“Rouanet das clínicas”: Senado endurece política antidrogas e lei vai a sanção de Bolsonaro
Enquanto o STF se prepara para votar a descriminalização do uso de drogas, Senado corre e aprova projeto de 2010 que facilita a internação compulsória e permite destinação de IR para clínicas privadas
O Senado aprovou nesta quarta-feira projeto de lei que modifica e endurece diversos artigos da Lei Antidrogas e de outras legislaturas sobre o tema. De autoria de Osmar Terra (MDB), atual ministro da Cidadania, o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 37 de 2010 fortalece as comunidades terapêuticas, espaços de tratamento em geral ligados a igrejas, e facilitam as internações involuntárias. Também prevê a possibilidade de se destinar até 30% do imposto de renda para as entidades de recuperação de usuários e por isso está sendo chamada de “Lei Rouanet das clínicas”. O projeto, que já passou pela Câmara, aguarda agora apenas a sanção do presidente Jair Bolsonaro.
O tema ganhou força para entrar na pauta com a aproximação do dia 5 de junho, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) deve retomar o julgamento sobre a descriminalização do uso e porte de drogas, cujo julgamento foi iniciado em 2015. A ideia da bancada mais conservadora e ligada ao bolsonarismo é tentar brecar qualquer mudança menos linha dura na temática ou ao menos constranger da corte com medidas no sentido contrário, reforçando o discurso, contestado pelos especialistas, de que o STF está atropelando a prerrogativa do Congresso de legislar a respeito.
Nessa sequência, o passo dado pelo Senado nesta quarta é mais um capítulo dessa queda de braço entre o Legislativo e o Judiciário. Na semana passada, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, publicou um vídeo afirmando que se o projeto de lei não fosse aprovado no Senado, o STF poderia, em breve “liberar as drogas no Brasil”. “Se for aprovado [o PCL 37], a causa que está no STF perde o objeto e acaba a discussão”. Mas, embora a discussão nos dois Poderes seja em torno das drogas, uma lei não tem a ver com a outra. O que o Supremo deve discutir no início do próximo mês é se é constitucional prender o usuário de drogas —que se diferencia do traficante de acordo com a quantidade da substância que ele porta, algo que não está contemplado na discussão da lei aprovada no Senado nesta quarta-feira.
De acordo com Gabriel Elias, coordenador de relações institucionais da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, a lei aprovada no Senado tem como objetivo fortalecer as instituições privadas de tratamento de usuários. “O objetivo desse projeto é fortalecer uma rede privada e religiosa do tratamento de usuários de drogas”, diz. “Isso é ruim porque fortalece um sistema que não é o sistema público de tratamento”.
Para Ronaldo Laranjeira, professor e coordenador da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Unifesp, que defende o projeto aprovado, para a nova lei obter êxito, é preciso criar o que ele chama de “indicadores de sucesso” para as comunidades terapêuticas, que costumam ser ligadas a diferentes denominações religiosas. “Em São Paulo, temos 15.000 internações em comunidades terapêuticas e existem indicadores de um modelo social de interação. É o que eu entendo como comunidade terapêutica”, diz. “Não é simplesmente dar dinheiro sem uma cobrança de indicadores de sucesso. Isso vale para qualquer serviço”, afirma.
As clínicas particulares saem fortalecidas em meio a uma discussão delicada. Em junho do ano passado, o Ministério Público Federal lançou um relatório da inspeção realizada nessas instituições em 11 Estados. Dentre as violações dos direitos humanos detectadas estão pessoas contidas por força ou por meio de medicamentos, alocadas em condições precárias e em lugares distantes, sem comunicação externa e tratadas como doentes. Ao todo, 28 instituições foram inspecionadas pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Conselho Federal de Psicologia. Na época, todas as clínicas visitadas foram reprovadas.
Para Luís Fernando Tófoli, professor da Unicamp e pesquisador do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos, o tripé que causou o crescimento das comunidades terapêuticas é formado pelo vácuo de investimento, proselitismo religioso, já que muitas delas incluem a religião em todo o roteiro do tratamento, e força política. “Nunca a solução para essa questão vai ser um serviço ou uma intervenção únicos”, diz. “Mas durante muito tempo, o investimento dos recursos públicos foi somente para os CAPS [Centro de Atenção Psicossocial] e não na rede. Os serviços terapêuticos surgem então de uma demanda pela procura desses atendimentos. E junto a isso, o processo de evangelização do país”.
O debate no Supremo
Agora, os holofotes de quem acompanha o tema se volta para o Supremo. O STF se prepara para retomar, no próximo dia 5 de junho, o julgamento da constitucionalidade do artigo 28 da Lei Antidrogas, que submete a penalizações quem portar ou usar drogas e que não foi mexido com as mudanças aprovadas nesta quarta no Senado. A discussão no STF teve início em 2015, mas está parada desde setembro daquele ano, quando o ministro Teori Zavascki, morto em um acidente em 2017, pediu vista do processo. Na época, três, dos 11 ministros já haviam votado pela descriminalização do uso e porte de drogas. No próximo dia 5, portanto, Alexandre de Moraes, que herdou todos os processos que estavam com Zavascki, será o próximo ministro a votar sobre o caso.
Antes mesmo desse julgamento, o STF deu uma sinalização contrária à linha dura. Nesta terça-feira, o ministro do STF Celso de Mello decidiu que importar semente de maconha não configura crime, rejeitando uma denúncia do Ministério Público Federal contra uma mulher que importou 26 sementes de cannabis, a planta da maconha, da Holanda.
Enquanto os dois Poderes discutem sobre o uso, porte e tratamento do usuário problemático de drogas, o que poderia ser uma base de dados para a tomada das decisões continua engavetado. O 3º Levantamento Nacional Domiciliar sobre o Uso de Drogas, concluído pela Fiocruz no final de 2016 e realizado a pedido do Ministério da Justiça ainda no Governo Dilma Rousseff, até hoje não foi oficialmente divulgado pelo Governo. No mês passado, porém, o The Intercept teve acesso ao documento. A conclusão é que é o uso de álcool, e não de crack, cocaína ou maconha, é que se tornou uma grande epidemia no Brasil.
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