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De médico a vigia do posto, a vida dos cubanos à espera de um aceno de Bolsonaro

Ex-profissionais do Mais Médicos fazem serviços gerais enquanto sonham reintegrar o programa. Sem preencher vagas, Governo estuda fórmula para absorver caribenhos sem Revalida

Beatriz Jucá
Manuel Francisco Gallardo atende no município de Sena Madureira
Manuel Francisco Gallardo atende no município de Sena MadureiraArquivo pessoal

Durante cinco anos, o médico cubano Javier Gusmán (nome fictício) viveu uma rotina que mais parecia uma expedição. Tomava todos os meses um bote em uma cidade no Norte do Brasil para percorrer dois rios e sete aldeias indígenas, onde prestava atendimento por meio do Programa Mais Médicos. Navegava 11 horas seguidas até chegar na última delas e, durante os 15 dias que ficava pela região, atendia os pacientes onde dava — de consultórios improvisados ao chão da floresta. "Era complicado, mas era uma missão muito bonita", ele lembra. Não era fácil. Com uma estrutura mínima, tratava doenças tropicais que só conhecia dos livros. Perdeu as contas de quantas vezes precisou atender a pacientes que haviam sido perfurados por arraias na época de seca, quando baixa o nível da água dos rios. "Nesse período, aprendi muito sobre a cultura indígena, entendi como é viver da pesca e da caça. E vi ao vivo doenças que sabia como tratar, mas só tinha visto nos livros", conta.

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Já tem um mês e meio que a vida de Gusmán mudou drasticamente. Ele zapeava as dezenas de grupos que mantém no Whatsapp em um dia de folga, quando soube que o Governo cubano havia decidido encerrar a cooperação médica com o Brasil. Ficou desempregado em novembro, justo quando a esposa completava seis meses de gravidez, e não sabia sequer se poderia continuar no país sem ser considerado desertor por Cuba, onde vivem outros três filhos seus, de outro relacionamento. Dias depois de tomar ciência da decisão cubana, veio um pequeno alívio: a ilha permitiria a permanência de médicos que casaram com brasileiros no país. Poderia ficar com a nova família e seguir mantendo contato com os filhos cubanos. "Mesmo assim, tudo mudou na minha vida", ele diz.

Sem emprego, Gusmán precisou deixar a ampla casa de três quartos que dividia com a enteada e a esposa e mudou com a família para a casa da sogra, uma construção de madeira que, segundo ele, "quando chove, nem Deus consegue sair" por causa das enchentes. Mas não teve outro jeito, ficou impossível pagar os 900 reais de aluguel do imóvel sem os 3.000 reais de remuneração mais o auxílio moradia que ganhava por integrar o Mais Médicos. "A minha mulher vai dar à luz em fevereiro. Imagine a necessidade que estamos passando! Então falei com o secretário de Saúde da cidade pra ver se ele ajudava com qualquer emprego, porque a gente precisa comer", conta.

Há uma semana, Gusmán trabalha como vigia em um posto de saúde. Pela nova função, que envolve escalas noturnas de 12 horas, será remunerado com um salário mínimo. "Fiquei sem trabalho e agora limpo até chão, mas não tenho vergonha porque é digno e eu preciso", ele diz. Quando não está no posto, estuda para o Revalida, exame exigido para exercer a medicina no Brasil fora do programa federal, mas que ainda não tem data para acontecer. "A minha esperança é que o Ministério da Saúde abra o edital do Mais Médicos para os estrangeiros, no fim do mês. O Revalida não é de graça, custa caro, tem que viajar. Eu não tenho medo da prova, mas preciso trabalhar para ter o dinheiro e fazer", explica. Por enquanto, voltar para Cuba não é uma opção. "Tenho minha esposa aqui e ganho mais de vigia no Brasil do que de médico lá".

Trabalhar de zelador em um posto sem médico

O cubano Manuel Francisco Gallardo trabalhou dois anos como médico em um posto de saúde do município de Sena Madureira, no Acre. Depois que foi obrigado a deixar o Mais Médicos, passou a atuar como zelador em outra unidade de saúde da cidade, que está sem médico titular. No município, as três vagas deixadas pelos profissionais cubanos até foram repostas, mas outros médicos pediram demissão da Prefeitura e migraram para atuar em outras cidades pelo Mais Médicos. Enquanto as vagas municipais não são preenchidas, os médicos se revezam entre as quinze equipes da atenção básica. "Eu nasci para atender as pessoas. Se eu dissesse que estou feliz, estaria mentindo. É difícil ser médico, estar no posto e ver a população sofrer sem poder fazer nada", diz Gallardo.

Médico cubano faz atendimento na zona rural de Sena Madureira, no Acre.
Médico cubano faz atendimento na zona rural de Sena Madureira, no Acre.Arquivo Pessoal (Secretaria de Saúde)

Durante o período que esteve no programa federal, o médico diz que não teve qualquer dificuldade em se comunicar com a família em Cuba, a quem enviava 200 a 300 dólares a cada dois meses. Agora, com o salário de vigia, já não é possível fazer qualquer transferência. "Estou agradecido porque sei que este não é um emprego normal, é uma ajuda. Mas o meu objetivo é trabalhar como médico. Não tenho medo do Revalida. E quero trabalhar em qualquer lugar dentro do Brasil", diz. Casado com uma brasileira que conheceu enquanto comprava um celular, o médico não cogita retornar ao seu país. "As pessoas acham que cubano casa pra ficar aqui. Eu estou sem emprego de médico, mas fiquei no Brasil por amor", diz.

Por enquanto, Gallardo se limita a cumprimentar os pacientes no posto onde trabalha de vigia. Vez por outra, alguns deles lhe perguntam quando voltará a consultar. A resposta sai quase mecânica: "Estou esperando o Ministério da Saúde". Nos dias 30 e 31 de janeiro, os estrangeiros formados no exterior poderão tentar ocupar as vagas que fiquem remanescentes do edital lançado pelo Governo Federal no último mês de novembro.

O médico Adrian Gomez gerencia grupos no Whatsapp que reúnem centenas de profissionais cubanos que decidiram permanecer no Brasil. Ele conta que a esperança geral é de que o presidente Jair Bolsonaro cumpra a promessa de asilo que fez quando Cuba anunciou o fim da cooperação com o Brasil. "Mas a vida do médico cubano que tem família no Brasil é de incerteza porque a gente não sabe o que pensa o novo Governo. É ruim saber que tem tanta gente precisando de médicos, e nós estamos desempregados ou trabalhando em farmácia, de vigia, de pedreiro... A minha maior esperança agora é a dra Maya Pinheiro", diz.

Adrian se refere à nova coordenadora do Mais Médicos, que tem contatado os médicos cubanos por meio do Telegram e estimulado esses profissionais a ocuparem as vagas recusadas pelos médicos brasileiros. O EL PAÍS teve acesso a um áudio no qual Mayra Pinheiro — que participou de protestos contra os primeiros cubanos do programa em 2013 — afirma, sem dar maiores detalhes, que o Governo estuda fazer um Revalida voltado apenas para a Atenção Básica, além de uma Medida Provisória que garanta a permanência dos médicos cubanos no programa.

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