O lobby da classe médica que influenciou a decisão de encerrar o programa
Ministério da Saúde abriu um canal direto com entidades médicas. Hermann Von Tniesehause, do CFM, comemora decisão, mas diz que órgão seguirá vigilante
Quase três meses depois de Cuba deixar a cooperação com o Brasil por conta de críticas do presidente Bolsonaro e ordenar o retorno de mais de 8.300 profissionais que atuavam no Mais Médicos, o Governo Federal decidiu estabelecer uma data para encerrar de vez o programa, criado em 2013 pela então presidenta Dilma Rousseff para garantir a assistência básica em municípios vulneráveis. Conforme o EL PAÍS antecipou na tarde desta segunda-feira, os profissionais contratados no edital para o Mais Médicos que está aberto deverão cumprir seus contratos de três anos, mas não haverá novas convocatórias. Para substituir o Mais Médicos, o Governo estuda um novo programa, com carreira federal para atrair profissionais aos municípios que em geral não geram interesse. O desfecho é uma vitória para as entidades de classe que representam os médicos brasileiros, que sempre se opuseram aos Mais Médicos e teceram pontes com o Governo Bolsonaro desde a campanha.
Os sucessivos adiamentos de prazos do atual edital já eram um prenúncio da influência do lobby da categoria nos rumos do programa. Desde o período de transição governamental, antes mesmo de Bolsonaro assumir formalmente o cargo, o novo Governo abriu um canal direto para debater políticas públicas com distintas entidades médicas, que já vinham pedindo o encerramento do programa e rejeitavam tanto a atuação de médicos sem diploma revalidado no país quanto a proposta de uma revalidação especial para a Atenção Básica que abarcaria os cubanos. “Há muito tempo o Conselho Federal de Medicina não tem uma relação de proximidade com o Governo Federal. A nova gestão abriu essa oportunidade para as entidades médicas”, diz o primeiro secretário do Conselho Federal de Medicina, Hermann Von Tniesehause. Ele conta que o governo tem compartilhado propostas e ouvido a classe médica, mas que isso não muda a vigilância e autonomia da entidade para avaliar as políticas nacionais de saúde.
No centro do impasse em relação ao programa Mais Médicos está a exigência do Revalida, exame exigido a todos os profissionais formados no exterior para o exercício da medicina no Brasil. O programa criado sob Dilma Rousseff era a única exceção no pedido de revalidação, pois a gestão petista argumentava que só assim, e com um convênio especial com Cuba, conseguiria atender populações de cidades distantes e da zona rural, que tinham, historicamente, dificuldade de fixar os médicos.
O CFM e outras entidades médicas sempre rejeitaram esse modelo. Von Tniesehause, do CFM, sustenta que o Revalida é fruto da necessidade de os médicos demonstrarem capacidade para atuar conforme o currículo e a realidade brasileira. Ainda em janeiro, o representante havia informado à reportagem que estava na pauta do Ministério da Saúde a criação de uma secretaria voltada para a Atenção Básica e a elaboração de um novo programa no qual a estratégia para fixar médicos nas cidades vulneráveis seria um plano de carreira ainda indefinido. "Continuamos com a nossa análise crítica [sobre o Mais Médicos] e esperamos que o Governo encerre de vez esse programa quando termine este último contrato, sem médicos devidamente revalidados, e faça um novo programa”, adiantou.
Na tarde desta segunda, Mayra Pinheiro, coordenadora do Mais Médicos, confirmou que o programa será substituído por um novo, também de provimento de profissionais em áreas vulneráveis que inclui carreira federal para atrair os profissionais, mas não deu detalhes sobre ele. Disse apenas que, em breve, o próprio ministro anunciará o novo programa. A sugestão do CFM é de que esse plano de carreira federal inclua apenas médicos com diplomas revalidados e que o profissional inicie em um local mais vulnerável e possa progredir em salário e cargo, migrando para municípios maiores ao longo da carreira.
O último edital do Mais Médicos — aberto no mês de novembro pelo Governo Temer em caráter emergencial — não exige a revalidação, mas os dois adiamentos nas chamadas para médicos formados no exterior soaram como um alerta a secretários municipais de Saúde, que atribuíram a demora para preencher as vagas à influência das entidades médicas na gestão federal. Desde que o edital foi lançado, em novembro do ano passado, há um esforço para que essas vagas sejam ocupadas por médicos formados no Brasil, que têm prioridade segundo a lei que criou o programa.
