_
_
_
_
_

Profissão: fazedor de fila, 48 dólares por hora

Um negócio floresce em Washington em torno das filas de espera, sobretudo no Congresso e na Suprema Corte, às vezes usando a população sem-teto como mão-de-obra

Amanda Mars
Várias pessoas, entre eles, ‘guardadores de lugar’ profissionais, esperam na fila para uma audiência do Comitê de Formação e Emprego no Congresso dos Estados Unidos, numa manhã de junho.
Várias pessoas, entre eles, ‘guardadores de lugar’ profissionais, esperam na fila para uma audiência do Comitê de Formação e Emprego no Congresso dos Estados Unidos, numa manhã de junho.A. M.
Mais informações
Sem chefe e sem garantia: assim será nosso trabalho no futuro
14 horas numa fila por um emprego: “As contas e a barriga não esperam”
A ‘uberização’ do trabalho é pior para as mulheres

Quem visita o Congresso dos Estados Unidos se depara com cenas singulares nos corredores. Uma delas tem a ver com as filas. Não importa quão tediosa ou técnica pareça a audiência dos comitês que costumam se reunir por volta das 10h da manhã, cerca de três horas antes se forma uma longa fila de homens e mulheres, alguns deles completamente destoantes. Usam roupa informal, veem filmes em seus tablets ou leem revistas. Às vezes carregam sua própria cadeira. O que faz o sujeito de boné dos Yankees numa terça-feira de junho, às oito da manhã, na comissão de Formação e Emprego? E a senhora com vestido de verão que joga Candy Crush? Por que o Subcomitê de Energia do Comitê de Energia e Comércio desperta tanto interesse popular?

Algumas dessas perguntas são respondidas às 9h45. Dois homens com terno e gravata se aproximam do rapaz de boné dos Yankees, que os cumprimenta afavelmente, deixa-lhes o seu lugar e vai embora. Chama-se Richard e trabalha para a Linestanding, uma das empresas que transformaram as filas de Washington em um negócio. Faturam até 48 dólares (183 reais) por hora, não importa se de dia ou de noite, ao relento ou sob um teto, e entre seus principais clientes figuram lobbies, sindicatos ou qualquer entidade social interessada no que acontece na Câmara de Representantes e na Suprema Corte.

“Começamos nos anos noventa por uma questão de distribuição de lógica do trabalho. Nesses comitês há poucos lugares para o público, e para garantir um assento é preciso chegar muito cedo. Tínhamos uma empresa de mensagens, e um dia um dos lobbies para os quais trabalhamos pediu que mandássemos um de nossos motoqueiros para esperar numa fila às seis da manhã, porque sua hora de trabalho era muito mais barata que a de seus funcionários”, conta Mark Gross, da Linestanding – nome que significa literalmente “ficar de pé na fila” –, a divisão de “guardadores de lugar” da empresa QMS. “É algo que fazia sentido”, acrescenta.

O recorde de Eric Hopkins, um de seus sócios, foi numa das audiências sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo, quando um grupo de 10 pessoas acampou na rua durante uma semana inteira. Ao preço de 30 a 48 dólares por hora, há quem tenha pagado até 6.000 dólares (22.830 reais) para entrar, o que gera um debate ético sobre a mercantilização do acesso a algo essencial na democracia, seja um debate no Congresso ou uma audiência da mais alta instância judicial do país. Ou se deveria ser permitido comprar e vender o acesso à educação pública: o nova-iorquino Robert Samuel, da Same Ole Line Dudes, conta que recebeu dinheiro para passar dois dias na fila e conseguir vaga numa escola pública de prestigio que inscrevia os alunos por ordem de chegada.

A dúvida ética aumenta quando quem faz fila para os grupos de pressão são indigentes. “No princípio, começamos a recrutar gente dos albergues [para pessoas sem-teto], mas essa gente começou a prosperar, agora têm seus lares, foi muito bom para eles”, defende Mark Gross, embora acrescente que "com esta Administração há menos trabalho, porque a atividade legislativa baixou". O professor de filosofia Michael J. Sandel, ganhador do Prêmio Príncipe de Astúrias de 2018, aborda esse assunto em seu livro O Que o Dinheiro Não Compra (Ed. Civilização Brasileira): o sistema prejudica quem não pode se dar ao luxo de pagar um guardador de lugar na fila nem passar dois dias esperando, e o efeito para a sociedade muda quando se trata de ingressos para um show ou de participar da discussão de um projeto de lei.

As audiências da Suprema Corte só podem ser acompanhadas pessoalmente, ao passo que as do Congresso já são transmitidas on-line, mas os agentes interessados de cada setor gostam de participar in loco mesmo assim, porque podem ver as reações de todos os presentes na sala, longe das câmeras, e abordar os legisladores para conversar. O alto tribunal tentou nos últimos anos eliminar a prática, proibindo que pessoas alheias à carreira jurídica entrem na fila, mas não tem como controlar o que acontece na rua. E alguns parlamentares já criaram projetos de lei nesse sentido, também sem sucesso. Virou um trabalho em tempo parcial para muita gente.

Jennifer Goff, de 34 anos, começou atuando sozinha há dois, com uma tarifa plana de 30 dólares (114 reais) a hora: “Pensei que se havia tanta gente interessada em algo, certamente seriam capazes de pagar para que alguém esperasse por eles”. Atualmente coordena uma equipe de 8 ou 10 pessoas e tem sua própria marca, Skip the Line (“evite a fila”). Faz esperas para entrar em sessões nos tribunais e no Capitólio, mas fatura mais dinheiro é com o entretenimento: restaurantes de moda, ingressos para espetáculos etc.. A fila mais longa que já pegou foi para um evento de Game of Thrones: três dias seguidos, revezando-se por turnos.

Diz Hopkins que, além do frio, o trabalho se torna difícil muitas vezes “por causa do ego das pessoas”. Do ego? “Sim, o ego, não é ridículo? Pois tem pessoas que não podem estar ao lado das outras, dizem que usam um chapéu melhor, tem um cliente melhor…”.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_