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Governo Bolsonaro ignora alertas de favorecimento para a Vale e mantém licitação de ferrovia

EL PAÍS apurou que suspeitas sobre possível direcionamento para a empresa foram levantadas por representantes de três órgãos. TCU liberou o certame, mas ainda julgará recurso e pedido de suspensão

Um trecho da ferrovia Norte-Sul, operada pela VLI.
Um trecho da ferrovia Norte-Sul, operada pela VLI.Nidim Sanches/VLI

No próximo dia 28, o Governo Jair Bolsonaro deve fazer sua segunda grande licitação na área de infraestrutura. Trata-se do trecho centro-sul da ferrovia Norte-Sul, que tem 1.537 km de extensão e já recebeu 9,8 bilhões de reais de recursos públicos. É considerada a “espinha dorsal do transporte ferroviário brasileiro” e responsável por carregar boa parte dos minérios a serem exportados pelo país. A diferença do primeiro certame feito nesta gestão, quando foram concedidos 12 terminais aeroportuários a diversas empresas internacionais, é a expectativa no setor de que o vencedor seja alguém já conhecido: a mineradora Vale ou alguma companhia vinculada a ela.

As suspeitas sobre um possível direcionamento para a empresa foram levantadas por diversas fontes, entre elas o Ministério Público Federal, técnicos da Valec (a estatal da União responsável por construir ferrovias) e pelo representante do Ministério Público no Tribunal de Contas da União. Até o momento, apesar de alertas e recomendações, o Ministério da Infraestrutura manteve a data da licitação e descartou qualquer irregularidade nele.

Para alguns técnicos do setor, o edital da ferrovia estaria sendo direcionado para a VLI Multimodal S.A, uma empresa que tem como maior acionista individual a Vale, com 37,6% das ações. Os outros acionistas são: o fundo de investimento canadense Brookfield (26,5%), a empresa de investimento japonesa Mitsui (20%) e o Fundo de investimento do FGTS (15,9%). A VLI opera desde o ano de 2007 o tramo norte, que liga Porto Nacional, no Tocantins, a Açailândia, no Maranhão. O principal indicativo desse direcionamento seria a ausência no edital de um mecanismo chamado “direito de passagem”. Esse artifício permitiria que a concessionária que ganhar a parte centro-sul possa utilizar a parte norte, operada pela VLI (e que se liga ao porto de Itaqui por meio da Estrada de Ferro Carajás, controlada pela Vale), ou o acesso ao porto de Santos, por meio da estrada Malha Paulista, que é controlada pela Rumo Logística. Essa interligação com a ferrovia paulista, contudo, não está concluída e nem há a garantia de que seja tão cedo, já que o Governo federal decidiu ele próprio terminar essa construção, ao invés de repassá-la à concessionária que vencer a disputa.

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"A ausência dessa garantia de que se pode passar para ter acesso aos portos acaba afastando competidores. Só restaria a Vale, com as empresas ligadas a ela, ou a Rumo, que não tem garantia de ligação com a malha que já opera em São Paulo", ponderou o procurador Julio Marcelo de Oliveira, que atua junto ao Tribunal de Contas da União. Oliveira é um dos principais críticos à concessão como está desenhada. Em sua conta no Twitter, ele pediu que o presidente Bolsonaro reexaminasse essa licitação urgentemente. Ele ainda ressalta que o direcionamento da concessão pode levar décadas para ser corrigido. “A continuidade da licitação nesses termos será um erro colossal, com consequências danosas para os próximos 30 anos do país.”

Em artigo publicado no fim de fevereiro, o diretor da ONG Contas Abertas, Gil Castello Branco, chamou a atenção para a irregularidade. “Ninguém em sã consciência irá gastar quase 3 bilhões de reais em locomotivas e vagões e mais de um bilhão de reais em valor de outorga para ficar com seus trens confinados dentro da Norte-Sul, sem poder chegar aos portos”. A concessão da Norte-Sul esteve em todos os pacotes de privatização do Governo nos últimos. Foram feitas divulgações no Oriente Médio, nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia. De início parecia haver um interesse de várias companhias. Duas delas, uma chinesa e uma russa chegaram a buscar informações junto à União. Mas, conforme os técnicos, desistiram da disputa após a publicação do edital.

O Tribunal de Contas da União já analisou o edital de concessão e não encontrou irregularidades nele. Porém, ainda falta julgar um recurso e um pedido de suspensão cautelar do Ministério Público, apresentado pelo procurador Oliveira. A expectativa em Brasília é que esse julgamento ocorra até a próxima segunda-feira. 