O Governo Temer chegou a fazer uma força tarefa e contatar os inscritos para estimulá-los a se apresentar nos municípios enquanto o Governo Bolsonaro abriu uma nova chamada e ampliou o prazo de apresentação desses profissionais. Ainda assim, 17% das vagas continuaram desocupadas. Agora, as 1.400 vagas remanescentes deverão ser preenchidas por parte dos 3.700 médicos brasileiros formados no exterior que tiveram as inscrições homologadas. Eles escolheriam os municípios de atuação nesta quinta e sexta, mas o Ministério da Saúde afirmou que haverá um novo adiamento em virtude do elevado número de inscritos no sistema. O novo cronograma será divulgado nesta quinta. Como o número de inscritos é muito superior às vagas, a expectativa do Governo é de que não sobrem vagas para os médicos estrangeiros, incluindo os profissionais cubanos que decidiram ficar no país após o fim da cooperação com Cuba.
Quando foi lançado, o edital de reposição das vagas do Mais Médicos tinha previsão de conclusão para o início de janeiro. Problemas no sistema de inscrições e mesmo a abertura da nova chamada para brasileiros provocaram alguns adiamentos durante o processo, que agora deveria ser concluído neste mês de fevereiro. A última mudança nos prazos para a escolha das cidades pelos médicos sem diploma revalidado foi anunciada pela coordenadora do Mais Médicos no final de janeiro. Na ocasião, ela explicou que o adiamento ocorreu porque o período de acolhimento desses profissionais aconteceria durante o Carnaval. “A mudança não causará nenhuma alteração na forma de escolher a lotação das referidas cidades pelos profissionais inscritos”, garantiu.
A justificativa dada à época, porém, já não convencia a alguns gestores municipais. “Acredito que é por pressões das entidades médicas”, disse o presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde (Cosems) do Amazonas, Januário Carneiro. O gestor chamou a atenção para o aumento no tempo de análise de documentos com os adiamentos e criticava o fato de o Ministério da Saúde ter demorado a publicar a lista das vagas remanescentes, algo que só deve ocorrer nesta quinta. Na última semana, a pasta publicou apenas a relação dos municípios interessados no programa, sem a quantidade de vagas disponíveis em cada um deles. O presidente do Cosems do Acre, Daniel Herculano Filho, também acredita que as entidades médicas têm influenciado para tentar forçar profissionais brasileiros a preencherem as vagas. "Isso já virou uma brincadeira, a população está sendo prejudicada ao extremo pela falta de médicos”, critica.
Médicos brasileiros formados no exterior e estrangeiros também já vinham manifestado em grupos de articulação no WhatsApp e Telegram o receio de que o edital fosse interrompido diante da aproximação entre a gestão e as entidades médicas. A decisão do Governo de encerrar o Mais Médicos, porém, não interrompe o edital em aberto. Os médicos que atuam pelo programa — bem como os que escolherão as vagas nos próximos dias — poderão continuar em seus postos de trabalho até o final de seus contratos, que têm duração de três anos.
Em entrevista ao EL PAÍS em dezembro do ano passado, Mayra Pinheiro já havia adiantado que estudava formas de reinserir os médicos cubanos que decidiram permanecer no Brasil no programa — uma promessa feita pelo presidente Bolsonaro quando Cuba anunciou o fim da cooperação —, inclusive com a possibilidade de um Revalida especial voltado para a Atenção Básica. A gestora, porém, sempre ressaltou que a nova gestão devolveria aos conselhos de medicina a prerrogativa de validar os diplomas e que as opções seriam discutidas com as entidades médicas. Desde o período de transição, tanto o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, quanto Mayra Pinheiro têm se reunido com representantes das entidades para discutir novas políticas e já anunciaram que os encontros devem ser frequentes nos próximos anos.
A classe médica, porém, nunca concordou com essas propostas que atenderiam aos cubanos e ajudariam o Governo a conter uma crise no atendimento, especialmente nas cidades desfalcadas. “Um Revalida apenas para a atenção básica está fora de cogitação pro Conselho Federal de Medicina, seja para médicos brasileiros formados no exterior ou para estrangeiros. Os médicos têm que cumprir as etapas obrigatória do Revalida. Não existe isso de fazer um exame especial”, afirmou Hermann Von Tniesehause no fim de janeiro. O exame, realizado pelo Inep, é feito em duas fases e não tem data certa para acontecer. A edição de 2017 do Revalida deve ter os resultados divulgados em fevereiro. Só depois o Governo anunciará as datas das próximas convocatórias.
No último mês, o Conselho Federal de Medicina publicou alguns levantamentos nos quais sugere que o Programa Mais Médicos tem servido para o corte de gastos dos municípios, já que o investimento em saúde não evoluiu conforme o aumento das receitas municipais nem a quantidade de médicos na atenção básica aumentou como se esperava. Segundo os cálculos feitos pela entidade, com dados do Ministério da Transparência, havia 47 mil médicos antes do programa, que contratou nos últimos anos outros 18 mil participantes. Hoje, há 54.525 médicos em atividade no segmento. “Era para ter 65 mil profissionais e tem 54 mil hoje, seja pela demissão de médicos pelas prefeituras porque a verba vinha do Governo Federal.
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