fórum.
Mas havia pressa em aprovar rapidamente a nova legislação. “Vou votar contrariamente às emendas, mesmo achando que no decorrer do tempo teremos que aperfeiçoar a lei, porque é nossa obrigação legislativa fazê-lo. Mas o momento requer que aprovemos o projeto da maneira como foi proposto, sem as emendas, para que tenhamos mais agilidade”, admitiu Edson Brum (MDB), reverberando um sentimento compartilhado por outros parlamentares.
O PT também fez o cálculo eleitoral e recuou, embora seus deputados tenham alertado os colegas para os riscos da lei na forma como estava: “Estão privatizando a segurança pública. Não haverá empresário dando dinheiro para mandar viaturas para Alvorada, para a Restinga, para Canudos, mas sim para o entorno das suas casas, no Bairro Floresta, por exemplo”, provocou Tarcísio Zimmermann, comparando áreas periféricas e regiões nobres. Mesmo assim, ele e seus colegas apertaram o sim no placar eletrônico.
“Eu fiquei surpreso, porque é dinheiro público, as emendas tratavam de controle social, de transparência. Como é que pode ninguém querer isso?”, pergunta Pedro Ruas um ano depois daquela tarde, em uma sala sem ar condicionado da Assembleia Legislativa, onde trabalha como assessor do Psol desde que perdeu o mandato, na virada do ano.
Decretos duplicados
A articulação do ICF amarrou tão bem todas as pontas interessadas na legislação que poucos se arriscaram a criticar algum detalhe da iniciativa. A primeira (e única) insatisfação ressoou quando a nova gestão se instalou no Palácio Piratini, em janeiro de 2019, e travou a aplicação da lei.
Publicamente, os novos comandantes do Executivo gaúcho disseram ter encontrado “pendências” na legislação e por isso estabeleceram negociações com o ICF, sem dar mais detalhes. Na imprensa oficial, consta que as reuniões tratavam dos “ajustes finais” antes da regulamentação da norma. O argumento não combina com os fatos, porque, em 4 de dezembro de 2018, Sartori já havia assinado o decreto de regulamentação da lei.
Ainda assim, em julho de 2019, um novo decreto foi editado, substituindo o anterior. A principal mudança é um maior controle do Estado sobre o programa, além do detalhamento técnico sobre a dedução de ICMS das doações realizadas – na pressa de autorizar o uso da “Lei Rouanet da segurança”, a gestão anterior tinha esquecido a autorização do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), autoridade máxima da República em matéria fiscal. O Confaz demorou até chegar a um acordo sobre o benefício, mas validou o programa em abril deste ano.
Houve também o acréscimo do parágrafo 6 ao artigo 14, que determina que aquisições feitas pela iniciativa privada serão autorizadas somente após aprovação dos órgãos de controle —caso não seja possível, as compras deverão ser feitas por licitação.
O secretário Ranolfo Vieira Jr., que é delegado de polícia de ofício, esmiúça as alterações: “Dentro da normatização que nós fizemos, as instituições de segurança pública precisam aprovar a proposta de uma entidade privada, antes de ela ir para apreciação do conselho técnico. E a última palavra é do secretário da Segurança. Eu acho até antidemocrático isso, mas é como está posto o sistema, pela lei. O secretário homologa ou não a decisão do conselho”.
Pouco transparentes
Documentos obtidos pela reportagem em portais da transparência e via Lei de Acesso à Informação – e que registram o histórico de transformações da ideia, desde a minuta entregue pelo ICF ao governo anterior até o decreto mais recente – indicam que os empresários insistiram em cláusulas que mantinham o controle e a gestão do Piseg sob sua responsabilidade.
O deputado Ronaldo Santini (PTB) propôs um projeto de lei ainda em 2016, antes da criação do ICF. Segundo esse texto, as propostas de captação de recursos para a segurança seriam aprovadas por uma Câmara Técnica na qual não estava prevista a participação de entidades privadas. Mas, quando a associação de empresários entrou em campo, sugeriu a participação de uma organização sem fins lucrativos no conselho técnico do Piseg – é possível supor que seria o próprio ICF, como aliás aconteceu quando o conselho foi criado, já em 2019.
Outra evidência dessa intenção de centralizar decisões está na minuta que o Estado avaliou duas semanas após solenidade em que o ICF entregou viaturas, armas e o texto considerado marco inicial da lei. Nele constava que “a gestão e aplicação dos valores destinados pelas empresas contribuintes” seriam feitas pelas próprias entidades privadas. Na redação final, em vigor, esse trecho foi amenizado: “As empresas contribuintes poderão propor ao conselho técnico o credenciamento de entidade sem fins lucrativos para representá-las na consecução de determinados projetos do Piseg, sem a percepção, pela entidade, de remuneração para tal”.
