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“A prisão dos supostos assassinos de Marielle é só um ‘cala a boca’ para a sociedade”

Para especialista em milícias, morte da vereadora está ligada a estes grupos, que seguem ainda em crescimento e "intocáveis" sob uma estrutura política e econômica

Nesta terça-feira, às vésperas de que o assassinato da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, completasse um ano, Ronnie Lessa, policial militar reformado, de 48 anos, e Elcio Vieira de Queiroz, de 46 anos expulso da Polícia Militar, foram presos acusados de serem os assassinos. Lessa teria efetuado os 14 disparos contra o carro onde estava Marielle, enquanto Queiroz dirigia o Cobalt prata de onde saíram os tiros que mataram a vereadora do PSOL e o motorista. 

O sociólogo José Cláudio Souza Alves, que estuda as milícias há 26 anos.
O sociólogo José Cláudio Souza Alves, que estuda as milícias há 26 anos.Arquivo pessoal

Para o sociólogo José Cláudio Souza Alves, que estuda as milícias do Rio de Janeiro há 26 anos e é autor do livro Dos Barões ao extermínio: a história da violência na Baixada Fluminense, o crime sempre esteve vinculado com a atuação desses grupos criminosos. Em entrevista ao EL PAÍS, Alves afirma que a prisão dos dois suspeitos é apenas um 'cala a boca' para a sociedade, já que a investigação ainda não respondeu à principal pergunta que ecoa há um ano em protestos nas ruas, em redes sociais e até no carnaval: Quem mandou matar Marielle?

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Pergunta. O senhor vê indícios de participação da milícia no assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes?

Resposta. Para mim, o assassinato de Marielle sempre teve vínculo com a milícia, principalmente pela forma como ocorreu. Além do fato de ela trabalhar denunciando abusos cometidos pelos batalhões e policiais milicianos, o modus operandi da execução, usado pelas milícias, estava claro ali. A questão não é saber apenas quem cometeu o crime, o importante agora é chegar nos mandantes, naqueles que estão por trás. Com certeza, tem grana e gente de poder envolvida no caso. É preciso ter a capacidade de investigação para chegar em toda essa rede, mas, como eles [os criminosos] estão dentro do Estado, é complicado. É muito estranho que, depois de um ano, cheguemos à prisão de apenas dois indivíduos. Ninguém garante, de momento, que eles não são bodes expiatórios colocados para proteger nomes mais importantes. Já vimos que foram identificados possíveis vínculos do filho do presidente, o senador Flavio Bolsonaro, com milicianos. [O gabinete do então deputado estadual empregou a mulher e a mãe de um membro da milícia conhecida como Escritório do Crime, suspeita de ter envolvimento na execução de Marielle]. Como a polícia e o Estado, em si, estão comprometidos, há dúvidas sobre todo o processo. A Justiça está colocada em xeque.  O Estado virou um biombo entre o legal e o ilegal, e os grupos que operam dentro dele são os que mais se beneficiam. Os questionamentos são esses: como essa investigação aconteceu? Como chegaram a esses dois nomes? Quem está por trás desses nomes?

P. Nas suas mais de duas décadas de experiência na área, o senhor lembra de algum crime com suspeita de envolvimento das milícias com impacto similar ao caso Marielle Franco?

R. O caso da Marielle se destaca precisamente pelo vínculo com o crime organizado como milícia. Lembro da procuradora da República Tânia Maria Sales Moreira, que, nos anos 1990 em Duque de Caxias, prendeu 27 matadores da Baixada Fluminense, membros de grupos de extermínio, levando-os ao julgamento e à condenação. Ela foi ameaçada por todos eles, mas faleceu anos depois, de câncer. Depois, teve o caso da juíza Patrícia Acioli, em São Gonçalo (Niterói), que foi assassinada por policiais contrários à atuação dela. [Acioli, responsável pela condenação de 60 policiais ligados à milícias e grupos de extermínio, foi morta com 21 tiros em 12 de agosto de 2011, na porta de sua casa]. E, agora, Marielle. São três mulheres em postos de poder que enfrentaram a estrutura misógina, machista, calcada na violência que esses grupos constituem. Elas ameaçaram e enfrentaram esses grupos, que não perdoam isso.

P. O assassinato de Marielle serviu de estímulo para melhorar as investigações sobre os crimes desses grupos organizados?

R: Não vejo mudança. Na verdade, considero que a situação piorou, porque há um respaldo político e jurídico para ampliar o poder dos agentes de segurança que estão vinculados às milícias, que perpetuam-se com mais força. A prisão dos dois PMs acusados de matar a vereadora é um 'cala a boca' para a sociedade como um todo, que reivindicava uma elucidação. Com isso, cumpre-se quiçá uma meta, mesmo um ano depois, mas é uma exceção que confirma a regra: esses grupos continuam crescendo, são intocáveis e mantêm sua estrutura de poder político e econômico. Temo muito que as investigações do caso não avancem, que fiquem nessa dimensão superficial, sem chegar aos mandantes. E aí, nós nunca saberemos, já que é o próprio Estado, envolvido no crime, que investiga. É uma farsa, uma sensação ilusória de segurança que só alimenta a lógica dos matadores e dos grupos de extermínio, além de dar gás à máxima do ‘bandido bom é bandido morto’. O quadro atual favorece os milicianos.

P. De que forma?

Estamos falando de grupos estruturados há décadas, dentro do Estado. Não se trata, então, do desvio de conduta de um cidadão, uma falha moral de um indivíduo. É uma estrutura social ampla e complexa, que funciona dentro do Estado há muito tempo e que hoje se projeta como uma sombra sobre todos nós, com essa lógica de policial que mata como herói que nos livra do bandido. Isso não existe. Esse herói não é um vingador, ele é o próprio verdugo que executa pessoas e controla o poder no nosso país.

