O retrato de uma cidade para onde nenhum médico brasileiro quer ir
Sem conseguir atrair médicos para substituir cubanos, Guaribas, no Piauí, encaminha pacientes, que enfrentam viagem e estrada de terra para conseguir atendimento
Uma única estrada chega até a cidade de Guaribas, no extremo sul do Piauí. Pelo menos 50 quilômetros de terra batida separam o município — que estreou o Bolsa Família há 15 anos por ser na época o mais pobre do país — da vizinha Caracol. Com a dificuldade de acesso e a frágil economia interna comum às pequenas cidades do sertão nordestino, as poucas possibilidades de trabalho ali se resumem aos cerca de 400 cargos da prefeitura, ao modesto comércio local e à agricultura de subsistência. É significativa a importância do serviço público de saúde nesta comunidade onde 62% dos moradores dependem diretamente da média de 282 reais que o Governo federal transfere todo mês para cada família cadastrada no Bolsa Família.
Até duas semanas atrás, dois médicos cubanos se revezavam entre os três postos de saúde da cidade para garantir o atendimento a uma população de 4.401 habitantes. Junto com enfermeiros, técnicos e agentes de saúde, eles conseguiram assistir a 82% das 876 famílias que necessitam de acompanhamento periódico pelo Governo por terem crianças de até sete anos ou gestantes, um desempenho considerado "muito bom" no relatório publicado em outubro pelo Ministério do Desenvolvimento Social. Os dados são positivos, mas a cidade ainda enfrenta uma série de desafios na atenção básica. A taxa de mortalidade infantil média na cidade — de 17 óbitos para 1.000 nascidos vivos — é superior à média nacional (14). Além disso, apenas um terço das casas tem esgotamento sanitário adequado, uma estrutura fundamental para evitar doenças como diarreia, hepatite A e verminoses, geralmente tratadas e prevenidas justamente com a ajuda dos profissionais da atenção básica.
O fim da cooperação de Cuba no programa Mais Médicos em novembro deixou a cidade, que dependia exclusivamente dos médicos cubanos, desassistida. Guaribas é um dos 31 municípios que não despertou o interesse dos profissionais brasileiros. Uma médica ainda chegou a ser selecionada para uma das vagas, mas informou a desistência à prefeitura dias depois da inscrição. A segunda vaga sequer chegou a ser cogitada por outro candidato. Catalogado na condição de extrema pobreza e 650 quilômetros distante da capital Teresina, o município segue com suas duas vagas no primeiro edital do programa, cujas inscrições se encerraram nesta sexta-feira. As condições urbanísticas da cidade não ajudam a atrair os profissionais: segundo o IBGE, as vias públicas não têm estrutura de urbanização mínima adequada, com a presença de bueiro, calçada, pavimentação e meio-fio.
"Aqui não tem mais médico, só enfermeiro. Tiraram os médicos. Por que fizeram isso? Aqui já é tudo tão difícil, aí ainda tiram o pouco que a gente tem", se queixa a aposentada Amélia Alves Rocha, de 67 anos. Ela diz que nas últimas semanas acompanhou o marido Nilho Alves Rocha, de 75 anos, no posto para conseguir o remédio que ele toma para controlar a hipertensão, mas sem médico para dar a receita, não conseguiu a medicação gratuitamente. O casal criou sete filhos graças ao Bolsa Família e hoje vive da aposentadoria e da mandioca que plantam na roça. Com a seca que historicamente assola a região — Guaribas é um dos municípios que decretaram estado de emergência por esse motivo neste mês — nunca houve muita expectativa de melhorar de vida. "Antes ninguém tinha nada aqui, aí Deus preparou esse Bolsa Família. O cartãozinho salvou a gente que tinha muito filho porque a vida aqui sempre foi muito complicada. As coisas são caras, ainda hoje a gente tem que completar o aposento com o pouco que planta na roça", conta.
Amélia conta que a ausência de médicos na cidade é um problema, mas demonstra resiliência ao argumentar tempo pior era aquele em que a família dormia nos colchões que eles mesmos faziam com plásticos recheados do capim colhido na serra. "Perdi uma filha de seis anos e uma neta porque elas brincando tocaram fogo num colchão desses. Morreram as duas queimadas. Ruim mesmo era naquele tempo que a gente tinha que sair por aí no lombo de um jumento atrás de socorro nas outras cidades. Hoje tem até transporte pra levar", conta.
Enquanto as vagas do Mais Médicos não são substituídas, enfermeiros e agentes de saúde das duas equipes de atenção básica prestam um atendimento mínimo à população. "A gente se vira como pode. Tem muita coisa que só o medico pode fazer, mas a gente segue acompanhando as crianças e as gestantes que fazem pré-natal, por exemplo. Nossa sorte é que temos aqui um serviço bem estruturado, então os prejuízos até diminuem, mas é complicado", diz o enfermeiro que coordena a Atenção Básica no município, Francisco Júnior.
Três horas de viagem por um atendimento
Quando esses profissionais identificam serviço de urgência ou situações que não podem solucionar sem a presença do médico, os pacientes são encaminhados para a cidade que é referência para os 20 municípios da região da Serra da Capivara. Eles enfrentam quase três horas de viagem e percorrem mais de 100 quilômetros (a metade deles de estrada carroçal) até chegar ao Hospital Regional ou à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de São Raimundo Nonato. "A situação é a seguinte: a gente já é acostumado. Médico é bom porque a gente se consulta, mas se não tem o jeito é ir pra São Raimundo quando o problema piora. É muito complicado, mas dá pra gente ir vivendo", se conforma Amélia.
Outra opção, dizem moradores de Guaribas, é tentar atendimento em Caracol, cidade mais próxima, a 50 quilômetros do município. No entanto, moradores dizem que a situação lá também não está fácil. "Na região toda a situação tá horrível. Caracol perdeu três médicos, uma cubana e dois brasileiros que se inscreveram no programa e foram pra outras cidades", conta o agricultor Raimundo Ribeiro. O EL PAÍS tentou confirmar os números com a Prefeitura de Caracol, mas não obteve resposta.
O fato é que a dificuldade de preencher as vagas deixadas pelos médicos cubanos e mesmo a migração de profissionais que já atuavam na atenção básica sob um regime de contrato com as prefeituras para outros municípios do programa Mais Médicos já repercute na UPA e no Hospital Regional de São Raimundo Nonato. "A demanda tem aumentado muito com essa dificuldade na atenção básica. Temos recebido muitos casos de gripe e febre que seriam facilmente resolvidos no posto de saúde", afirma a diretora do hospital, Nilvania Nascimento. Na atenção básica, a cidade polo também sofre com a crise do Mais Médicos: teve seis vagas abertas no primeiro edital.
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