“A crise do Mais Médicos pode gerar uma emergência sanitária”
Pesquisador Mateus Falcão, que participou da implementação do programa, diz que parceria com Cuba garantiu médico de forma emergencial, mas ação não garantiu a fixação do profissional nem a infraestrutura adequada
O pesquisador Mateus Falcão acompanhou de perto a implantação de um dos programas federais mais controversos na área da saúde. Mestre em Saúde Pública e doutorando em Saúde Global pela USP, ele integrou o corpo técnico do Ministério da Saúde nos primeiros três anos do Mais Médicos, criado em 2013 durante o governo da ex-presidenta Dilma Rousseff sob o argumento de suprir a carência de profissionais nos municípios brasileiros, especialmente nas áreas mais vulneráveis. Em cinco anos, o programa importou milhares de médicos cubanos, que para exercer a profissão no país não teriam que fazer o Revalida, uma prova que valida o diploma dos formados no exterior para o trabalho no Brasil. Apesar das controvérsias da cooperação com Cuba, Falcão avalia que o programa cumpriu o papel emergencial de garantir médicos à população, mas pondera que não conseguiu resolver dois eixos fundamentais para a promoção da atenção básica: fixar os médicos e garantir a infraestrutura adequada nas Unidades Básicas de Saúde (UBS).
Na entrevista a seguir, ele conta bastidores da implementação do programa, comenta as opções estudadas pelo Governo brasileiro para além do acordo com Cuba e avalia os percalços no desenvolvimento do programa. Para ele, o recorde de inscrições no edital aberto pelo Ministério da Saúde neste mês para substituir os profissionais cubanos após o fim da cooperação (33.837, até a última sexta-feira) não exclui o risco de que milhares de pessoas fiquem desassistidas. Ao avaliar o histórico do programa, Falcão diz que geralmente os médicos com CRM do Brasil costumam se apresentar nos municípios nos primeiros dias e não crê que o ritmo de homologações cresça o suficiente até o dia 14 de dezembro, prazo final para a apresentação dos selecionados.
Até o momento, apenas 39% dos 8.401 profissionais aptos para atuação imediata se apresentaram, de fato, aos gestores municipais. Segundo o Ministério da Saúde, cerca de 200 profissionais já informaram aos municípios que desistiram de ocupar os postos. Essas vagas serão repostas no sistema de inscrição nesta quarta-feira. Além disso, o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) alerta que muitos profissionais que já atuavam na atenção básica estão migrando para outras cidades pelo Programa Mais Médicos, cuja bolsa de 11.000 reais mais ajuda de custos entre dois e três mil reais supera o salário oferecido pela maioria das prefeituras do Norte e Nordeste. Segundo a entidade, cerca de 40% dos profissionais já alocados pelo Ministério da Saúde estão nessa situação. Os dados mostram que, na prática, grande parte dos profissionais estão sendo apenas remanejados e que vagas na atenção básica podem seguir ociosas.
Pergunta. O que avançou com a implementação do Mais Médicos no Brasil?
Resposta. O programa surgiu de uma demanda da Frente Nacional de Prefeitos. Eles pediam que o Governo federal respondesse a uma demanda básica, que é a presença do médico. Fizeram a campanha Cadê o médico? porque as prefeituras ofereciam salários de até 22.000 reais e não preenchiam as vagas. Infelizmente algumas não pagavam e aí o médico não ia. Também tinha casos em que não aparecia ninguém interessado. Com o edital do Mais Médicos, os profissionais começaram a chegar nesses municípios. Demoramos um ano para ter certeza, com indicadores, de que o programa estava funcionando. Mas nos primeiros meses, em fevereiro e março de 2014 (o programa começou em outubro de 2013), a gente já tinha dados positivos. Tivemos o maior aumento das notificações da vigilância epidemiológica (casos de dengue, chikungunya, zika), diminuição da mortalidade infantil e aumento da prevenção contra as doenças crônicas (como diabetes e hipertensão), que é um dos principais desafios que vamos enfrentar nos próximos anos.
