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O dia em que Almodóvar enfrentou a censura dos EUA

Pedro Almodóvar, John Waters, Ralph Bakshi e Barbet Schroeder relembram seus problemas com a temida classificação X

Pedro Almodóvar dirige Victoria Abril e Antonio Banderas (de costas) em 'Áta-me!', que estreou nos EUA em 1990.
Pedro Almodóvar dirige Victoria Abril e Antonio Banderas (de costas) em 'Áta-me!', que estreou nos EUA em 1990.
Álex Vicente

Às vezes sua memória falha, porque é seletiva. “Mas desse capítulo me lembro perfeitamente”, afirma Pedro Almodóvar, abandonando por alguns minutos a sala de montagem na qual termina seu novo filme, Dolor y Gloria. Em meados de 1990, o diretor decidiu processar a Motion Picture Association of America (MPAA), órgão fundado pelas majors, os grandes estúdios de Hollywood, para qualificar os filmes de estreia, por ter conferido a Ata-me! a letra mais temida do alfabeto: X. Foi o começo de uma ofensiva que acabou por derrubar uma classificação aplicada desde novembro de 1968 e cuja criação agora completa meio século. Também foi a primeira vez em 20 anos que um cineasta atacava aquele sistema férreo. “Meu futuro, àquelas alturas, não dependia de Hollywood. Por isso não tive medo. Não me privei de chamar as coisas pelo nome: era censura”, lembra Almodóvar.

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A denúncia foi feita junto à distribuidora do filme, a Miramax, e seu então presidente, Harvey Weinstein. Este decidiu contratar o advogado William Kunstler, conhecido defensor dos direitos civis que tinha representado os Dez de Chicago e membros dos Panteras Negras, que se esforçou para demonstrar que essa qualificação era “arbitrária e caprichosa”, pelo fato de equiparar o filme com a pornografia. “Transformei aquela luta em algo que representava todos os autores, apesar de essa ser uma linguagem entendida nos Estados Unidos. Lá, o autor de um filme não é o diretor nem o roteirista, mas quem coloca o dinheiro”, afirma Almodóvar. Ele lembra que a Miramax tinha interesses opostos aos dele. “Ficaram encantados com a polêmica e a transformaram em instrumento de marketing. Era muito desagradável notar que meu companheiro de viagem se comportava de modo absolutamente sensacionalista”, acrescenta.

O X era um sanção moral, mas também econômica: recebê-lo fazia com que muitos cinemas não projetassem o filme e que não fosse anunciado nem resenhado na maioria dos meios de comunicação, além de impedir sua difusão nas grandes redes de videolocadoras, como a Blockbuster. A diferença de um X e um R, a segunda categoria mais severa, podia ser de milhões de dólares. As sequências que fizeram com que Ata-me! merecesse essa letra escarlate foram duas: a mítica sequência do mergulhador de brinquedo na banheira, que tenta penetrar entre as pernas de Victoria Abril, e uma suarenta cena de sexo com seu sequestrador, Antonio Banderas. Almodóvar se negou a cortá-las. “O curioso foi que, nas sequências de violência, que para mim eram muito mais delicadas, não viram qualquer problema. Se o filme estreasse hoje, acredito que veriam”, pondera o diretor.

Almodóvar perdeu o julgamento, mas ganhou a batalha. No dia seguinte ao veredito, uma petição assinada por grandes cineastas da época, como Francis Ford Coppola, Terry Gilliam, Ridley Scott, Jim Jarmush e Spike Lee, denunciou um clima propício “a uma nova era de macarthismo” e exigiu da MPAA a criação de uma “nova letra” para denominar os filmes de autor com conteúdo sexual, mas não pornográfico. Antes do fim do ano, os estúdios enterraram o X e o substituíram pela chamada NC-17, que não demorou a se tornar um veneno semelhante para a bilheteria, depois dos fracassos de filmes como Henry e June e Showgirls. Em 1990, Almodóvar não hesitava em chamar esse sistema de “fascista”. Hoje modera suas palavras, mas não altera a mensagem. “A censura e, pior ainda, a autocensura, são próprias dos totalitarismos e não indicam mais do que fragilidade. É triste que os próprios autores se autocensurem, mas essa é a realidade”, conclui.

Da esquerda para a direita, Susan Walsh, Divine e Cookie Mueller em ‘Problemas femininos’.
Da esquerda para a direita, Susan Walsh, Divine e Cookie Mueller em ‘Problemas femininos’.

O X entrou em vigor durante as revoluções dos anos sessenta, em um momento de grandes mudanças para o cinema. O código Hays, lista de normas morais que proibia o nu, os comportamentos lascivos e a violência excessiva, caíra em desuso. A cultura juvenil começava a ser dominante: os menores de 24 anos representavam 48% dos ingressos em bilheteria e queriam ver filmes diferentes dos que os que seus pais costumavam gostar. Ao mesmo tempo, nos setores conservadores havia o temor de que “a aceitação da obscenidade e a pornografia no entretenimento” contribuíssem para “uma desintegração da sociedade”, como havia acontecido “na Roma antiga ou na Inglaterra da Restauração”, como afirmava a revista setorial Motion Picture Herald em um editorial de 1969. Também a Liga da Decência, poderoso grupo de pressão católico, exigia proteger os menores em relação a certos conteúdos. Para evitar uma censura governamental, os sete grandes estúdios entraram em acordo para aplicar uma censura voluntária, fundamentada em uma nova graduação que ia de G (apta para todos os públicos) a X (proibida para menores).

