A saga das mulheres para comandar um avião comercial
Licenças concedidas a mulheres teêm crescido nos últimos anos, mas ainda a passos lentos. Dificuldades para ingressar neste mercado vão do alto custo da formação ao machismo estrutural
Quando Jaqueline Ortolan Arraval, 50 anos, fez a primeira aula experimental de voo, foi mais por curiosidade do que por qualquer pretensão de virar piloto de avião. Era início dos anos 1990 e pouco se via mulheres comandando grandes aeronaves comerciais no Brasil. "Eu achava que não era uma profissão pra mim", conta. Ela trabalhava no setor processual em terra de uma grande companhia aérea, e o contato constante com colegas que estudavam aviação lhe provocaram certo fascínio. Perguntava tanto sobre a experiência de voo que um dia um amigo lhe convidou para acompanhá-lo em uma das aulas. A curiosidade do início se tornou um sonho profissional, e Jaqueline passou a frequentar aeroclubes e trabalhar incessantemente para conseguir pagar as caras aulas de aviação e acumular as horas de voo necessárias para conseguir a licença de piloto. Só seis anos depois — e com um elevado investimento de tempo e dinheiro — ela conseguiu comandar um avião pela primeira vez. “Depois que comecei, em nenhum momento, pensei em desistir por ser mulher", diz.
Desde que Jaqueline iniciou sua saga pessoal para conseguir pilotar um avião comercial, há 29 anos, a presença de mulheres na aviação brasileira até cresceu, mas a passos muito lentos. No ano passado, apenas 2,9% das 14.380 licenças para piloto comercial de avião validadas pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) eram de mulheres. Em 2017, este percentual era de 2,8%. A baixa participação feminina mostra que a aviação comercial brasileira ainda é bastante masculinizada. Para se ter uma ideia, o percentual feminino com licença de piloto de linha aérea de avião — o topo da carreira — mal chegava a 1% do total de 5.211 licenças em 2018. Ainda assim, Jaqueline acredita que a visão de que pilotar avião não é trabalho pra mulher é mais uma questão cultural externa do que algo intrínseco ao setor aeronáutico. “É mais pelas pessoas de fora que pensam assim, como se este não fosse um espaço para a mulher. Mulher voa sim, e as empresas hoje querem mulheres voando. Esta é uma profissão que foi durante muito tempo masculinizada, e as mulheres ainda não sabem que também podem ocupar esse espaço”, afirma.
As maiores dificuldades neste mercado, diz Jaqueline, independem de gênero e estão mais relacionadas aos elevados custos da longa trajetória de formação que deve ser seguida até que a pessoa esteja apta a pilotar uma aeronave. "A dificuldade maior existe para todos: conseguir pagar as aulas e horas de voo, que podem custar em torno de 800 reais a hora", conta. Quando decidiu que seguiria com as aulas e investiria na carreira de pilota, Jaqueline deixou o emprego em terra na companhia aérea em que trabalhava e se tornou comissária de bordo, que pagava melhor. Durante anos, trabalhou em jornadas intensas para conseguir pagar as aulas e ir progredindo nas licenças, que exigem quantidades de horas de voo diferentes conforme o tamanho da aeronave e também o tipo de atividade. Quando completou 40 horas de voo, ela tirou a primeira licença, de piloto privado, e passou a ser copiloto em mais uma tentativa de acumular horas no ar. Foi neste processo que viveu a única experiência de machismo explícito dentro da aeronáutica.
Jaqueline havia acordado com o dono de um monomotor que seria copiloto, mas antes do voo o comandante se recusou a voar com ela porque poderia ter "problemas em casa" ao viajar com uma mulher. “Foi a única vez que eu senti [o machismo explícito]”, diz Jaqueline. O episódio, porém, não a abalou, e ela seguiu na árdua tarefa de alcançar as 1.500 horas de voo necessárias para conseguir a licença para comandar um avião comercial de uma grande companhia. Conquistou o feito depois de seis anos. Sob seu comando, tinha um Airbus 320 que sairia de São Paulo e terminaria o itinerário em São José do Rio Preto. "Era um voo de quatro pernas, mas não lembro quais eram as paradas", conta. Apesar de toda a segurança técnica conquistada depois de anos de um treinamento exaustivo, o frio na barriga tomou Jaqueline naquele dia. "A segurança operacional é claro que eu tinha, mas aquele momento significava alcançar um sonho”, lembra. Desde então, ela segue na profissão.