Procurada, a VLI refutou a tese de que estaria sendo beneficiada, afirmou que os anexos do edital tratam do direito de passagem e disse que, por já operar a parte norte da ferrovia não pode ser considerada uma “vantagem indevida”. “O fato da VLI ter experiência anterior no tramo norte não pode ser considerado como qualquer ilicitude, e é de se estranhar que isto venha sendo colocado como vantagem indevida, sendo tal situação, uma desvantagem competitiva, já que eventuais terceiros interessados não colocarão em seu orçamento os custos extras necessários para adaptar a ferrovia”, afirmou a companhia em resposta aos questionamentos da reportagem. Indagado, o Ministério da Infraestrutura afirmou que o direito de passagem está garantido pela Agência Nacional de Transporte Terrestre por meio da resolução 3695. Porém, na atual concorrência, o direito de passagem só estaria garantido por cinco anos. Como a concessão é de 30 anos, os outros 25 anos seguintes seriam resolvidos futuramente, talvez pela via judicial.

Ótimo negócio

O baixo valor da outorga é outro ponto negativo que se destaca nessa futura concessão. O valor inicial para uma concessionária assumir o controle da ferrovia é de 1,3 bilhão de reais. É o equivalente a 18% dos 9,8 bilhões de reais que já foram investidos. Em 2007, quando o Governo Dilma Rousseff (PT) abriu a concessão do tramo norte, a outorga foi de 1,4 bilhão de reais, para uma estrada férrea de 720 quilômetros, menos da metade dos 1.537 do tramo centro-sul que liga Porto Nacional a Estrela D’Oeste, em São Paulo. Naquela ocasião a outorga representou 53% do valor investido na ferrovia. “No Governo Dilma foi um negócio de mãe pra filho. Agora é um negócio de vó para neto”, disse um dos técnicos da estatal Valec ouvidos pela reportagem.

Sobre o valor da outorga, o procurador Oliveira também o considerou reduzido, mas disse que poderia ser estratégia para atrair mais participantes do processo licitatório. Com essas regras, porém, dificilmente mais empresas disputem. "O que se paga pela outorga não é só o valor que foi gasto, mas o seu potencial lucro. Com esse edital, só a Vale tem condições de avaliar o cenário real".

Por meio de nota, o Ministério da Infraestrutura informou que os valores da outorga são definidos com base nos estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental (EVTEA). “Quanto maior a necessidade de investimento, alocação de risco e outros fatores mensurados no EVTEA, menor o valor de outorga é cobrado para manter a atratividade do ativo”. Além de baixo, o Governo ainda autorizou o pagamento da outorga em 28 anos. No primeiro trecho, o pagamento integral ocorreu no prazo de quatro anos.

A série de potenciais irregularidades não para por aí. O edital não prevê transporte de passageiros; a concessionária vencedora não assume o passivo ambiental da obra; e não há previsão para que cargas que não sejam as exploradas pela concessionária possam transitar pelos trilhos. Por exemplo, se uma mineradora ganhar, não está certo de que a soja, um dos principais produtos de exportação do país, poderá ser transportada pela ferrovia.

Desde fevereiro, a reportagem entrou em contato com as três empresas do setor que enviaram técnicos para visitar as obras da Norte-Sul. São elas: a VLI, a MRS Logística S.A. e a Rumo Logística. As duas primeiras disseram que ainda analisam a participação na licitação. Funcionários da VLI estiveram seis vezes na ferrovia e os da MRS, outras duas. A Rumo, que enviou funcionários três vezes para analisarem as obras, disse que não poderia se manifestar oficialmente porque a “companhia encontra-se em período de silêncio, devido à emissão de debêntures aprovada pelo conselho de administração”.

A MRS também tem forte participação da Vale, com 44%. A mineradora tem diretamente 11% das ações e, por meio da Mineração Brasil Reunida S.A (que é uma de suas empresas) possui outros 33%. Tanto a MRS quanto a VLI informaram que a questão do direito de passagem será equacionada. “A MRS já definiu junto à ANTT o racional para as operações de direito de passagem e tráfego mútuo com relação aos trens com origem ou destino na FNS que precisem acessar a nossa malha. Para nós, é uma operação bastante usual, corriqueira até, já que operamos nesse mesmo modelo com diversas outras concessionárias, há muitos anos”, afirmou a Gerência Geral de Comunicação da companhia.

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