Rio Grande do Sul se enforca para pagar as contas e conter a violência
Endividado há décadas, Estado do Sul não consegue pagar salários dos servidores
Diga a um gaúcho que está indo para Porto Alegre e nove entre dez recomendarão que você “fique esperto” ao andar nas ruas. A capital gaúcha tem sofrido uma onda de violência nos últimos meses comprovada pelos índices apresentados pela secretaria de Segurança Pública do Estado. No primeiro semestre deste ano, as ocorrências de latrocínio (roubo seguido de morte) subiram 34%. No mês passado, mais um caso entrou para as estatísticas: uma mulher foi vítima de latrocínio, assassinada na frente da filha, enquanto esperava o outro filho sair da escola. Naquele dia, o secretário de Segurança Pública, Wantuir Jacini, pediu demissão.
"De um ano pra cá as coisas pioraram muito", disse o senhor Geraldino, vendedor de frutas no centro de Porto Alegre. "Você quase não vê polícia na rua, e por isso os ladrões estão fazendo a festa". A sensação de insegurança e de pouco policiamento nas vias é uma das consequências de um problema fiscal que o Estado arrasta por décadas. Ronald Hillbrecht, professor de economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica que a crise na segurança é a ponta de um iceberg muito maior. “O efetivo policial está reduzindo porque o Estado não consegue contratar mais, já que não cabe em seu orçamento".
O orçamento é apertado porque já faz tempo que a arrecadação é menor do que os gastos. De acordo com a secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul, o Estado fechou o ano de 2015 com déficit orçamentário de 4,9 bilhões de reais. O valor é quatro vezes maior do que o verificado em 2014.
É como se o salário de uma família fosse menor do que as despesas da casa. Por anos seguidos. Cerca de 40 anos, segundo especialistas. No ano passado, foram arrecadados 50 bilhões de reais, mas, por outro lado, foram gastos 55 bilhões. O que mais pesou nessa conta são os gastos com pessoal e encargos da folha de pagamento, que passaram de 30,5 bilhões de reais em 2014 para 33,5 bilhões no ano passado, engolindo quase 60% do orçamento do Estado.
Problema se alastra
Empurrando esse déficit por anos a fio, o resultado é uma dívida com a União que hoje chega a 51 bilhões. No ano passado, o governador José Ivo Sartori (PMDB) tentou dar calote para priorizar o pagamento dos funcionários públicos, mas teve de recuar ao ver suas contas bloqueadas como retaliação. Em junho deste ano, o Governo gaúcho sentou-se à mesa de renegociação da dívida dos Governos Estaduais com o presidente Michel Temer. Assim como os demais Estados, o Rio Grande do Sul conseguiu estender o prazo para o pagamento por mais 20 anos, carência até o final deste ano ano para pagar as parcelas mensais da dívida, desconto nas primeiras parcelas, dentre outros pontos. Na semana que passou, governadores voltaram a se reunir com equipe econômica e uma dezena deles, principalmente do Norte e Nordeste, ameaçam declarar calamidade financeira se não conseguirem repasse emergencial.
"Nem tudo está atendido, mas era aquilo que era possível fazer", disse Sartori ao sair da reunião de junho. Ainda assim, o Governo prevê que neste ano faltarão 6,8 bilhões de reais para que a conta feche. Essa foi a segunda vez que o Rio Grande do Sul negociou sua dívida. A primeira havia sido em 1998, na gestão do também peemedebista Antônio Britto.
De acordo com Rodrigo González, professor da ciência política da UFRGS, os gaúchos pagam hoje “a amarga fatura do sucesso”. Ele explica que a industrialização do Estado, iniciada na década de 30, seguida pelo boom da exportação de trigo e soja nas décadas de 60 e 70, resultou em um grande crescimento econômico. Com a alta arrecadação, foi possível iniciar uma política de estatização de diversos serviços, a começar pela companhia energética, depois pela criação de uma companhia de saneamento básico estatal. Foi na era Brizola (1959 a 1963) que as escolas estaduais de primeiro e segundo grau se espalharam pelos municípios, em uma época em que as escolas estaduais no país eram, normalmente de segundo grau. “O Estado assumiu para si a infraestrutura e o custo dela, em termos de energia, saneamento e educação”, diz González. “Isso num primeiro momento projetou o Estado. Mas tem seu custo”.