Pressão social em meio a uma rotina pouco convencional
Apesar de defender que homens e mulheres precisam enfrentar grandes dificuldades para conseguir chegar a pilotar um avião comercial, Jaqueline reconhece que as pressões sociais tornam, sim, este espaço mais difícil para as mulheres, especialmente na hora de equilibrar uma rotina de trabalho pouco convencional com as pressões domésticas. Isso fica evidente, por exemplo, durante a maternidade. Quando engravidou de gêmeos, em 2003, Jaqueline precisou tirar licença para evitar quaisquer riscos de aborto por conta da pressurização. Seis meses depois de dar à luz, porém, resolveu retornar ao trabalho. Organizou um esquema de cuidados para os filhos, já que poderia estar fora de casa por até seis dias seguidos, e dividiu as responsabilidades com o marido. "Realmente, no inicio é bastante complicado. A gravidez virou a rotina do avesso", diz. “Quem assumiu grande parte do que normalmente a mulher que assume com os filhos foi o meu marido. Ter um parceiro foi importante para eu conseguir continuar na aviação”, conta.
Jaqueline tentava fazer escalas de viagens menores para estar sempre com os filhos, em Itu, onde vivem. Mesmo assim, sofreu pressão de familiares e amigos por estar deixando os gêmeos com o pai. “Mas eu era muito bem resolvida. Sabia que as crianças iam crescer e compreender”, diz. Os gêmeos agora têm 13 anos e não é raro que Jaqueline escute alguém próximo expressar um sentimento de pena pela suposta distância da mãe piloto, que faz questão de levá-los em suas viagens de trabalho durante as datas comemorativas. “Coitados nada! Meus filhos já foram dez vezes pra Disney. Vamos combinar que estão melhores que muitas crianças! Eu ficava dias inteiros com eles quando estava na cidade, muitas mães que trabalham oito horas por dia em uma rotina dita normal não podem fazer isso nunca”.
Não seguir uma rotina diária convencional não significa ser ausente, embora Jaqueline diga que já precisou abrir mão de uma série de datas comemorativas com a família. "Mas foi uma escolha da profissão. Poderia acontecer com outras", diz. Com quase 30 anos na aviação, Jaqueline diz que tem notado o interesse maior das mulheres pelo setor, mas que o ritmo ainda é lento até pela dificuldade de se estruturar financeiramente para ingressar na carreira. "Hoje eu tenho muitas amigas guerreiras, que passaram por essa mesma trajetória que eu e hoje estão muito bem", conta.
O Governo não oferece nenhum tipo de ajuda econômica para formar pilotos, e a maneira mais barata de ingressar na aviação é por meio da Força Aérea Brasileira (FAB). Neste caso, a pessoa precisa passar por um concurso que em geral é bastante difícil. Essa possibilidade para o público feminino, porém, é bem recente. Em 2008, há apenas 11 anos, o órgão recebeu as primeiras mulheres para o Curso de Formação de Oficiais Aviadores. No ano seguinte, pela primeira vez, uma dupla feminina comandou uma missão: as tenentes Joyce de Souza Conceição e Adriana Gonçalves, do Sétimo Esquadrão de Transporte Aéreo, decolaram de Manaus (AM) em um C-98 Caravan em direção a Parintins (AM). Também saiu desta primeira turma de mulheres a primeira pilota a comandar a aeronave presidencial brasileira. A militar Carla Borges pilotou pela primeira vez, há dois anos, o avião que transportava o ex-presidente Michel Temer. Agora, ela comanda a aeronave do atual presidente, Jair Bolsonaro.
Licenças emitidas pela Anac
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