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Tribuna
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O curioso tempo da prisão de Temer

História seria outra se investigação evoluísse quando propina foi revelada em 2016, durante processo de fritura de Dilma Rousseff que levou ao impeachment

Temer em evento com investidores em São Paulo em agosto de 2017
Temer em evento com investidores em São Paulo em agosto de 2017Leonardo Benassatto (REUTERS)

Não é preciso ser admirador do físico alemão Albert Einstein para concordar que, especialmente no Judiciário brasileiro e na Operação Lava Jato, o tempo não passa do mesmo jeito para todos. Foi o gênio da Física quem constatou com sua teoria da relatividade que o tempo passa mais depressa no alto e mais devagar embaixo, como resumiu o físico italiano Carlo Rovelli. Mas não foi certamente por culpa das estrelas que Michel Temer conseguiu aproveitar o curioso tempo da Justiça e de suas forças particulares para evitar a prisão subindo a rampa do Palácio do Planalto em 2016.

A notória seletividade e a inconfundível morosidade da Justiça brasileira não tiram a atualidade da pergunta que fica com a prisão tardia de Temer: por que ele não foi investigado e preso em outro tempo, em abril de 2016, quando os motivos da sua prisão já eram conhecidos pelo Ministério Público Federal e Temer ainda não estava protegido pelo mandato presidencial?

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Em abril de 2016, uma reportagem feita pela revista Época (da qual sou coautor) trazia o conteúdo da proposta de delação premiada do empreiteiro José Antunes Sobrinho, sócio da Engevix. Em conversas com procuradores da República e nos anexos escritos entregues ao Ministério Público Federal, Antunes tinha revelado que pagou 1 milhão de reais de propina a Temer. Esse pagamento de propina foi revelado aos procuradores em algum momento de março ou abril de 2016, segundo relatos divergentes dos procuradores e advogados envolvidos nas conversas.

A propina para Temer foi narrada no penúltimo anexo da proposta de delação, que começou a ser negociada ainda em outubro de 2015, depois da prisão de Antunes. Houve pelo menos três conversas de Antunes e seus representantes com procuradores, e até uma reunião presencial na sede da Procuradoria-Geral da República em Brasília.

Mas Antunes havia poupado Temer até a última hora, segundo a convergência dos relatos de todas as partes envolvidas. Só por volta de cinco a seis meses depois de iniciadas as conversas é que ele citou o episódio em que Temer estaria arrolado. Essa omissão inicial, mesmo corrigida, foi citada por procuradores como motivo da recusa da delação premiada, embora não exista lei alguma que autorize criminosos a ficarem impunes só porque investigadores desconfiavam da credibilidade de seus comparsas. A delação foi recusada por unanimidade pelas forças-tarefa de Curitiba, do Rio de Janeiro e também pelo time do ex-procurador-geral Rodrigo Janot.

Os advogados de Antunes, liderados pelo criminalista Antônio Figueiredo Basto, outrora apelidado de “rei das delações”, cobraram uma explicação formal, por escrito, para a recusa da delação depois da menção a Temer e receberam um documento em que estava escrito que a delação “não atingiu o interesse público”. Alguns advogados chegaram a propagar que Antunes desistiu da delação depois que Temer virou presidente, pois queria reerguer a Engevix, mas Antunes não deixou dúvidas em uma entrevista em maio de 2017 ao jornal Valor Econômico: “Estou dizendo que não fui eu quem desistiu”.

Depois, no entanto, Antunes e seus representantes chegaram a mentir a alguns jornalistas, dizendo que não houve pagamento de propina a Temer e coisas do gênero, enquanto a Engevix tentava um generoso acordo de leniência com a gestão Michel Temer. De todo jeito, por lei, elevado ao tempo próprio do Palácio do Planalto, Temer não poderia ser investigado ou preso por crimes anteriores ao mandato presidencial.

Antunes envolveu pela primeira vez na Operação Lava Jato o coronel João Baptista Lima Filho como intermediário de propinas para Temer, mas o empreiteiro não tinha especificado data aproximada e modalidade dos pagamentos que somaram 1,1 milhão de reais, porque dizia não se lembrar dos detalhes da operação executada por um laranja. No entanto, outros delatores conseguiram assinar delações mesmo com memória curta. O empreiteiro também não tinha revelado que as negociatas de propina envolveram o ex-ministro Moreira Franco (PMDB) e o empresário Rodrigo Castro Neves, (ex-sócio do ex-senador Eunício de Oliveira (PMDB)), também presos nesta quinta-feira. Nas apurações sobre o caso para a revista Época, revelei em junho de 2016 que o pagamento de 1,1 milhão realmente ocorreu, inclusive com a data aproximada (outubro de 2014). Até então, o laranja e o coronel João Baptista Lima Filho, o intermediário de Temer no repasse, tinham negado que existisse qualquer pagamento – tudo tinha sido tratado como invenção.