P. Mas uma reportagem da Folha de S. Paulo mostra telegramas do Governo cubano que indicam que o programa foi uma sugestão de Cuba…
R. Eu ainda estou tentando ver se esses telegramas são realmente verdadeiros ou não, porque o telegrama quando chega no Brasil é carimbado e vai pro Ministério das Relações Exteriores. Não vi nada disso ainda e não sei afirmar. Mas não tem problema Cuba ter sugerido isso antes, 30% do PIB do país é da exportação de serviços médicos. Isso nunca foi um dado escondido pelo Governo cubano, que tem cooperação com mais de 60 países. Somos o primeiro deles que Cuba de fato desiste. Oferecer o serviço não é um problema, e a forma como o Governo cubano gasta o dinheiro não é da nossa ingerência.
P. A vinda dos médicos cubanos era realmente necessária naquele momento? Não havia outra alternativa?
R. A gente já tinha estudado que a carência de profissionais no Brasil era muito grande. O que a gente fez? Vamos lançar um edital dando prioridade aos médicos brasileiros. É importante notar que no primeiro edital, de 2013, a quantidade de inscritos era bem superior à quantidade de vagas, mas poucos realmente apareceram nos municípios. Abrimos o edital para médicos brasileiros formados no exterior e também para intercambistas de outros países, mas ainda assim não supriu a quantidade de vagas nos 4.058 municípios que solicitaram profissionais. Foi aí que a cooperação entrou de maneira mais forte, como previa a lei que rege o programa. O único país que oferece esse tipo de serviço (de exportação de profissionais médicos) é Cuba. As outras alternativas seriam de longo prazo, e nós tínhamos naquele momento um caráter emergencial.
P. Quais eram essas outras alternativas? O Governo chegou a estudar outras opções que não fosse a cooperação com Cuba?
R. Sim. As outras alternativas de longo prazo eram a mudança no currículo de graduação de Medicina, que teria um impacto importante na formação dos médicos, mas levaria mais de seis anos pelo menos. Então seria muito tempo sem assistência à população. Também propusemos reestruturar, até 2018, o número de vagas para estudantes de medicina em regiões de alta vulnerabilidade, porque é assim que você fixa o médico em determinado local. Haveria o aumento de 11.500 vagas com a interiorização de cursos. E a tentativa de universalização da residência, sem entrar em qual especialidade. Esse é um processo de longo prazo. Austrália, Canadá e Inglaterra recrutam muitos médicos. O exemplo da Austrália é mais emblemático porque o formato de contratação é semelhante ao nosso, mas eles não fizeram cooperação com Cuba. Lá, você se inscreve no site, faz uma prova de inglês online e depois uma formação na Austrália. Esse programa tem um histórico de 20 anos e mesmo assim ainda não resolveu a questão do provimento, que inclui a proporção de médicos por habitante. O Brasil tinha o caráter emergencial.
P. O programa conseguiu ir além de suprir essa demanda emergencial de médicos? Conseguiu melhorar em infraestrutura, por exemplo?
R. A lei tem três eixos: o provimento emergencial (que é o Mais Médicos em si, a garantia da presença do médico), ampliação das vagas de graduação em medicina e residência e a melhoria da infraestrutura. De fato, eu não posso garantir o médico para aquela região e não garantir uma infraestrutura básica de equipamentos e instrumentos para coleta de exames. Foi criado o programa Requalifica UBS, que fazia repasses anuais para as unidades. Houve esse investimento.
P. Quais as dificuldades que vocês enfrentaram nos primeiros anos do programa?
R. Toda política pública tem percalços, o que não significa que haja corrupção ou erro técnico. Na saúde, a gestão é muito dinâmica. As dificuldades existiram especialmente pelo tamanho do nosso país, com regiões muito diferentes entre si. Se não houver um diálogo constante com os Estados e os municípios, não tem como dar certo. Algumas dificuldades que tivemos no início permanecem até hoje: a fixação de longo prazo dos médicos nos municípios, que seria resolvida com a criação de universidades no interior, e a questão da infraestrutura (dos postos de saúde). Para quem está em São Paulo, parece fácil resolver. Mas no Marajó, por exemplo, só é possível construir no período de seca, durante seis meses do ano. Então tem que observar as muitas graduações de cada região.
