“Os Sertões’ tem que ser lido todos os dias, enquanto persistir a situação dos pobres brasileiros ”
Abertura da Flip mistura música e literatura ao ilustrar a crueldade de 'Os Sertões' que se mantém na sociedade brasileira
A 17ª Festa Literária de Paraty (Flip) começou nesta quarta-feira bem ao estilo de seu homenageado, Euclides da Cunha: densa, dura e desbravadora de linguagens. Música e literatura misturaram-se em uma noite em que Walnice Nogueira Galvão, ensaísta e crítica literária, brindou o público com todos os seus conhecimentos de décadas da obra euclidiana. "Euclides viu de perto, pela primeira vez, o povo brasileiro. Viu que o povo brasileiro é mestiço, messiânico, analfabeto, e não os brancos ricos do Rio de Janeiro", afirmou, ao referir-se a Os Sertões durante uma conferência de mais de uma hora, ante uma plateia majoritariamente branca.
A atualidade da obra que narra a Guerra de Canudos (1896-1897) será debatida até este domingo (14) por 33 intelectuais —sendo 17 mulheres— de 10 nacionalidades, em áreas que vão da sociologia à fotografia e abordando temas como raça, gênero e pós-colonialismo. Os temas têm tudo a ver com o livro. "Os Sertões é uma colcha de retalhos de muitas outras narrativas", explicou Galvão, ao lembrar que, ainda que esconda o fato hermeticamente em sua obra-prima, o autor passou apenas três semanas em Canudos e valeu-se, em grande medida, do testemunho de terceiros para construir seu relato.
Euclides debruçou-se sobre o massacre de Canudos ao perceber a desonestidade dos relatos oficiais que publicavam-se à época. "Não foi Trump quem inventou as fake news. Os repórteres que cobriram Canudos eram militares, muitos deles combatentes, e publicavam notícias falsas sobre o suposto perigo que aquelas pessoas representavam", explicou a especialista. O próprio Euclides, no entanto, vinha de formação militar, o que supôs um conflito que, para Galvão, também ficou impresso no livro. "O leitor pode acompanhar na obra a tensão e o sofrimento de quem a escreve. Ele acreditava verdadeiramente em uma instituição que agora matava o povo que deveria proteger".
A especialista também compartilhou com o público detalhes curiosos do escritor. Os Sertões, publicado em 1902, bateu um recorde brasileiro à época ao ganhar três edições nos três primeiros anos de publicação. Isso deu rédea solta, de acordo com Galvão, ao "transtorno obsessivo-compulsivo emendador" de Euclides. De acordo com a especialista, durante esse período, o escritor apagou, uma por uma, cerca de mil "vírgulas vagabundas" da primeira edição.
Na abertura oficial da Flip 2019, o público também pôde deliciar-se com o espetáculo Mutação de Apoteose, inspirada em um trecho de A Terra, primeira parte do clássico de Euclides, com direção artística da atriz Camila Mota. A montagem nasceu no Teatro Oficina, que criou-a na década passada a partir de canções de nomes como Adriana Calcanhotto, Chico César, Tom Zé e Arnaldo Antunes para as adaptações das obras de Euclides.
"Euclides da Cunha é um autor que imprime muita oralidade na escrita, que inevitavelmente se transformou em música na aventura de transpor o livro para o teatro. Agora, é uma nova transposição, que parte da matéria criada pela encenação do Teatro Oficina, mas coloca novamente as palavras cantadas como motor do espetáculo”, declarou Mota à imprensa. “Voltar a Os Sertões, que revelou a força estética das insurreições, das lutas contra o martírio da terra, é muito importante neste momento, em que devemos invocar inteligência, clareza, interpretação e eloquência", concluiu.
Fazendo eco de suas palavras, Walnice Nogueira Galvão encerrou a conferência de abertura lembrando que as violências narradas na obra euclidiana perduram na sociedade brasileira atual. "Os Sertões tem que ser lido todos os dias, enquanto persistir a situação dos pobres brasileiros. Enquanto ocorrer o genocídio dos jovens negros nas favelas de São Paulo, a militarização das comunidades do Rio de Janeiro, enquanto acontecerem tragédias como as de Mariana e Brumadinho", disse, ante os aplausos da plateia. Minutos depois, o palco foi tomado por imagens da crueldade brasileira: o assassinato de Marielle Franco, os (mais de) 80 tiros que mataram Evaldo dos Santos Rosa, a morte de Marcos Vinícius, de 14 anos, baleado durante operação policial na Favela da Maré quando ia para a escola. A música que começou na sequência não suavizou a dureza da mensagem.
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