Em outubro de 2017, o El PAÍS Brasil publicou os comprovantes bancários desse pagamento de propina, depois de tomar conhecimento do andamento de um processo cível aberto pela empresa Alúmi Publicidades, usada como “laranja” para disfarçar o repasse da propina a Temer. O sócio da Alúmi se dizia então vítima e interessado em colaborar com a Justiça. Nessa ação, a empresa alegou que foi usada, sem saber, para repassar propina e apresentou os comprovantes bancários dos pagamentos feitos ao coronel Lima, o intermediário que fazia a ponte entre Temer e corruptores.

O papel de Lima tinha entrado na mira da Justiça depois que delatores do frigorífico JBS motivaram a primeira ação judicial contra Temer e Lima em maio de 2017, na Operação Patmos, e a Alúmi temia que, com Temer e Lima formalmente investigados, também entrasse na mira da Justiça. Em maio de 2018, o EL PAÍS publicou as cópias dos e-mails em que era negociada a propina da Engevix para Temer, que mostravam o pedido verbal de Antunes para que houvesse “urgência” no pagamento ao intermediário de Temer. Tanto os e-mails quanto os comprovantes bancários foram citados pelos procuradores do Rio de Janeiro no pedido de prisão de Temer como parte das provas de corroboração, que “impressionam por sua quantidade e qualidade”.

Nenhuma dessas provas e nada dessa trama da Engevix entraria no alcance da Justiça se a Polícia Federal não tivesse ido atrás dessas revelações. Isso só aconteceu a partir da abertura do inquérito dos portos em junho de 2017, que resultou na operação Skala deflagrada em março de 2018. Só depois dessa operação, que prendeu Lima pela primeira vez, um representante da Alúmi Publicidades e Antunes foram interrogados pela primeira vez para falar sobre a propina da Engevix para Temer. Antunes acabou assinando um acordo de delação premiada com o delegado Cleyber Malta, que investigou toda a trama da Engevix.

Sem essas iniciativas, desencadeadas tardiamente dentro do inquérito dos Portos, a propina da Engevix não teria sido investigada e não haveria caso repassado para a força-tarefa do Rio de Janeiro, que retomaram investigações da Eletronuclear atrás de e-mails, documentos e depoimentos que mostraram a ingerência de Temer e o favorecimento de Lima na estatal.

Nada disso foi investigado quando veio à tona originalmente, no tempo em que o atual presidiário Eduardo Cunha (PMDB) presidia a Câmara dos Deputados e avançava o processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, agora também réu na Operação Lava Jato. Era também o tempo em que o Senado era presidido por Renan Calheiros (PMDB), outro réu ainda impune.

Se Temer fosse preso em tempo hábil, antes do afastamento de Dilma, teria a ex-presidente obtido apoio parlamentar para se segurar no cargo? Ou teria Cunha obtido sucesso do mesmo jeito no processo de impeachment e virado presidente da República como o próximo na linha sucessória depois de Temer? Janot tinha pedido o afastamento de Cunha da presidência da Câmara ainda em dezembro de 2015, mas o Supremo Tribunal Federal só fez isso em maio de 2016, depois de deflagrado o processo de impeachment, em outra passagem curiosa de tempo. O mesmo Supremo Tribunal Federal só proibiu seis meses depois que réus assumissem a Presidência da República. Essas perguntas só servem agora como objeto de especulação. Mas a história certamente seria outra, e não necessariamente mais favorável à imagem da Justiça.

Hoje, Temer se vê em outra armadilha de tempo. Ou de timing, como sugerem observadores que reclamam dos atropelos da Lava Jato, como os excessos de prisão preventivas. Está, também, no meio da artilharia entre o Supremo e o Congresso contra os procuradores e o Ministério Público. Se antes ele valia ouro como fator de estabilidade pós impeachment, hoje pode ter se tornado troco nessa guerra surda entre os dois campos.   

Daniel Haidar é jornalista e escreve um livro sobre a Lava Jato, operação que ele cobriu nas revistas Veja, Época e no EL PAÍS, acompanhando de perto as acusações contra o ex-presidente Michel Temer.

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