Steven Levitsky: “Perdemos a capacidade de discutir política e depois ir jogar futebol juntos”
Autor do best-seller ‘Como as democracias morrem’, ele é uma espécie de médico legista dos regimes políticos, estuda o porquê do populismo e da polarização em países nos quais o ‘establishment’ está sendo rejeitado
Alguns entrevistados são apresentados pela forma como chegam ao encontro; outros, pela forma como vão embora. O professor Steven Levitsky (Princeton, Nova Jersey, 1968) faz parte do segundo grupo. Depois de mais de uma hora de conversa em um hotel no centro de Nova York, o cientista político pendura a mochila das costas e pergunta de um modo que parece completamente franco: “Então vocês queriam mesmo falar comigo?”. Há quem acredite que pode escrever um livro como Como as democracias morrem (Ed. Zahar), que fez tanto barulho, e que não será procurado por pessoas querendo lhe fazer perguntas.
Levitsky, doutorado pela Universidade de Stanford e professor de Governança em Harvard, é algo como um médico legista dos regimes políticos, tanto liberais quanto tirânicos. Dedicou boa parte de sua carreira ao estudo do autoritarismo e aos processos de democratização, à expectativa de vida dos regimes revolucionários, ao papel do populismo. Especialista em América Latina, é autor de várias obras sobre a região, apesar do título citado, coescrito com seu colega Daniel Ziblatt, oferecer um panorama global. Enquanto fala (em espanhol), é fácil imaginá-lo dando aulas como dá uma entrevista, abrindo muito os olhos e gesticulando sem parar, com as mangas da camisa soltas de forma anárquica.
Pergunta. Percebe-se uma mudança nos estudantes, no que perguntam e no que os preocupa? O sr. viu os Estados Unidos mudarem por meio de seus alunos?
Resposta. Tenho um grupo muito pouco representativo dos EUA. Em termos de etnicidade ou de país de origem, Harvard nunca foi tão diversa, há 50 anos só havia meninos ricos da New England. Agora são de todos os lugares e de todo tipo. Mas estou dando uma aula para 150 estudantes e provavelmente não há nenhum trumpista.
P. Mas isso não faz sentido...
R. O país se divide entre centros urbanos, com pessoas com título universitário, e cidades pequenas em zonas rurais, com pessoas sem tanta formação. Nessa divisão, todos os professores e a maioria dos estudantes estão de um lado. Além disso, nos EUA a juventude é muito mais democrata do que republicana. Trump tem apoio de pessoas mais velhas do que eu, de 60, 70 anos... Mas entre as pessoas de 18 a 20, quase 70% hoje em dia são democratas. Agora há dois mundos: o mundo urbano do litoral é muito mais cosmopolita, muito mais progressista, mais liberal; o interior é muito conservador.
P. Uma fratura tão grande “campo-cidade” erode a democracia?
R. Sim. Acontece em outros países, mas aqui, talvez pelo tamanho, a segregação nas bases sociais dos dois partidos é enorme. Há poucos lugares nos EUA em que convivem democratas e republicanos. Onde moro, Boston, tenho de dirigir 20 quilômetros para encontrar um trumpista. É preciso sair da cidade e chegar ao campo para encontrar um trumpista, isso não é normal. E, ao contrário, se você for a Oklahoma vai encontrar cidades inteiras que votam 99% em Trump, não há democratas. Se apareço por lá me veem como um marciano. É uma mudança lenta, mas relativamente nova, e não me parece saudável para a democracia. Os cidadãos perdem o hábito e a capacidade de coexistir, de tolerar a diferença, de discutir sobre política e depois ir jogar futebol juntos. Estamos perdendo essa capacidade mínima do cidadão de conseguir conviver com pessoas de outro partido. Os políticos representam seu território e se este é homogêneo não há necessidade de assumir compromissos, nem de negociar. Em Oklahoma é possível ser totalmente trumpista porque sua base é 100% trumpista. E todo o eleitorado do meu representante, que é neto de Bob Kennedy [Joseph Kennedy, de Massachusetts], é democrata, então se a pessoa começa a negociar com a direita, é linchada por nós. A ausência total de integração entre as pessoas dos dois partidos é muito daninha para a democracia.
P. A polarização então vai além do efeito Trump.
“Na democracia é preciso sujar as mãos — não digo no sentido de corrupção — é preciso fazer acordo”
R. Trump é mais sintoma do que causa. O principal problema, em nossa opinião, é a polarização partidária, que é baseada, além disso, não em termos de direita e esquerda, mas em raça, religião e cultura. Produto dessa polarização é o enfraquecimento das regras básicas da democracia.