P. O senhor falou das especificidades regionais, que dificultaria uma gestão federalizada sem o constante diálogo com estados e municípios. O que muda na gestão da atenção básica nas regiões do Brasil?
R. Por exemplo, era complicado cumprir todas as ações do Requalifica UBS na região Norte porque lá chove muito. Você tem que estar atento até à meteorologia, então não se trata só de gerir a saúde. No Nordeste, é preciso entender bem como funciona a estratégia da saúde da família porque lá é onde temos uma consolidação dessa estratégia forte, com médico, enfermeira, agente comunitário de saúde dentro de uma equipe que cuida de um determinado número de pacientes em um território. Nas regiões Sudeste e Sul, funcionam as UBSs tradicionais, com um clínico geral, um ginecologista e um obstetra. Em São Paulo, a gestão tem tentado ampliar para a estratégia saúde da família e já chegamos a 50%-50%. No início, a proporção era 30%-70%. Qual o problema da UBS tradicional? Ela trabalha mais com o tratamento e não com a prevenção. Além disso, quando você sai dos grandes centros, temos no Brasil muitos vazios populacionais. Como garantir o atendimento na atenção primária para famílias que moram a muitos quilômetros de distância entre si? Isso acontece ao redor do país inteiro, e é um desafio.
P. O Governo federal tentou de alguma maneira atrair médicos brasileiros para ocupar as vagas em vez dos profissionais cubanos?
R. Isso foi acontecendo naturalmente. Paramos de chamar médicos estrangeiros e reduzir gradualmente os médicos cubanos a partir de 2015. O problema é que os médicos brasileiros se apresentavam, mas tentavam negociar a carga horária. A gente tinha editais de três em três meses porque não conseguíamos manter o médico em uma cidade por mais de 90 dias. Deixávamos abertos os editais para reduzir o tempo de desassistência da população. A fixação é um desafio. O edital diz que o contrato é de três anos, mas é difícil fazer a pessoa ficar no município por esse tempo. Não fazia sentido a gente manter o programa tanto tempo pela cooperação com o governo cubano, o Brasil tinha que se tornar autônomo. A gente tinha essa noção, mas a transição tinha que ser tranquila e não abrupta como foi agora.
P. O Ministério da Saúde diz que 98% das vagas abertas já têm médicos aptos a trabalhar. Pela sua experiência, acredita que as mais de 8.000 vagas deixadas pelos cubanos serão de fato ocupadas?
R. É importante perceber o percentual de médicos que já se apresentaram nos municípios, que é muito baixo [24,8% dos 8.376 médicos aptos se apresentaram aos gestores]. Grande parte dos profissionais que estão se apresentando já trabalhavam no SUS e estão migrando para o Mais Médicos porque existe uma estabilidade maior. No final, estamos fechando um buraco e destapando outro. Até o edital fechar, não acho que vamos garantir a assistência integral. Temos quase quatro vezes o número de inscritos para o número de vagas, mas pela nossa experiência, os médicos costumam se apresentar logo nos primeiros dias. Não dá pra prever se agora vai haver uma mudança nisso. Enquanto isso, parte da população já está sem médico [pela saída dos cubanos]. Estamos vivendo uma crise assistencial que pode gerar uma emergência sanitária. Quem tem doenças crônicas, por exemplo, precisa da receita do médico para seguir o tratamento. Se eu quebro o tratamento de forma abrupta, posso ter problemas no agravamento dessas doenças, como diabetes, hipertensão e asma a depender da época do ano. Também pode aumentar a incidência delas. A garantia da assistência vai depender muito de como o governo vai guiar essa questão, mas pela minha experiência não sou muito otimista. Não torço contra, mas observo os fatos.
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