P. Qual é a origem das milícias no Rio de Janeiro?

R. Esses grupos começaram a surgir com a formação dos esquadrões da morte durante a ditadura militar. A partir de 1967, a polícia militar ganhou essa característica ostensiva, auxiliar e repressora, como ela tem até hoje. Esses grupos cresceram muito ao longo dos anos 1970 e, nos anos 1980, mudaram a forma de operar, com a entrada de civis. Finalmente, esses matadores começaram a projetar-se politicamente e eleger-se a partir dos anos 1990, chegando à forma de milícia no início dos anos 2000. Foi quando esses grupos adotaram as características que têm hoje: além de matar, e de cobrar por segurança, ampliaram seus negócios para ramos como a venda de terrenos, venda de água, de cigarro, de combustível adulterado, transporte clandestino e gatos de telefone e internet. Um enorme portfólio que as milícias agregaram à sua atuação criminosa.  

P. Como essas milícias atuam hoje? Como funciona o recrutamento, aliciamento e o processo de intimidação nas comunidades? 

R. A base dessa atuação é o controle militarizado de áreas com pouco histórico de proteção e de presença do Estado. Os milicianos começam cobrando taxas de segurança para os comerciantes locais, por exemplo. Depois, passam a controlar serviços como os transportes clandestinos. Essa estrutura vai avançando e eles começam a controlar bens, como gás, água, cigarros, combustível, terrenos e imóveis. Eles também atuam no mercado político, controlam eleições, vendem votos dentro das comunidades. Os agentes públicos que dominam as milícias têm informações privilegiadas, controlam a estrutura do Judiciário, das investigações, a judicialização das suas ações, têm informações sobre operações da estrutura policial que podem afetá-los e se previnem para evitar que sejam tocados. É essa dimensão política que lhes confere um poder que, articulado à ação criminosa (cuja base é a execução sumária) faz das milícias intocáveis, com um poder muito superior, em termos de organização, aos demais grupos criminosos.

P. Como seria possível desarticular as milícias?

R. A milícia tem muita relação com o tráfico de drogas, eles permitem que o tráfico funcione de acordo com seus interesses. Permitem, por exemplo, as atividades de algumas facções que pagam o aluguel dos pontos de venda. Então é preciso, primeiro, tratar a questão das drogas não como uma questão de guerra, mas sim de saúde pública. A lógica da repressão, com operações que vitimam muitas pessoas, sempre mais pobres, só fortalece as facções. Segundo, é preciso desmilitarizar a polícia, dando ao policial a possibilidade de refletir sobre sua prática em diálogo com a comunidade. Enquanto permanecer a lógica militarizada, hierarquizada, que submete o policial a ser quem mais mata e quem mais morre, esse profissional estará sob uma lógica incontrolável, sem recursos para responder adequadamente à situação. As milícias aproveitam-se dessa estrutura para expandir seu poder criminoso. E os policiais que acreditam e defendem uma postura ética e moral, que acreditam na lei e no Estado, acabam sendo vitimizados nessa estrutura. Também é importante promover operações policiais articuladas e contínuas para desestruturar os braços político e econômico das milícias. Enquanto continuarmos só prendendo os indivíduos envolvidos nessa rede, eles serão substituídos por outros.

A partir do assassinato da Marielle, houve um aumento das operações, mas com pouca efetividade. Uma delas, por exemplo, resultou na prisão de 159 pessoas em uma festa em Santa Cruz (zona oeste do Rio de Janeiro), mas a grande maioria nem era parte da milícia. Algumas outras operações foram exitosas, mas o problema é que são pontuais, sem continuidade e sem efeitos reais. Esses grupos se recompõem facilmente, porque sua fonte de renda e sua base política nunca foram tocadas. São ações que não conseguem reduzir nem sequer atrapalhar o crescimento das milícias.

P. Que influência poderia ter o pacote de lei anticrime apresentado pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, no combate a esses grupos criminosos?

R. Não é com o excludente de ilicitude, permitindo que um agente de segurança do Estado possa matar livremente "sob forte emoção" ou situação de segurança que vamos solucionar o problema, pelo contrário. O número de chacinas cometidas por policiais tem aumentado no Rio, e essa proposta fortalece os grupos que já praticam execução sumária dentro do aparato do Estado. O matador que antes colocava um gorro na cara e transformava-se em miliciano para executar alguém já não precisa vestir essa máscara. Agora, ele pode sair de cara limpa, matar e dizer que foi no cumprimento de seu dever, que estava "sob forte emoção". E não há ninguém que controle isso, porque esse agente é a ponta do Judiciário que investiga. Esse policial atua diretamente nas ruas e é quem está no momento da apreensão. Ele tem um poder capilar na ponta da estrutura judiciária para proteger-se. As milícias vão atuar de modo mais organizado, matando mais gente. E a proposta de Moro só aumenta o punitivismo. Prender mais gente não resolve o crime organizado.

P. Se, como o senhor mesmo disse, a milícia não é um poder paralelo, mas o próprio Estado,como é possível quebrar seu braço político?

R. É uma questão muito complexa, porque o ramo político das milícias conta com a proteção de grupos mais poderosos, tanto no âmbito municipal quanto estadual e, agora, ao que tudo indica, no federal também. Quanto mais fortalecidos, mais vão atacar, porque o ataque é sua defesa. Então seu modus operandi é desqualificar as investigações judiciais, o trabalho jornalístico, e criar guerras argumentativas a partir de fake news. O mais grave é o risco de manipulação das investigações, colocando pessoas vinculadas a eles na condução dos processos. De momento, só podemos esperar que isso não aconteça.  

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