Esse custo tem sido cada vez mais difícil de se quitar. O Governo vem, há mais de um ano, parcelando os salários dos funcionários públicos, que recebem em conta-gotas. "As contas chegam na minha casa tudo de uma vez, não vem parcelado", disse um policial civil que não quis se identificar, nos arredores do Mercado Público de Porto Alegre. No mês de julho, ele recebeu apenas 650 reais dos cerca de 3.000 que afirma receber por mês. "Como eu faço para pagar as contas da minha família com esse dinheiro?", perguntava. Naquele mês, o mesmo ocorreu para todo o funcionalismo público. E foi a sétima vez seguida que isso ocorreu só neste ano. “Neste cenário, os serviços essenciais do Governo estão em colapso”, diz o Ronald Hillbrecht.
O professor Rodrigo González explica que enquanto o Estado crescia, a folha de pagamento se alimentava. "Mas com uma decadência nos últimos anos por diversos problemas, temos uma folha de pagamento muito alta e um grande numero de funcionários aposentados por conta de um sistema previdenciário muito favorável ao servidor”, explica. O problema da Previdência, um dos monstros que Temer terá que encarar em nível nacional, já bate à porta do Rio Grande do Sul há algum tempo. "Todo mundo sabe que esse problema vai estourar. Mas alguns Estados estão na vanguarda deste problema", diz Hillbrecht.
O problema do sistema previdenciário do Rio Grande do Sul pode ser um prenúncio do que poderá ocorrer em todo o país. Em agosto do ano passado, o governador Sartori anunciou mudanças na aposentadoria, como parte de um pacote para tentar enfrentar a crise, que incluía também o corte de gastos e aumento nos impostos. Os futuros servidores agora vão se aposentar com um salário limitado ao teto do regime geral do INSS, atualmente fixado em 5.189 reais. Quem quiser ganhar mais terá de contribuir com um fundo de previdência complementar. Hoje, os servidores se aposentam recebendo o valor do último salário, ou a média de salários da carreira.
Juízes e promotores do Ministério Público serão um dos mais afetados por essa mudança. Isso porque eles recebem um salário muito maior do que o teto da aposentadoria. No início de carreira, um juiz ganha cerca de 17.000 reais. Porém, se não fizer contribuições extras para o fundo complementar, se aposentará com um valor muito abaixo desse salário. Oito Estados e a União já adotam esse sistema de fundo complementar da previdência. Ainda assim, a medida não é capaz de tapar o rombo da previdência nacional, que deve ficar em 149 bilhões neste ano. Maior expectativa de vida atrelada à taxa de natalidade levantam a necessidade urgente da revisão do sistema. "Ninguém mexe com isso porque o custo político é alto e os resultados demorarão anos para aparecer", diz o professor Hiilbrecht. "Mas alguém terá de fazê-lo".
Expectativa com a agricultura
Na década de 1970, o Rio Grande do Sul nem imaginava que o problema da previdência estouraria dessa forma. Tampouco poderia prever que um dia perderia espaço naquilo que, historicamente, o Estado sempre teve grande participação: a agricultura. No final daquela década, os campos gaúchos eram responsáveis por um quarto de toda a produção nacional de grãos. No ano passado, essa fatia caiu para 17%.
A crise na folha de pagamento do Estado aliada à diminuição da participação no agronegócio ajudaram a puxar o Rio Grande do Sul para a quinta posição entre os maiores PIBs do país. Em 2014, os gaúchos estavam em quarto lugar, atrás de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. No ano passado, o Paraná acabou passando os gaúchos.
Rodrigo Feix, economista da Fundação de Economia Estatística, explica que por uma questão de espaço para o plantio, o Rio Grande do Sul acabou perdendo lugar para a região Centro-Oeste. "O Rio Grande do Sul historicamente é conhecido como celeiro agrícola", diz . "E continua, mas dada a possibilidade de maior expansão da produção em outras regiões, essa participação do estado tem diminuído".
Por essa fama dos gaúchos com a produção agrícola, os gaúchos sempre disputaram um espaço na pasta da Agricultura do Governo federal, explica o professor Rodrigo González. Por isso, se quiser se aproximar da sociedade gaúcha em geral, diz Gonzáles, o presidente Michel Temer terá que agradar o agronegócio no Estado. “Certamente haverá uma negociação”, prevê.
