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Menos latrocínios e mais mortes por policiais. Qual é o legado da intervenção no Rio?

Ação chega ao fim com resultados contraditórios, como recorde de mortes por intervenção policial. Mãe de Marcus Vinícius, morto com uniforme escolar, luta para provar que filho foi mais uma dessas vítimas

Bruna Silva segura o uniforme da escola de seu filho, Marcos Vinícius, morto neste ano durante operação na Maré.
Bruna Silva segura o uniforme da escola de seu filho, Marcos Vinícius, morto neste ano durante operação na Maré.Fernando Souza
Felipe Betim

“Neste ano não tem Natal nem réveillon. Está faltando o meu filho. Em janeiro só piora, porque em fevereiro ele faria 15 anos". As palavras são de Bruna da Silva, mãe de Marcos Vinícius, um adolescente de 14 anos assassinado durante uma operação policial no Complexo da Maré em 20 de junho enquanto ia para a escola. Outras seis pessoas morreram naquele dia, durante o qual a Polícia Civil usou uma aeronave blindada para fazer voos rasantes e atirar, espalhando pânico entre os moradores. Desde então os dias de Bruna, de 36 anos, tem sido de luto e luta. Ela está segura, com base no depoimento de seu próprio filho antes de morrer e de outras testemunhas, que foi um policial quem apertou o gatilho. "Mexeram com o filho da mãe errada. A parte da tristeza é só saudade mesmo, a gente não sabe administrar ela. Mas a luta não para".

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A morte de Marcos Vinícius, que fez com que a Prefeitura de Marcelo Crivella abrisse a porta de seu palácio para um funeral, foi um dos episódios que mais marcou o período da intervenção federal no Rio de Janeiro. Decretada no dia 16 de fevereiro pelo presidente Michel Temer, está prevista para acabar no dia 31 de dezembro e não será renovada pelo novo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. Ela se aproxima de seu fim sem que esteja claro qual legado deixa —ainda que autoridades falem em uma reestruturação dos órgãos policiais, sucateados ao logo do tempo — e sem desvendar quem executou a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes em março deste ano e os motivos do crime político que abalou todo o país.

Além disso, as mortes cometidas por policiais do Estado se multiplicaram ao longo deste ano, segundo dados oficiais: foram 1.444 mortes de janeiro até novembro, segundo os dados divulgados nesta terça-feira do Instituto de Segurança Pública (ISP), autarquia vinculada à Secretária de Segurança Pública. É o maior número de mortes desde que se iniciou a série histórica, em 2003, e um aumento de 39% com relação ao mesmo período de 2017, quando foram registradas 1.042 ocorrências. Com os dados de dezembro, ainda não computados, a cifra deve facilmente ultrapassar as 1.500 mortes.

Não está claro se a morte de Marcos Vinícius já foi computada pelos ISP como fruto de uma intervenção policial, já que, segundo explicou a Polícia Civil, o caso aguarda a conclusão de laudos técnicos. "Várias testemunhas foram ouvidas e os policiais igualmente já prestaram depoimentos. Assim que houver a juntada dos laudos técnicos será agendada a reprodução simulada dos fatos, medida imprescindível para levantar a origem dos disparos de arma de fogo que atingiram as vítimas", explicou a corporação em nota ao EL PAÍS. Contudo, o advogado João Tancredo, que cuida do caso para a família, afirma que houve uma tentativa de abafar o caso por parte da polícia e de culpabilizar traficantes pelo tiro que matou Marcos Vinícius. Ele também tenta que o Estado seja reconhecido como culpado e pague algum tipo de indenização para a família.

O EL PAÍS solicitou uma entrevista com o interventor federal, o general Walter Braga Netto, e o secretário de Segurança Pública, o general Richard Nunes, para falar do balanço da ação, mas não obteve resposta. Em nota, o Gabinete de Intervenção Federal destaca que os dados de março a outubro deste ano indicam, se comparados com o mesmo período do ano anterior, uma redução em alguns índices de criminalidade e que as metas da intervenção federal foram atingidas. "Nos últimos oito meses, a redução dos casos de roubo seguido de morte (latrocínio) superou o triplo da meta: 35,26% no período, quando a previsão era de 10%. Já o roubo de cargas caiu 19,22%, quase o dobro do que era pretendido, 10%", destaca o gabinete. "As ações de combate ao roubo de veículos também tiveram resultados satisfatórios — queda de 8,20% contra 8% planejados.Também superou a previsão no consolidado o índice roubo de rua (que inclui roubo a pedestre, em coletivo e de aparelho celular). A meta foi de 5% e a queda atingiu 7%", acrescenta. Já a letalidade violenta, admite o gabinete, cresceu 2,58% entre março e outubro, comparado ao mesmo período no ano passado. "O Plano estratégico fez uma previsão inicial de de redução em até 9% até o fim da intervenção. O índice registrou a primeira queda do período no mês de outubro. A redução foi de 15% quando comparado com outubro de 2017", destaca.