P. Mas isso é tão novo ou agora é que chama mais a atenção?
R. É novo em um sentido muito importante. A questão da raça esteve conosco desde o nascimento da república, e foi fonte de autoritarismo, abuso, conflito e até guerra civil no século XIX. O novo é que a raça está fortemente ligada ao partidarismo. Pela primeira vez desde o século XIX, desde a guerra civil, a identidade partidária tem a ver com raça e religião. As pessoas brancas e cristãs são republicanas, para generalizar, e as demais são democratas. O partido republicano se tornou um bastião de brancos cristãos que foi maioria em toda a história da república. Era o grupo que dominou as hierarquias políticas, econômicas, sociais e culturais deste país por 200 anos, mas que está perdendo peso na sociedade norte-americana. É uma mudança de longo prazo, inevitável.
P. Surpreende que o sr. não mencione o fator do gênero.
R. Em minha opinião, o efeito de gênero está aí no sentido de que a maioria das mulheres votam nos democratas e que a figura de Trump representa um retrocesso de mais ou menos meio século em termos de normas sociais de gênero. Mas há muitas mulheres republicanas e democratas. A raça e a religião dividem a sociedade, nem tanto o gênero. Se você fosse norte-americana e eu lhe perguntasse sua religião, sua raça e seu nível de formação, acertaria mais facilmente em que partido você vota do que sabendo seu gênero.
P. O tema de seu livro é como morrem as democracias. E os regimes autoritários? Dizem que o chavista está se autodestruindo.
“Hoje ninguém gosta de quem está no poder, na Suécia, na Finlândia ou no Reino Unido”
R. De várias maneiras. Nesse caso, o Governo sofre a maldição do petróleo. Muitos regimes, inclusive a democracia venezuelana dos anos setenta, sofrem com a abundância do petróleo e acabam arruinando a economia. Enquanto o preço estava acima de 100 dólares por barril, Chávez utilizava os recursos para manter um apoio majoritário. Quando o preço cai a economia começa a baixar em 2011, 2012, 2013..., e então a popularidade também cai. A causa principal da fraqueza do regime é a economia. Nem todos os regimes autoritários caem assim. Vietnã e China têm regimes autoritários muito mais estáveis. Assim como a América Latina. A própria Espanha com Franco, entre os anos 50 e 60, quando começou a crescer, se estabilizou. O crescimento ajuda muito a estabilizar o regime autoritário.
P. Quais são as democracias mais sólidas e saudáveis atualmente?
R. Ninguém gosta de política, ninguém gosta das pessoas que estão no poder, seja na Suécia, seja na Finlândia, seja no Reino Unido... Esperamos muito dos representantes políticos, eles têm uma responsabilidade muito grande aos olhos do cidadão, e os políticos são medíocres. Buscam o poder, é seu trabalho, chegar ao poder e ficar. Isso soa mal. Além disso, têm de ser pragmáticos, adaptar-se. Dizem uma coisa na campanha, mas a situação muda, e têm de pactuar com a oposição, chegar a acordos que ninguém gosta. Um Franco ou um Pinochet podem ser puros. Se você mata a oposição ou a manda para o exílio, pode se manter puro, mas na democracia é preciso sujar as mãos — não digo no sentido de corrupção — é preciso fazer acordos. Exceto em casos de democracias recém-nascidas, como a espanhola no fim dos anos setenta, os cidadãos não estão satisfeitos, não vamos encontrar uma democracia com décadas de vida na qual as pessoas estejam felizes com o sistema. Sempre reclamam.
P. No fundo é bom sinal, de que o cidadão está descontente porque se acostumou a padrões altos.
R. Sim, e também há mudanças nas democracias estabelecidas que acredito que ainda não chegamos a entender completamente, como o crescente enfraquecimento do establishment político. Na Europa, Alemanha, França, Reino Unido e Estados Unidos, nos anos sessenta havia um establishment muito forte: dois partidos que controlavam as candidaturas, três canais de televisão que todo mundo via, fontes de financiamento limitadas, sindicatos, empresários... Nos EUA em 1958, se não aparecesse na NBC, CBS, ABC [grandes redes], você não chegaria ao eleitorado. Se não tenho amigos no sindicalismo ou entre os empresários, não consigo dinheiro para minha campanha. E se não faço parte do mainstream do partido, como não há primárias, não posso ser candidato a nada. Assim, todos os políticos costumavam ser moderados. Isso mudou por várias razões. Bernie Sanders pode arrecadar tantos fundos quanto Hillary Clinton, buscando dinheiro na Internet, e um candidato pode se tornar conhecido pelo WhatsApp ou pelo Facebook.
P. Houve uma abertura de mercado.
R. Há uma democratização das democracias que gera muita incerteza, mais populismo. Em 1958 eu não podia ser populista porque o establishment me rejeitava. Hoje posso rejeitar o establishment e ganhar votos, ser o Movimento Cinco Estrelas, ser Vox ou ser Trump. A democracia dos anos cinquenta era muito elitista, muito contida. Hoje é muito mais um circo, mais aberta, mas em crise.
P. E o que se pode fazer? Voltar ao establishment?
R. Impossível, as pessoas não toleram. É um dos desafios que nós, políticos e cientistas políticos, temos: aprender como fazer funcionar uma democracia em uma época em que o establishment não pesa nada.
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