O último ministro da Agricultura gaúcho foi Mendes Ribeiro Filho (PMDB-RS), entre os anos de 2011 e 2013. Depois disso, a pasta passou pelas mãos de Antônio Andrade (PMDB-MG), entre 2013 e 2014, Neri Geller (PMDB-MT), entre 2014 e 2015, Kátia Abreu (PMDB-TO), entre 2015 e 2016, e hoje é comandada por Blairo Maggi (PP-MT). “Se o cargo não for para o ministro da Agricultura, vai para alguém dentro do ministério, ou no Incra.", diz González. "Alguém tem que estar nessa área para representar os interesses do Estado”.
Alternância política e o conservadorismo
O Parque da Harmonia, às margens do lago Guaíba, é um local simbólico em Porto Alegre para explicar uma divisão ideológica gaúcha muito bem marcada. Foi ali, em janeiro do ano 2000 que a cidade recebeu a primeira edição – e posteriormente todas as outras - do Fórum Social Mundial, um dos maiores eventos da esquerda e dos movimentos anti-globalização da contemporaneidade. Por uma semana o parque foi tomado por barracas de lona no chamado Acampamento da Juventude. Em agosto daquele mesmo ano, o que eram barracas viraram casas de alvenaria, as comidas orgânicas lá vendidas deram lugar ao churrasco, e famílias inteiras ocuparam o espaço do estudantes hippies que estiveram no Fórum em janeiro. Acontecia mais uma edição do Acampamento Farroupilha, um evento que dura um mês e acontece desde 1978 no Parque da Harmonia para celebrar a Revolução Farroupilha e as tradições gaúchas.
“Adoraria que esse acampamento fosse permanente, porque assim não teria mais espaço para aquela orgia vermelha aqui no parque”, disse o tradicionalista Evaristo Righetto, se referindo ao Fórum Social Mundial, enquanto me guiava pelo acampamento farroupilha que ainda estava em construção. “Não somos conservadores. Apenas ensinamos as meninas a serem mulheres e os meninos a serem homens”, disse. É quase impossível de acreditar que eventos tão opostos acontecem naquele mesmo chão de terra batida. Essa é uma das peculiaridades do Estado onde valores conservadores são tão fortes quanto os ideais progressistas.
Na política, o conservadorismo leva os eleitores a votarem em candidatos que já conhecem, ainda que sejam de esquerda. "Preferimos o que já conhecemos do que o progresso", diz Ronald Hillbrecht, professor de economia da UFRGS.
A última pesquisa eleitoral, publicada pelo Ibope na sexta-feira 09, mostra o candidato do PMDB, Sebastião Melo, vice-prefeito da atual gestão, em primeiro lugar (22%), seguido de Raul Ponte (PT), ex-prefeito da cidade, em segundo (19%). Em terceiro, está Luciana Genro (PSOL), com 17%.
Como uma capital conservadora pode votar em partidos de esquerda? O que pode parecer contraditório, para o Ronald Hillbrecht, professor de economia da UFRGS, é natural. De acordo com ele, lideranças de esquerda não significam progressismo. “Se você olhar para Porto Alegre, os principais candidatos que estão despontando nas pesquisas eleitorais são de partidos socialistas e quando a maioria da população prefere partidos socialistas, isso é um mau sinal”, diz. “O problema de partidos socialistas é que a plataforma econômica deles é conservadora, não leva ao progresso”.
A dicotomia segue na disputa do Estado. Conservador sim, pero no mucho. O Rio Grande do Sul é um dos únicos Estados do país que nunca reelegeram um governador. "Sempre houve alternância nas eleições do Governo do Estado, e sempre com um padrão de alternâncias opostas", explica Rodrigo Gonzáles. Diferentemente de São Paulo, cujo Estado é comandado pelo PSDB há 17 anos, no Rio Grande do Sul nunca um governador foi reeleito desde a redemocratização do Brasil.
Gonzáles explica que na década de 1940, a alternância ocorria entre o PTB e aqueles que se diziam anti-PTB. "Nos últimos anos, esse padrão se tornou PT e anti-PT", diz. Mesmo os partidos que nacionalmente se aliam ao PT, caso do PMDB nas últimas eleições presidenciais, no Rio Grande do Sul concorrem contra o partido de Lula. "Isso significa um padrão de menor tolerância para alianças", diz Gonzáles. "E uma disponibilidade menor de diálogo com o diferente".
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