A pergunta que fica entre os moradores das comunidades é a que preço esses resultados foram alcançados. Faz três meses que Bruna, a mãe de Marcus Vinícius, parou de trabalhar como doméstica. Seu marido Gerson continua fazendo bico de pedreiro, mas o casal depende de ajuda para manter a casa e sustentar a filha Vitória, de 13 anos. "Parei porque, quando eu saio de casa, eles [os policiais] ficam me coagindo", conta. Em julho, o EL PAÍS presenciou Bruna correndo de uma viatura e dois policiais, que a perseguiam em uma das entradas do Complexo da Maré, onde havia marcado uma conversa com este jornal. Depois do episódio, ela relata ter mudado de celular, após descobrir que seu outro número estava grampeado, e outros casos de coação. "Eu estava no ônibus quando uma viatura veio, avançou na frente e mandou encostar. Dois PMs subiram, um foi até o motorista e o outro ficou de frente para mim com a arma apontada para o meu lado", conta. "Eles querem se mostrar presentes onde estou. Se eu estou no ponto de ônibus, eles param no ponto. É só eu pisar na avenida Brasil que eles dão duro em mim e no meu esposo", acrescenta a mulher, que garante nunca ter recebido "uma dura" de policiais antes da morte de seu filho.

Marlene, mãe de Deivison Faria de Sousa, mostra foto de seu filho e seu neto.
Marlene, mãe de Deivison Faria de Sousa, mostra foto de seu filho e seu neto.Fernando Souza

Desde então ela vem dando entrevistas, participando de atos na rua e protestando contra a violência do Estado órgãos públicos. Transformou-se, como ela mesmo admite, em uma das vozes de sua comunidade. "Se eles estão incomodados comigo, é porque estou no caminho certo. O que aconteceu com meu filho não pode mais acontecer com criança nenhuma aqui. Eles falam que todas são bandidas, mas nós somos moradores, temos o direito de estudar, de ir para a escola", afirma Bruna, que leva sempre consigo o uniforme ensanguentado e a mochila de seu filho.

Outro caso que marcou o período da intervenção foi o de Deivison Faria de Sousa, um rapaz de 28 anos morador da Rocinha que segurava no colo seu filho quando foi baleado e morto. O crime ocorreu no dia 29 de março, em um período especialmente conturbado na favela que resultou na morte de mais de uma dezena de moradores. O ápice ocorrera dias antes, no dia 24, quando a Rocinha vivenciou uma chacina cometida por policiais que acabou com a vida de ao menos oito moradores —entre eles estava o dançarino Matheus da Silva Duarte Oliveira, de 19 anos, que recebeu um tiro nas costas.

As investigações do caso Deivison se encontram no mesmo patamar do caso de Marcos Vinícius, segundo informou a Polícia Civil. Em meados de maio, o EL PAÍS visitou a família do rapaz e a casa onde estava quando o crime ocorreu. Na ocasião, as palavras de seu irmão, Diogen Farias de Moura, vieram como um desabafo: "Passa na TV direto que a Rocinha está em guerra desde setembro [de 2017, quando duas facções se enfrentaram]. Mas quem mora aqui sabe: a Rocinha só entra em conflito quando a polícia entra. A guerra que está aqui é a da polícia. E muitas vezes não é nem operação. Eles chegam, param o carro ali embaixo e saem correndo que nem uns doidos, fazendo a barbárie", contou. "Naquele dia, eles subiram o escadão correndo e já efetuaram o disparo. Não havia confronto".

Deivison, que se mantinha fazendo bicos, era o caçula de quatro irmãos, trazidos pela mãe Marlene de Pernambuco quando ainda eram crianças. Era uma época de paz, destaca a matriarca da família. Na quinta-feira de 29 de março, ele acabara de voltar de um dia de pescaria com seu padrasto e um dos irmãos. Já de banho tomado após limpar os peixes do dia, levou seu filho, o pequeno Taylon, então com apenas seis meses, para a casa da mãe, que fica no alto do morro. Sem camisa, segurava ele no colo na varada da casa, ao lado do irmão do Diogen e outros amigos. Três balas foram disparadas. Uma delas acertou o lado direito de seu corpo, perto da costela. "Quando eu escutei o disparo, procurei quem era. E vi a polícia lá", conta Diogen, apontando o dedo em direção a um pequeno largo. Seu irmão morreu ali mesmo, na varanda, enquanto seu filho sofreu alguns arranhões por causa da queda. "A gente desceu e comecei a gritar 'você matou meu filho, um pai de família com bebê no colo'. Ele ainda apontou a arma assim pra gente. Mas depois que viu que um monte de gente estava chegando, foi embora e saiu correndo apontando a arma", relembra Marlene.