No início, esse X era quase um símbolo de prestígio. Por exemplo, Perdidos na noite ganhou o Oscar de melhor filme em 1969 apesar de exibir essa letra em seu cartaz. “O X equivalia a conteúdo adulto, antes que o auge da indústria pornográfica alterasse seu significado”, explica o historiador do cinema C. Mason Wells, programador de um ciclo no Quad Cinema de Nova York, que até 11 de janeiro projetará uma seleção de filmes que enfrentaram o estigma do X, como Laranja mecânica, O império dos sentidos, O último tango em Paris, Klute – O passado condena e Henry: retrato de um assassino.

Os valores do espectador

“Quando comecei a fazer filmes, receber um X ajudava”, explica John Waters em seu escritório em Baltimore. O controverso diretor obteve a classificação em três de seus filmes: Pink Flamingos, Problemas femininos e Viver desesperado. “No fim dos anos 1960, o X era excitante, atrevido, selvagem, um sinal de liberdade. Se os censores te diziam que não assistisse um filme, você corria para comprar o ingresso. Não me importei até bem mais tarde, quando comecei a rodar filmes que se supunha não pudessem ser X”, diz em referência a seus projetos dos anos noventa protagonizados por estrelas como Johnny Depp, Kathleen Turner e Melanie Griffith. Waters denuncia um sistema viciado: o comitê que determina as qualificações é formado, segundo os estatutos da MPAA, por “pais e mães com filhos entre 5 e 17 anos”. São eles que estabelecem a carreira comercial de um filme. “Cada espectador tem valores distintos. Por exemplo, o que para mim parece obsceno são as comédias românticas para todos os públicos. E nem por isso lhes dou um X, simplesmente me limito a não ir assisti-las”, acrescenta Waters.

O primeiro filme de animação qualificado com o X foi O gato Fritz, de 1972. “Recebê-lo era sinônimo de ser considerado um pornógrafo. No início fiquei furioso, mas depois entendi que poderia ser bom”, afirma seu diretor Ralph Bakshi, hoje isolado nas montanhas do Novo México. “Eu queria mostrar que O gato Fritz não era como os demais desenhos animados e receber o X permitiu que fosse visto como algo à parte. Foi quase uma bênção.” Bakshi acredita que a recebeu porque sua sátira à vida norte-americana, inspirada nos quadrinhos de Robert Crumb, que falava de amor livre e relações interraciais, não correspondia à definição do que deveria ser a animação. “Na época só existia a Disney, que era Deus, e eu era o oposto dele”, diz o diretor, que abriria caminho para os desenhos animados para adultos. Para Bakshi, a MPAA é um resíduo da cultura puritana norte-americana e de sua lendária hipocrisia. “Já nos anos setenta esse sistema era uma estupidez, porque ninguém te pedia identidade para entrar no cinema, exceto se você chegasse de fralda à bilheteria. Hoje essas classificações são ainda mais ridículas: qualquer jovem pode ter acesso aos conteúdos que quiser na Internet”, afirma Bakshi.

O diretor Barbet Schroeder, que debutou no cinema francês depois da guinada radical da Nouvelle Vague e depois fez carreira em Hollywood, recebeu o X com Maîtresse, que também foi proibido no Reino Unido (assim como sua estreia, More, uma ode psicotrópica a Ibiza, tinha sofrido na França). “Tenho orgulho de ter recebido o X, é uma honra”, sorri o diretor. Lançado em 1975, o filme tateava o submundo do sadomasoquismo e incluía uma sequência na qual a dominatrix do título prega os genitais de um cliente em uma tábua. “O X apareceu em 1968 porque era uma tentativa de conter essa onda. Infelizmente, as coisas não evoluíram muito”, afirma Schroeder.

O diretor, que dirigiu um capítulo da série Mad Men em 2009, opina que agora a liberdade é maior na televisão. “Em um filme de estúdio continua sendo um grande problema introduzir uma sequência de sexo homossexual. Na temporada de Mad Men em que trabalhei foram rodadas várias sem qualquer dificuldade e sempre ocupavam lugar central no episódio”, afirma. O diretor foi embora de Hollywood depois de dirigir uma dezena de filmes para os estúdios (a última foi Cálculo mortal, com Sandra Bullock, em 2002). “Meus projetos deixaram de interessar a indústria. E eu não tinha interesse em me limitar a fazer filmes cuja missão do diretor é se encarregar dos efeitos especiais. Meu filme de maior sucesso, Mulher branca, solteira, procura... hoje teria de ser rodado à margem dos estúdios e com um orçamento ínfimo”, diz Schroeder. E o que teria acontecido então com Maîtresse? “Simplesmente não existiria...”, sentencia o diretor.

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