Vale faz doações às famílias, que cobram: “Não quero dinheiro. Quero meu irmão de volta”
Empresa inicia cadastro para doação de 100.000 reais aos parentes das vítimas. Ainda há 238 desaparecidos em Brumadinho
A mineradora Vale iniciou nesta quinta-feira o cadastro de familiares das vítimas da tragédia de Brumadinho que devem receber uma doação de 100.000 reais oferecida pela companhia. Durante toda a tarde, alguns parentes procuraram o posto de cadastro na Estação de Conhecimento da Vale, onde a empresa montou uma espécie de QG para catalogar as vítimas e acolher parentes. Mas a família de Josué Oliveira da Silva, 27, soldador da Vale e até o momento dado como desaparecido, não quis colocar os pés na sala de cadastramento. “Ninguém aqui quer dinheiro”, disse o irmão Paulo Renato Oliveira da Silva, 29, operador de máquinas. “Queremos ele de volta”.
Nesta sexta-feira faz uma semana que toda a família Oliveira da Silva – pai, mãe, irmãos e tias – passa o dia inteiro neste local. Saem cedinho da cidade de Ibirité, a 30 quilômetros de Brumadinho, e só voltam para casa à noite. “Passamos o dia inteiro aqui, desde sexta-feira, esperando alguma notícia dele”, diz o irmão Paulo Renato. “Mas a única notícia que temos é quando chegamos em casa a noite e ligamos a televisão”. Ele afirma que a vida da família toda está paralisada enquanto esperam por informações. “Ninguém está trabalhando, não dormimos direito, não fazemos mais nada”, diz. “Mas enquanto não tivermos notícia dele, não iremos embora”.
Enquanto o trabalho do resgate corre contra o relógio em busca das vítimas dessa tragédia que já tem sido classificada como o maior acidente de trabalho da história do país, a Vale, cujo presidente admitiu nesta quinta-feira que as sirenes de alerta de risco não tocaram, tenta tomar medidas emergenciais para tentar amortecer esse impacto. Na quarta-feira, o porta-voz da companhia, Sergio Leite, anunciava as doações como uma “forma de estar solidário com a dor”, ao ser questionado se a medida era uma maneira de a Vale se responsabilizar pelo ocorrido. No mesmo dia, o tenente Pedro Aihara, porta-voz do Corpo de Bombeiros, afirmava que não havia previsão de encerrar as buscas por mortos e desaparecidos. Até o momento, 110 pessoas morreram e 238 estão desaparecidas.
A doação está prevista, até o momento, para 316 pessoas que fazem parte de uma lista de mortos e desaparecidos, entre funcionários da Vale, de empresas terceirizadas e moradores da comunidade. Para requerer o dinheiro é preciso fazer um cadastro e aguardar 48 horas para a validação das informações. Depois disso, a empresa promete depositar em conta bancaria em até três dias úteis a quantia. Neste primeiro dia, 45 pessoas foram cadastradas. Mas para a família Oliveira da Silva não faz sentido receber essa doação se ele ainda não foi encontrado. “Enquanto ele não aparecer, não vamos fazer nada”, diz o irmão, o único disposto falar com a reportagem. “Temos muita esperança de que ele esteja vivo. Muita gente correu para a mata, os bombeiros precisam procurar lá também”.
Neste QG montado pela Vale, pouco antes da entrada de Brumadinho, o clima entre os familiares era meio parecido com o da família Oliveira da Silva. Um pai de uma funcionária da empresa, de 25 anos e que ainda está desaparecida, ao ser lembrado por um voluntário de que o cadastro começaria nesta tarde, respondeu que já sabia, mas não estava pensando nisso agora. Ainda os que fizeram o cadastramento neste primeiro dia pareciam realizar mais um procedimento burocrático. “Ninguém aqui está preocupado com dinheiro”, afirmou, na entrada da sala do cadastro, o pedreiro João Alves Neto, 43. A mulher dele, Kátia Aparecida da Silva, trabalhava no refeitório e estava, até o fechamento desta reportagem, ainda desaparecida. “Ela comentava que tinha medo de trabalhar lá por causa da barragem”, afirmou ele. “Não foi um fato inesperado”. Pai de três filhos, ele afirma que, com o passar do tempo, a esperança de encontrar a mulher com vida está diminuindo. “A esperança está dando lugar para a tristeza”, afirmou.
Não é indenização
Para Camila Assano, do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, essa doação proposta pela Vale não pode ser deduzida das indenizações futuras que a empresa deverá pagar. “Qualquer anúncio ou medida agora é de caráter emergencial e não pode ser confundido com as indenizações”, diz. “Essa doação abarca mortos e desaparecidos, que é a maior violação, mas existem muitas outras violações que virão à tona: setores perderam fontes de renda, pessoas perderam suas casas, a saúde da população está em risco”. Ela ressalta a importância de a Vale ouvir, de fato, a comunidade, para poder saber quais são as reais demandas, antes de pensar em medidas. “Por um lado, é importante atender às necessidades, mas é preciso entender quais são essas necessidades.”
Em outra ponta da tragédia, o diretor executivo de finanças e relações com investidores da Vale, Luciano Siani, anunciou nesta quinta-feira, que a empresa fará uma doação também ao município. O valor é estimado em 80 milhões de reais e será liberado ao longo dos próximos dois anos. A quantia é uma estimativa do que a cidade arrecadaria com a exploração de minério no período, de acordo com ele, que também ressaltou que não se trata de uma indenização, e sim uma doação.
Ao longo do dia, voluntários prestam apoio psicológico e social para quem chega aos centros de acolhimento da cidade. Uma semana depois da tragédia, uma equipe de psicologia do hospital privado Albert Einstein, cuja vinda fora anunciada pela Vale no meio da semana, ainda não chegou e não há previsão de quando chegará para prestar atendimento. Paulo Renato Oliveira da Silva que, além da oferta de doação, não recebeu nenhum tipo de apoio até o momento. “Pediram para virmos aqui para colhermos informações, mas quando chegamos, não tem informação nenhuma”, disse. Informado sobre os psicólogos de prontidão, negou com a cabeça que gostaria de ser atendido, e disse: “Da Vale eu não quero nada. Quero só meu irmão de volta”.
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