Família de Deivison Faria de Sousa posam para foto no local onde o rapaz foi morto. No chão, marcas de sangue.
Família de Deivison Faria de Sousa posam para foto no local onde o rapaz foi morto. No chão, marcas de sangue.Fernando Souza

Os abusos policiais sempre foram rotina na Rocinha, mesmo antes da intervenção federal. Familiares de Deivison relatam casos em que policiais já entraram na casa de moradores sem motivo e os agrediram. Os cuidados cotidianos incluem não sair sem identidade, mesmo que seja para ir a uma padaria ao lado. E manter o contracheque em um lugar sempre acessível de casa, para poder mostrar para policiais quando eles baterem na porta. Porém, foi a primeira vez que a família se deparou com alguém agonizando até a morte. "Quando é um estranho a gente fica chocado, mas imagina quando é alguém da sua família... E você não pode fazer nada. A gente ainda tentou levar no hospital", lamenta Diogen. "Quando escutamos fogos ou tiros, já ficamos com medo. Estamos todos traumatizados. Tem vizinho indo embora, assustado", completa. 

Policiais e militares mortos

As mortes descritas acima são resultado de uma aposta na lógica de confronto, algo que caracterizou o período da intervenção federal, segundo avaliou o Observatório da Intervenção, vinculado ao Centro de Estudos e Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Cândido Mendes. Para os pesquisadores do centro, não houve uma aposta clara em investigação e em recuperar as instituições de inteligência. Com isso, não só moradores de favelas são afetados como também os agentes de segurança pública. Quatro policiais civis, três militares do Exército e 27 policiais militares morreram neste ano em serviço —o número de PMs mortos sobre para 95 quando considerados os reformados, da reserva ou que estavam em folga.

Entre as vítimas está o PM Filipe Santos de Mesquita, 28 anos, que morreu em um confronto entre bandidos e policiais Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha. Ele foi descrito por amigos e familiares como alguém que "queria mudar o mundo" e que buscava se aproximar dos moradores da favela, segundo reportagem da BBC Brasil. Também está o cabo Fabiano de Oliveira Santos, 36 anos. Primeiro militar morto na intervenção, foi baleado no ombro durante uma operação no Complexo da Penha no dia 20 de agosto. Além dele, o soldado João Viktor da Silva, aspirante a paraquedista, foi morto no Complexo do Alemão naquele mesmo dia. E o soldado Marcus Vinicius Viana Ribeiro, que foi atingindo por uma bala na perna e morreu dois dias depois, no Hospital Municipal Salgado Filho. No total, 13 pessoas morreram naquele 20 de agosto de operações policiais, um dos mais sangrentos da intervenção federal.

Houve um aumento no número de tiroteios durante o período da intervenção, registrado plataforma Fogo Cruzado. Ela registrou 8.237 ocorrências desde o início da intervenção até às 9h da manhã do último 15 de dezembro. Nos mesmos 10 meses do ano anterior foram 5.238 tiroteios. Além disso, analisando os 10 meses anteriores à intervenção, entre os dias 16 de abril de 2017 até 15 de fevereiro deste ano, foram 5.669 tiroteios.

Outros dados da intervenção

A intervenção federal explica que as corporações policiais recuperaram sua capacidade operativa, sucateada ao longo dos anos. Isso significa, segundo a versão oficial, mais policiais e viaturas nas ruas e, consequentemente, mais operações e mais criminosos mortos. Alguns índices melhoraram sensivelmente. De janeiro a novembro deste ano, o ISP contabilizou 4.595 homicídios dolosos, enquanto no mesmo período do ano passado foram 4.901 (queda de 6%). Já o indicador de letalidade violenta (homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e morte por intervenção de agente do Estado) subiu 1% no último ano, de 6.201 para 6.248 ocorrências.

Apesar de uma maior mobilização de efetivos policiais e do Exército, através de um decreto de Garantia da Lei e da Ordem, o número total de roubos permaneceu estável. Já os roubos de rua aumentaram 4% no último ano. Por sua vez, os roubos de carga caíram 11% de 2017 para 2018 — embora tenham voltado a aumentar desde setembro deste ano, coincidindo com uma queda no número de operações policiais.

Por fim, o gabinete também informou que a intervenção utilizou 67% dos 1,2 bilhão de reais destinados pelo Governo Federal e que, hoje, os empenhos superam os 800 milhões de reais. A demora no uso dos recursos se deve a burocracias e prazos estabelecidos pela legislação federal e pela lei de licitações, mas garante que a meta é empenhar todos os recursos até o dia 31 de dezembro. "Viaturas, coletes balísticos, munição e material para a perícia técnica estão entre os itens cujo recurso já foi empenhado", afirma o gabinete.

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