Claudio Goldsztein nega que haja direcionamento de recursos para municípios ou bairros com maior poder aquisitivo ou concentração de poder decisório na iniciativa privada. Segundo ele, mesmo os equipamentos doados em março, antes da legislação, são frequentemente deslocados para operações fora da área à qual estavam destinados.
“A gente vê nas notícias: uma ocorrência em Camaquã, estavam lá as viaturas doadas pelo Floresta; assalto a banco no interior do Estado, estavam lá os equipamentos doados pelo Floresta. Nesse último verão, uma parte importante das viaturas aqui de Porto Alegre foi deslocada para o litoral, no reforço que acontece. Temos zero ingerência, tomamos todo o cuidado de não dar margem a esse tipo de interpretação”, assegura.
O empresário admite que desde o início a ideia do grupo foi “fazer um barulho” a partir do “contraste” gerado entre regiões que tinham maior ou menor envolvimento comunitário na segurança pública – ou seja, com mais aportes privados ao programa. “Mas que não fosse só impacto visual de ver uma viatura velha de um lado da avenida Ipiranga e uma viatura nova, com policiais de uniformes novos, do outro lado da rua. Esperávamos que isso pudesse mudar os números de ocorrências naquela região [beneficiada].”
Ele disse também que acreditava no “efeito cascata” que a medida poderia significar, mesmo para bairros onde não houvesse mobilização empresarial. O foco inicial dos empreendedores era Porto Alegre: “Melhorando a segurança no centro, poderia ser liberado efetivo para atuar em outras áreas no entorno”.
Desde que a iniciativa foi abraçada pelo Governo do Estado, todos os aportes materiais do ICF têm sido debatidos previamente com os órgãos de segurança, sejam as doações que deram o pontapé inicial na lei, sejam os projetos agora propostos pela ONG e aprovados no conselho técnico do qual ela também faz parte. São dois, que sugerem a compra de uma centena de caminhonetes 4 x 4 e coletes balísticos tanto para a Polícia Civil como para a Brigada Militar. Juntos, somam pouco mais de R$ 20 milhões em investimento.
“Queremos simplesmente atender à demanda da Secretaria de Segurança, mas tentar fazer isso de uma forma mais rápida, mais eficiente. Com toda a transparência, mas com menos custo e em menor tempo. E certamente vamos concluir nossos projetos bem antes de o Estado conseguir começar a licitar para executar os outros três”, garante, comparando com as propostas levadas ao conselho pelo próprio governo – embora enfoquem itens muito parecidos, elas somam R$ 173,6 milhões, tornando sua captação e execução mais ambiciosas.
O argumento de Goldsztein encontra confirmação em dados públicos. Segundo apresentação do ICF, os 59 fuzis Taurus T4 entregues como doação para a Polícia Civil em 2018 custaram R$ 3,5 mil cada um. É bastante menos do que o governo pagou em quatro ocasiões diferentes nos últimos seis meses, quando o valor dessa mesma peça variou entre R$ 6,2 mil e R$ 8,6 mil.
Além disso, enquanto “um estudo interno da secretaria aponta uma demora de 343 dias para receber uma viatura depois de feita a licitação”, segundo Ranolfo Vieira Jr., a compra dos automóveis pelo ICF foi concluída “em menos de dois meses” – incluído o tempo necessário para adesivar os novos carros e fazer a entrega solene, em um shopping da capital.
“Banho de loja”
Os cinco projetos que estão hoje no Piseg seguem o mesmo princípio das doações do ICF feitas em março de 2018. Requerem a aquisição de pistolas, espingardas, fuzis, além de escudos balísticos e de “viaturas potentes e altamente equipadas para o desempenho de missões”, conforme resumo de um deles. A exceção é a demanda direta da Polícia Civil, que busca recursos privados para investir em dez viaturas discretas para investigação policial.
O que Goldsztein qualifica como “um banho de loja” nas forças de segurança é, na visão de especialistas como Marcos Rolim, um equívoco de investimentos. “A ideia de que a prioridade de equipamentos de segurança é viatura é uma ideia simplificada. As nossas polícias têm uma carência enorme de gestão. Não há gestão profissional. Não há softwares de gestão. Ainda se trabalha com fichários, ofícios, memorandos, não se tem um processo mínimo de informatização que ajude o gestor a ter um controle de fato sobre a realidade das próprias polícias”, critica o sociólogo, que também foi deputado federal pelo PT (1999-2003).
As prioridades foram eleitas pelo conselho técnico, que tem entre seus integrantes cinco representantes dos órgãos de segurança, dois da Federação das Associações de Municípios do Estado (Famurs) e um da Federação dos Conselhos Comunitários de Segurança (Feconsepro, à qual, até hoje, cabia arrecadar recursos privados para o setor, de maneira mais informal). Cadeiras para organizações da sociedade civil são três, embora apenas duas tenham sido ocupadas até agora: uma pelo ICF, outra pela Ordem dos Advogados do Brasil, que não concedeu entrevista.
“Está em tramitação a análise de documentação da entidade Brasil Sem Grades, a qual será oportunamente submetida ao Gabinete do Exmo. Sr. Secretário da Segurança para Deliberação”, informa a assessoria de imprensa da pasta. A Brasil Sem Grades também foi fundada por um empresário, Luiz Fernando Oderich, que teve um filho assassinado em Porto Alegre. Sua principal bandeira é o endurecimento da legislação penal brasileira.
Rolim lamenta que as decisões do conselho não levem em conta estudos científicos sobre efetividade no combate ao crime. “Precisamos saber quais são as iniciativas que de fato funcionam – algumas podem, inclusive, agravar o problema que pretendiam resolver. É preciso retirar o debate da segurança pública desse pântano ideológico no qual ele está afundando no Brasil há muitos anos”, afirma.
Isso porque as evidências sugerem que grande parte das verbas públicas disponíveis para a segurança já é dirigida à aquisição de equipamentos – e muito pouco acaba indo para inteligência e prevenção. Um exemplo são os recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública: 30% do valor global disponível é destinado ao reaparelhamento das polícias, enquanto menos de 10% são gastos com informação e tecnologia. Na região Sul, o uso desses recursos federais foi maciçamente empregado na rubrica “reaparelhamento e modernização” (86,5%) entre 2001 e 2017. O que sobrou foi dividido entre prevenção (7,7%), tecnologia e informação (2,8%), policiamento comunitário (2,6%) e valorização e formação profissional (0,3%).
No mesmo período, quase 90% dos convênios formalizados entre a União e os Estados brasileiros tinham como finalidade a aquisição de armas e equipamentos, enquanto somente um em cada dez mencionava estratégias preventivas e 13% miravam melhoramentos em informação e tecnologia. As estatísticas vão na mesma direção dos números publicados no Anuário de Segurança Pública, que mostrou que em 2017 só 0,7% dos gastos de União, Estados e municípios foram destinados à informação e inteligência, o que representou uma queda de 54,8% em relação ao ano anterior.
Ranolfo Vieira Jr. assegura que o cuidado com inteligência e gestão também está no horizonte da Secretaria de Segurança, por meio do Piseg: “Nesse primeiro ano [de existência do Piseg], talvez no segundo, vamos investir para reequipar as polícias com viaturas, armas e tal. No terceiro e no quarto ano do nosso governo, vamos direcionar recursos para tecnologia”, diz o secretário.
Problemas crônicos
O problema mais duradouro do setor no Rio Grande do Sul, entretanto, não será enfrentado com os fundos do Piseg. O efetivo de policiais nas corporações gaúchas está 50% abaixo do mínimo necessário – é possível que as forças de segurança estejam caminhando rumo ao menor contingente da ativa em 40 anos.
Por outro lado, a área da prevenção vai receber 10% dos recursos totais do Piseg. É o chamado “pedágio” da lei, um recurso que o empresário precisará depositar obrigatoriamente em uma conta pública para poder ter seu imposto compensado com a entrega de viaturas, por exemplo. Ao contrário dos projetos para aquisição de equipamentos, a aplicação desse recurso não passa pelo conselho técnico. Por enquanto, a saída será destinar a verba a programas de prevenção já em execução na Secretaria de Segurança.
“Está bem aberto [esse uso]. Na regulamentação, diz que é dinheiro para projetos de prevenção, mas o que é mesmo prevenção? É pra quem está cumprindo pena, para ajudar a ressocializar, ou é uma atividade de contraturno na escola para a criança não cair na rua?”, pondera Goldsztein.
Enquanto não se divulga o primeiro balanço do programa – até o fechamento desta reportagem, nenhum recurso ainda havia sido aportado –, o certo é que Adilson Antonio Fra, presidente da Feconsepro, seguirá passando a caixinha entre empresários que desejam melhorar a segurança em suas comunidades: “O Piseg é para projetos mais ambiciosos: viaturas blindadas, armas de calibre, construção de delegacias. É mais estrutural. No nível micro, quem vai seguir comprando folhas A4 e papel higiênico para as polícias seremos nós”.
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